07/03/2022 - 8:00
Depois de dois anos de pandemia, um tipo de evento inicialmente quase sem registro se tornou uma ocorrência ainda rara, mas preocupante. Pessoas podem passar o SARS-CoV-2 para animais, de estimação ou silvestres, que podem infectar de volta o homem com o coronavírus causador da covid-19, possivelmente até com uma versão modificada do patógeno.
Alguns pesquisadores suspeitam de que a atual forma dominante do SARS-CoV-2, a variante ômicron, mais transmissível e com cerca de 50 mutações em seu material genético em relação à linhagem original do vírus, possa ter surgido dessa forma. Denominado spillback, esse processo de transmissão, em que o patógeno salta de uma espécie para outra e volta para a espécie inicial, foi documentado, por ora, em pelo menos dois animais.
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No ano passado, criadores de vison na Holanda foram infectados pelo coronavírus transmitido por esses mamíferos do gênero Mustela, cuja pele é usada em casacos. Além de retransmitirem o agente infeccioso para humanos, os visons chegavam a manifestar clinicamente a covid-19 e até morriam da doença. Em janeiro deste ano, houve um pequeno surto de covid-19 em Hong Kong que atingiu 50 pessoas e sua origem foi atribuída a hamsters vendidos por um pet shop. Clientes da loja e um funcionário que havia sido vacinado se infectaram com a variante delta do coronavírus oriunda dos roedores.
Processo incomum
Em ambos os casos, as autoridades sanitárias locais optaram pelo extermínio de populações de animais – milhões nas fazendas de criação de visons e pouco mais de 2 mil roedores na cidade chinesa. Hong Kong registra atualmente milhares de casos diários de covid-19, mas essas ocorrências são causadas pela transmissão interpessoal da variante ômicron.
Apesar dos registros de spillback envolvendo visons e hamsters, o mais comum é o homem ser capaz de transmitir o SARS-CoV-2 para outras espécies, mas os animais não infectarem de volta o ser humano com o patógeno. O vírus da covid-19 já foi encontrado em cerca de 30 animais, como tigres, hienas e gorilas. Em mais de 15 estados norte-americanos, o coronavírus foi detectado em populações do veado-de-cauda-branca (Odocoileus virginianus). Em alguns lugares, de 40% a 60% dos animais dessa espécie que foram submetidos a testes apresentavam o coronavírus. Mas a retransmissão do vírus do cervídeo para humanos ainda não foi constatada.
“Já foi demonstrado que cães e gatos são hospedeiros terminais do coronavírus vindo do homem, ou seja, não o transmitem”, diz o virologista Paulo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP). “Não é preciso ter medo de pegar covid-19 desses animais.”
Segundo Brandão, a transmissão do coronavírus dos visons para os fazendeiros é o caso mais consistentemente documentado de spillback do SARS-CoV-2. “Após sofrer mutações nos organismos dos visons, o coronavírus infectou novamente o ser humano”, afirma o virologista da USP. Não é um processo simples o coronavírus infectar e se instalar em um novo hospedeiro. Ele precisa penetrar nas células do animal e driblar o sistema imunológico do organismo. “A ecologia de uma espécie também interfere em sua capacidade de transmissão.”
Risco aumentado
Ainda assim, os pesquisadores alertam que o prolongamento da pandemia e o aumento de casos de covid-19 na população global elevam o risco de ocorrerem eventos de spillback. “As possibilidades de eventos de novas transmissões para humanos são reais e vão depender, basicamente, das oportunidades e níveis de interação entre as pessoas e os novos reservatórios eventuais do coronavírus”, avalia o virologista brasileiro Luiz Góes, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Medicina Charité de Berlim, na Alemanha.
O processo de spillback do novo coronavírus ainda é pouco documentado e não se sabe a real dimensão do fenômeno. “O baixo índice de descrição desses eventos decorre provavelmente da grande dificuldade de identificação de casos desse tipo”, pondera Góes. “Tais eventos devem ocorrer em uma escala maior do que identificamos até agora. Mas sua importância epidemiológica ainda é difícil de ser determinada, dado o total descontrole no registro de novas infecções do SARS-CoV-2 na população humana, falha que foi agravada com a chegada da variante ômicron.”
Um mistério que permanece desde o surgimento dos primeiros casos de covid-19 em seres humanos na cidade chinesa de Wuhan, cerca de dois anos atrás, é a origem do SARS-CoV-2. Apesar de estudos terem sido feitos e de um grupo de especialistas, a pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS), ter visitado Wuhan, ainda não se determinou de que animal, provavelmente silvestre, o novo coronavírus saltou para infectar o homem. Morcegos são considerados os principais suspeitos de serem os hospedeiros iniciais do SARS-CoV-2.
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.