25/10/2016 - 15:23
O samba é um dos recursos de que os negros brasileiros dispõem para compensar a exploração econômica e as injustiças sociais de que ainda hoje são vítimas. “Quem canta seus males espanta”, diz a letra de um samba. Ao som dos tambores, do violão, do pandeiro e do tamborim, nos morros do Rio de Janeiro, nos pagodes da periferia de São Paulo, o negro afugenta suas penas cantando-as. Tristezas de amor, falta de dinheiro, ciúmes, a violência do preconceito, a psicologia negra e mulata revela-se nas palavras desses sambas.
Mas elas também descortinam toda a poesia do povo, o amor pela natureza, a ternura pelo mar, o vigoroso pulsar da vida. No carnaval, como a ilustrar o mito da fênix que renasce das próprias cinzas, as nações africanas retornam sob a forma de escolas de samba. Sob o feitiço do samba, tudo volta às origens: os totens reaparecem, os mestiços voltam a ser índios, os brancos encontram de novo, na barafunda dos sexos e das classes sociais, as raízes profundas das saturnais romanas.
No samba, as duas civilizações, a dos terreiros xamânicos da África e a das igrejas barrocas de Portugal, não contrastam uma com a outra, mas se interpenetram, se harmonizam, dando origem a um amálgama espiritual que energiza o Brasil. Como escreveu [o sociólogo francês] Roger Bastide, “o cintilar contínuo do ouro corresponde, no domínio da vista, ao barulho do tantã no domínio da audição; ambos são um apelo para sair da vida profana e entrar no mundo sagrado”.
O samba brasileiro é a prova evidente de que as duas civilizações, a católica europeia e a xamânica africana, que parecem tão afastadas uma da outra, não precisam se chocar como forças antagônicas, mas podem, como disse Bastide, “compor uma única música a duas vozes: o órgão barroco e o tambor febril; os santos óleos do batismo e dos moribundos, e o azeite de dendê que escorre das pedras sagradas da África; a mística dos santos e a mística dos orixás”.