24/02/2022 - 13:13
Em 24 de fevereiro de 1932 o governo federal do Brasil decretou o Código Eleitoral que reconhecia um direito básico: a partir de então as mulheres brasileiras podiam votar e ser votadas.
Contudo, como ressaltam especialistas ouvidas pela DW Brasil, a legislação escondia uma pegadinha que tornava a participação maciça das mulheres nas eleições uma questão muito mais teórica do que prática. O Artigo 121 do texto dizia que “os homens maiores de 60 anos e as mulheres em qualquer idade podem isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral”.
Ou seja: o voto era permitido às mulheres, mas obrigatório apenas aos homens – desde que alfabetizados, note-se bem.
“Havia uma prestidigitação nessa lei, algo que esvaziava o potencial transformador dela”, comenta a socióloga e cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Ao estabelecer que o voto era obrigatório para os homens mas não para as mulheres, o que ocorreu foi que homens, maridos e pais, continuaram tendo a possibilidade de proibir suas mulheres de votar. E foi isso que aconteceu.”
Ela reconhece que, em termos de legislação, era uma postura avançada para a época – na França, por exemplo, as mulheres puderam participar do processo legislativo pela primeira vez apenas em 1945. Mas essa não obrigatoriedade acabou acarretando em baixa adesão. Até os anos 1960, apenas 34% dos alistados para votar no Brasil eram mulheres; em 1969, 44% “Só em 1985 é que a proporção homem e mulher começa a se igualar”, comenta Goulart.
Lacuna legislativa proporcionou pioneirismo
Se o direito foi garantido por lei em 1932, o curioso é que não havia nada na legislação anterior que claramente proibisse a mulher de votar. Por isso, houve ativistas feministas que buscaram participar das urnas explorando essa brecha na lei.
“Não havia na Constituição uma proibição explícita nem ao fato de as mulheres votarem, nem quanto ao direito de serem votadas”, comenta a socióloga e cientista política Joyce Martins, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e autora do livro O novo jogo eleitoral brasileiro: PT e PSDB na democracia de público. “As mulheres, simplesmente, não eram mencionadas, como se fosse óbvio que política não era um assunto delas. Algumas feministas se aproveitaram disso e exigiram na Justiça o direito de votar.”
Este foi o caso, por exemplo, da dentista, sufragista e poeta Isabel Dillon (1861-1920), no Rio Grande do Sul. Ela tentou se alistar eleitoralmente em 1890 e teve a solicitação rejeitada. “Na primeira República, cabia aos estados legislar em matéria eleitoral. E em 1927, Celina Guimarães [Viana (1890-1972)], professora do Rio Grande do Norte, solicitou e conseguiu seu direito a votar. Ela foi a primeira eleitora do Brasil”, ressalta Martins.
“Seguindo o exemplo de Celina, outras 15 mulheres se inscreveram e votaram, mas seus votos foram considerados ‘inapuráveis’ pelo Senado.” Por outro lado, a primeira prefeita da América do Sul, em 1929, fora Alzira Soriano (1897-1963), da cidade de Lages, também no Rio Grande do Norte, conta a socióloga.
Dificuldades de participação
A partir de 1932, mesmo com a autorização prevista em lei, não eram poucas as dificuldades para a mulher que quisesse exercer o direito ao sufrágio. A começar pelo machismo – que invariavelmente começava em casa. Era predominante o discurso de que “política não era assunto de mulher” e não poucos os homens que proibiam suas cônjuges e filhas de se envolverem no tema, e muito menos se registrarem para a participação nas urnas.
Havia outras dificuldades, conforme explica a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro O voto feminino no Brasil: “A maior parte não votou porque o alistamento eleitoral era trabalhoso e tomava tempo.” Na época, para provar que era alfabetizado, o eleitor tinha copiar um parágrafo inteiro diante de um funcionário da seção eleitoral.
“Dei-me ao trabalho de estudar os pedidos de alistamento eleitoral publicados no boletim eleitoral elaborado pela Justiça Eleitoral. Encontrei mais nomes femininos em seções de bairros de classe média na cidade do Rio de Janeiro, minha amostra”, conta. “Corre na historiografia que a Liga Eleitoral Católica [organização criada na década de 1930] fez campanha em massa para o alistamento. De fato, isso procede. Daí a inferir que mulheres pobres foram induzidas a votar em candidatos ungidos pela Igreja, é extrapolação.”
Martins complementa que “a maioria das mulheres não podia votar”, mesmo após a lei, já que “muitas delas dependiam dos maridos e tinham inúmeros direitos não reconhecidos pela lei”. “Uma grande adesão não foi estimulada. O voto das mulheres era igual ao dos idosos, voluntário. Com a diferença de que os idosos homens não precisavam da autorização de ninguém para exercer o sufrágio”, contextualiza a cientista política.
Antecedentes revolucionários
Mas se foi um direito ainda não plenamente praticado, a luta feminista pela participação eleitoral já era histórica: 100 anos antes, em 1832, a educadora e poeta Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), pioneira na luta feminista, publicara o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens.
Na obra, ela já reivindicava uma participação feminina na política. “O direito do homem e do cidadão não incluía o sexo feminino, ele era literal: a ideia de as mulheres participarem do mundo público e terem direitos políticos foi rejeitada por séculos, em todo o mundo. Nesse sentido, como pensar em democracia quando metade da humanidade não tem seus direitos questiona?”, questiona Martins.
Esse movimento ganhou força nas primeiras décadas do século 20, como acrescenta Goulart. “Em 1919 foi apresentado um projeto de lei para garantir o direito ao voto às mulheres, mas acabou não sendo aprovado”. No entanto, “havia um contexto de uma série de pressões do movimento feminista sobre os governos pela inclusão das mulheres”.
A historiadora Marques ressalta que “não votar significava não ser ouvida, não poder se manifestar”. E isso acabou mobilizando toda uma geração de mulheres sufragistas, ativistas, sobretudo nos anos 1920. No começo, eram na maior parte professoras; aos poucos, ganharam a adesão de representantes de outras profissões, como advogadas.
Havia todo um cenário que favorecia essa luta. “O aumento de mulheres trabalhando nos espaços urbanos, a mobilização das feministas e das mulheres no mundo do trabalho, reivindicando seus direitos, a organização do Estado para atender a diversas reivindicações naqueles anos”, enumera Martins.
Tudo isso culminaria no Código Eleitoral de 1932. Ainda que não por completo, um avanço. “É complicado falar que o Estado ‘garantiu o direito de voto às mulheres’, porque direito dá autonomia e reconhece a pessoa como cidadã”, ressalva Joyce Martins. “O Estado brasileiro contornou a cidadania das mulheres. Não ousou enfrentar a questão da igualdade de gênero, permitindo o voto apenas daquelas mulheres que tivessem autorização dos seus maridos.”
“Que direito é esse, que eu só posso ter se outra pessoa permitir?”, argumenta a socióloga. “Não houve exatamente direito ao voto, mas uma concessão, com restrições.”