21/04/2022 - 7:37
Divya Anantharaman aponta sua lanterna sob os bancos de madeira próximos de um edifício em Wall Street. Neste momento, as ruas de Nova York ainda são domínio exclusivo dos madrugadores. Mas iniciar sua missão semanal de busca e resgate nesse horário, de manhã bem cedo, é essencial, diz ela.
Ela procura as vítimas dos notórios assassinos de pássaros: os arranha-céus de vidro. Quando a luz do dia aparece, os porteiros varrem as calçadas, e as provas são perdidas.
Anantharaman é voluntária da NYC Audubon, um grupo de conservação urbana que monitora a morte de aves devido a colisões em janelas. Ela inspeciona cada canto escuro da rota, em vasos de plantas e flores, cuidadosamente para não perder vítimas que possam ser resgatadas. No final da ronda, ela encontra um pássaro morto sob uma passagem superior de vidro que liga dois edifícios.
É uma ave chamada de “galinhola americana” (American woodcock), ela acredita, um pássaro migratório relativamente comum, de bico longo. Toda primavera, as galinholas voam para Nova York depois de passar os meses frios no Alabama e em outros estados da costa do Golfo do México, no sul dos Estados Unidos. Esta ave está rígida, o que significa que morreu recentemente, diz Anantharaman. “Os olhos ainda estão tão claros. Isso pode ter acontecido há alguns minutos”. Ela bate fotos, reserva um momento solene para fechar as pálpebras do pássaro com o polegar e coloca o cadáver em sua mochila cor-de-rosa.
Um bilhão de aves e contando
Todos os anos, entre 90.000 e 230.000 aves caem perto de prédios de Nova York, segundo estimativas da NYC Audubon. A concentração de edifícios iluminados da cidade é um obstáculo perigoso para os viajantes alados, especialmente durante a primavera e o outono, estações de migração.
Nova York está situada em uma rota de migração para a América do Sul, onde muitas aves passam o inverno. Como os pássaros navegam observando as estrelas, a luz artificial da noite os atrai e os desorienta. Acreditando que estão voando em direção à luz das estrelas, as aves desviam a rota e pousam no meio de uma metrópole desconhecida.
“O maior problema é o vidro reflexivo”, diz a bióloga Kaitlyn Parkins, da NYC Audubon. “As aves não veem o reflexo de uma árvore. Para elas, é uma árvore. Elas voam na direção dessas ‘árvores’, podem acelerar muito rapidamente e, muitas vezes, morrem imediatamente”.
Nos Estados Unidos, país onde a maior parte das pesquisas sobre colisões de aves têm sido executadas, os edifícios são responsáveis pela morte de até 1 bilhão de aves por ano, conforme cálculos feitos nos anos 1990 pelo ornitólogo pioneiro no assunto, Daniel Klem. As janelas de vidro, porém, são armadilhas para pássaros em todo o mundo.
“As aves são vulneráveis ao vidro onde quer que haja aves e vidros juntos. Elas não veem essas coisas”, diz Klem, que acrescenta que não são os arranha-céus, mas sim os edifícios baixos e médios que representam as maiores ameaças.
Klem, que atualmente é professor na Universidade Muhlenberg, na Pensilvânia, considera as colisões em janelas como fundamentais para a conservação das aves: “Como ameaça, eu colocaria a colisão logo após a destruição do habitat. O que é bastante traiçoeiro é que as janelas matam indiscriminadamente. Elas também são as mais adequadas para a população. Não podemos nos dar ao luxo de perder nenhum espécime, muito menos bons reprodutores”.
Um problema internacional
Nos últimos anos, grupos de conservação e cientistas assumiram a causa. Binbin Li lidera um dos dois grupos de monitoramento de colisões em janelas na China. Ela é professora assistente de ciências ambientais na Universidade Duke Kunshan e obteve o doutorado na Duke, nos Estados Unidos, onde conheceu a pesquisadora líder do projeto de colisão de aves.
“Primeiro, pensei que isso era apenas um problema na Duke, ou nos Estados Unidos. Eu não podia imaginar ver aqui na China”, diz. Mas, após seu retorno, ela recebeu relatos de três pássaros mortos no campus em um mês.
Com um grupo de estudantes, ela agora conta aves mortas no campus em Suzhou. Muitas das vítimas, ela observa, são encontradas sob corredores de vidro, a exemplo da galinhola que Anantharaman encontrou em Nova York.
