04/03/2022 - 12:51
Quando Vladimir Putin encerrou seu discurso no Parlamento alemão, às 15h47 de 25 de setembro de 2001, centenas de deputados se levantaram. Parecia que toda a Alemanha aplaudia o jovem símbolo da paz russo. Ele discorrera sobre a unidade da cultura europeia e a criação de uma sociedade democrática.
Falando em alemão, Putin inflamou os corações de todos os parlamentares – desde os socialistas do A Esquerda aos transatlânticos da União Democrata Cristã (CDU) – ao concluir, entusiástico: “Prestamos nossa contribuição comum à construção da Casa Europeia.” Vladimir Putin, o europeu.
Pouco mais de 20 anos mais tarde, o entusiasmo, a guinada democrática da Rússia e o caminho russo para a Europa jazem entre destroços e cinzas. A Rússia trava guerra contra a Europa. O que aconteceu?
Inspirado em monarquistas e nacionalistas
“Não acho que Putin siga uma determinada ideologia, ele se serve de diversos elementos intercambiáveis para legitimar suas ações criminosas”, analisa para a DW a professora de estudos eslavos Sylvia Sasse, da Universidade de Zurique. O dirigente russo visaria, acima de tudo, manter seu poder interno e “ampliar as zonas que ele chama de ‘o mundo russo'”.
Para tal, ele cada vez mais invoca, e também cita em seus discursos, ideias conservadoras, antidemocráticas, como as do filósofo monarquista Ivan Ilyin, ou do nacionalista populista Lev Gumilyov (1912-1992). “Putin está em meio a um smog de demagogos etnonacionalistas, autocráticos, muitas vezes antissemitas, como é característico da nova direita pelo mundo afora”, define a especialista.
Um dos representantes russos desse movimento é Alexander Dugin, em cuja opinião a responsável pelas guerras em todo o mundo é uma suposta “elite global”: “Eles destroem países”, alega. Rejeitando a noção ocidental de democracia, ele traça um perfil humano distinto para seu povo: “Para nós, russos, humanidade equivale a pertencer ao todo. Para nós, o ser humano não é um indivíduo”, disse numa entrevista à TV canadense.
Dugin é um dos astros da assim chamada “nova direita”. Há anos se especula quanto a sua relação com o presidente russo, sem que haja dados conclusivos, devido ao modo isolado de Putin. Certo está que ele é um convidado bem-vindo para a mídia fiel ao Kremlin, e especialistas identificam numerosas coincidências ideológicas.
Assim, na plataforma online VK, Dugin descreveu a guerra à Ucrânia como uma pré-condição para o renascimento do Império Russo. O Ocidente, por sua vez, representa para ele morte, suicídio e degeneração.
Com sua ideologia extremista de direita e antiliberal, o russo encontra adeptos também na Alemanha e em outros países europeus, além de ter conexões com a “alt right” americana, tendo se encontrado, por exemplo, com Steve Bannon em 2018, em Roma.
Dugin é, ainda, apoiador ferrenho do ex-presidente dos EUA Donald Trump. Após a vitória eleitoral deste, ele declarou à emissora turca TRT, em dezembro de 2016: “A partir de agora a América voltou a ser grande – porém não mais imperialista.”
Questão de identidade
O historiador Igor Torbakov, da Universidade de Uppsala, na Suécia, observa e descreve já anos o desligamento espiritual da Rússia de Putin em relação à Europa, detectando nas ações do autocrata também uma busca da identidade russa: até que ponto a Rússia é influenciada pela Europa? E pela Ásia? E quão autônoma é essa identidade?
Numa palestra na Universidade Harvard, em 2016, Torbakov descreveu os esforços da Ucrânia para ser aceita na União Europeia como um abalo da noção russa de uma identidade eslava autônoma. No fim das contas, esse anseio representa uma ameaça para a pretensão de Putin de que seu país conte entre as superpotências.
Contudo, um desafio extremo para as elites do Kremlin parte do próprio país: o despertar de uma nova geração de jovens, para quem dignidade humana, liberdade, democracia e tolerância também são ideais políticos fundamentais, comentava Torbakov, pouco antes de se iniciar a invasão da Ucrânia.
“Esses ‘valores europeus’ são, portanto, universais. As gerações mais jovens entenderam isso. Por todo o gigantesco país, elas vão às ruas para desafiar a elite governante, escreve Igor Torbakov na edição de março de 2022 da revista política Blätter für deutsche und internationale Politik.
Os protestos no país prosseguem, agora contra a guerra na Ucrânia. Polícia e Justiça reprimem com rigor os manifestantes; até alunos de escola primária foram presos por portar cartazes antibélicos. Na primeira semana da invasão, a ONG Anistia Internacional registrou quase 6 mil detenções e critica cada vez mais a censura no país.
Em setembro de 2001, o jovem símbolo de esperança russo fez mais uma promessa: “A meta principal da política interna da Rússia é, acima de tudo, garantir os direitos democráticos e a liberdade.” Passados 20 anos, Vladimir Putin trava uma guerra de agressão contra sua vizinha europeia.