Li iniciou uma pesquisa nacional para obter uma ideia mais clara do problema. Três grandes caminhos de migração cortam a China, mas os dados sobre as fatalidades ao longo dessas rotas ainda são limitados. “Percebemos que a colisão de aves não é bem conhecida na China, nem mesmo no meio acadêmico”, diz Li.
“Basta trocar o vidro e apagar as luzes”
Na Costa Rica, Rose Marie Menacho teve de convencer seus professores a deixá-la investigar colisões de aves como estudante de doutorado, há oito anos. “Eles não sabiam muito sobre esse assunto, não sabiam que era um problema real. Até mesmo eu ficava um pouco tímida quando dizia que estava estudando isso. Ficava um pouco envergonhada porque achava que não era algo tão grande assim”, recorda.
Para entender o tamanho do problema nos trópicos, ela agora trabalha com cerca de 500 voluntários. Alguns armazenam cadáveres de pássaros em seus freezers, outros enviam relatórios e fotos. “Não são apenas espécies migratórias que colidem”, diz Menacho. Seus voluntários recuperaram quetzal-resplandecentes e tucanos de cores vibrantes com bicos extensos e extravagantes. Ambas são espécies locais.
“A colisão mata muitas aves que já têm que lidar com a perda de habitat, mudanças climáticas, pesticidas etc. E é tão fácil de resolver, basta trocar o vidro e apagar as luzes”, diz a bióloga Kaitlyn Parkins, da NYC Audubon.
Com os dados coletados, Parkins e sua equipe estão tentando convencer os proprietários de edifícios a agir. Normalmente, eles não precisam substituir nenhum vidro. Películas especiais podem torná-lo menos reflexivo – e assim economizar energia para aquecimento e resfriamento. As marcas nas janelas podem ajudar as aves a perceber a estrutura. Um exemplo: após uma renovação do Javits Convention Center, os voluntários encontraram cerca de 90% menos aves mortas ao redor do edifício.
Em janeiro, a cidade de Nova York adotou uma legislação para exigir que edifícios públicos desliguem as luzes à noite durante os períodos de migração. Desde o ano passado, os arquitetos também devem usar projetos favoráveis às aves para todos os edifícios novos, como o revestimento ultravioleta sobre vidro, que é visível para as aves, não para humanos.
Novos regulamentos são um bom começo
Na calçada em frente ao Brookfield Place, um enorme escritório e centro comercial na região sul de Manhattan, Rob Coover inspeciona um pequeno pássaro. A luz do dia ainda é escassa, mas ele já procura por aves mortas há meia hora.
Coover olha cuidadosamente atrás das pilhas de cadeiras que os trabalhadores de um café logo distribuirão no terraço. Em duas oportunidades, ele já se contorceu para tirar fotos de um cadáver minúsculo e ainda rígido. Agora, ele novamente tira luvas de borracha e sacos plásticos de sua mochila para recolher e preservar uma vítima.
Certa vez, Coover encontrou 27 aves em apenas uma manhã. Uma parceira voluntária foi manchete internacional quando flagrou 226 aves sem vida ao redor do One World Trade Center em apenas uma hora, em setembro passado.
“É bastante deprimente, todos esses cadáveres”, diz Coover. Às vezes, ele encontra algum sobrevivente e leva o animal ferido para um refúgio de pássaros. Os cadáveres geralmente ficam em seu freezer até que ele tenha tempo de levá-los à sede do grupo de conservação, onde são agrupados e, alguns deles, distribuídos a museus. “Antes da pandemia, eu costumava ir trabalhar após minhas rondas e colocava as aves no freezer do escritório”, afirma. Ninguém nunca as notou, acrescenta.
Nos Estados Unidos e no Canadá, os voluntários são ativos em várias comunidades, e a lista de governos locais que sancionam leis para proteger as aves dos edifícios está crescendo. De acordo com a organização sem fins lucrativos American Bird Conservancy (Conservação Americana de Pássaros), a lei nova-iorquina é uma das mais eficazes. Após estudar as colisões de aves durante quase meio século, Daniel Klem mostra-se satisfeito. Ele finalmente vê a crescente conscientização que esperava.
“As mudanças climáticas também são uma questão muito séria, e ninguém está interessado em se desligar disso. Mas é muito complexo, e vai levar um tempo para descobrir as coisas e convencer as pessoas a fazer as coisas de maneira responsável. Colisões de aves é algo que poderíamos resolver amanhã. Não é complexo, só temos que ter vontade” conclui.