21/05/2022 - 8:12
Um dos grandes mistérios da cosmologia é a chamada assimetria matéria/antimatéria presente desde o Big Bang, a explosão primordial que teria dado origem ao universo cerca de 13,8 bilhões de anos atrás. Esse desequilíbrio é caracterizado pela maior presença de partículas, como prótons, nêutrons e elétrons, do que de suas respectivas antipartículas (antiprótons, antinêutrons e pósitrons). Cada tipo de antipartícula tem propriedades como massa e energia idênticas às das partículas, mas com carga elétrica e alguns parâmetros quânticos de valor reverso. O elétron, por exemplo, é uma partícula com carga negativa. O pósitron, sua antipartícula, é positivo. Em tese, a mesma quantidade de matéria e de antimatéria, que são geradas simultaneamente como gêmeos univitelinos, deveria existir no cosmo. Mas quase tudo que se observa no universo visível, desde os átomos até as galáxias, é composto de partículas, não de antipartículas.
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Em laboratório, uma forma de tentar entender a assimetria matéria/antimatéria do universo é analisar como a produção de certos tipos de partículas e antipartículas subatômicas está em desacordo com uma lei fundamental da física denominada simetria de carga e paridade (CP). Esse princípio prevê que a taxa de decaimento de uma partícula e de sua respectiva antipartícula deveria ser a mesma. O decaimento é um processo espontâneo em que partículas e antipartículas instáveis se fragmentam e produzem outras partículas e antipartículas mais leves. Um estudo liderado por um grupo de brasileiros conduzido no maior acelerador de partículas do mundo, o Grande Colisor de Hádrons (LHC), registrou o maior grau de violação dessa lei, da simetria CP, medido até hoje em laboratório. O LHC é um dos laboratórios do Centro Europeu para Pesquisa Nuclear (Cern), que se situa nos arredores de Genebra, na Suíça, na divisa com a França. No início de março, o governo federal assinou um acordo que prevê a entrada do Brasil como membro associado da instituição (ver quadro mais abaixo).
Segundo o trabalho, formas raras de uma efêmera partícula subatômica denominada méson B passam pelo processo de decaimento com uma frequência quase sete vezes maior do que sua respectiva antipartícula. “Se a violação da simetria CP fosse da ordem de 10%, nosso resultado poderia ser facilmente explicado pela física corrente. Mas o nível de desacordo que medimos não era esperado”, comenta, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o físico Ignácio Bediaga, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e coordenador do grupo que fez o estudo. “Uma violação tão acentuada pode ser decorrência de interferências quânticas ou de algum mecanismo físico que ainda não conhecemos.”
O resultado do trabalho, ainda não submetido para publicação em uma revista científica, foi obtido por uma equipe de 12 físicos brasileiros e uma hondurenha que fazem parte da colaboração internacional LHCb. Essa iniciativa conta com a participação de 1.400 pesquisadores, técnicos e engenheiros de 18 países. Afora pesquisadores do CBPF e de brasileiros em universidades do exterior, a equipe inclui físicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade de Brasília (UnB) e também uma colega da Universidade Nacional Autônoma de Honduras. O LHCb é um dos quatro experimentos principais conduzidos no LHC, cujo acelerador de partículas ocupa um túnel circular de 27 quilômetros de extensão situado 100 metros abaixo da superfície.
Implicações importantes
O grau de confiabilidade do dado produzido pelo trabalho dos brasileiros ultrapassa 5 sigmas, ou seja, há menos de uma chance em 3,5 milhões de a medida final ser decorrente de um erro ou flutuação estatística. Além de ser relevante para a própria física de partículas, a medida pode ter implicações importantes na área de cosmologia, que estuda a origem e a evolução do universo, embora ainda seja prematuro, segundo os pesquisadores, avançar em demasia nesse tipo de especulação.
A exemplo de outras partículas instáveis, os mésons B são produzidos em decorrência de colisões entre prótons acelerados a velocidades próximas à da luz no interior do LHC. No trabalho, os físicos observaram a frequência com que os mésons B com carga elétrica positiva ou negativa (e suas respectivas antipartículas) se transformam em uma de quatro combinações possíveis de três partículas mais leves: três píons; três káons; dois píons e um káon; e dois káons e um píon. No início do universo, entre outros processos, deve ter havido produção de mésons B e ocorrido esse tipo de decaimento.
A partir do registro de bilhões de colisões de prótons no LHC, os pesquisadores conseguiram observar cerca de 100 mil eventos em que, em trilionésimos de segundo, mésons B carregados eletricamente decaíram e geraram píons e káons. “Analisamos dados do segundo ciclo de colisões de prótons que ocorreu no LHC entre 2015 e 2018”, diz a física Laís Soares Lavra, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Clermont Auvergne, na França, e integra o grupo brasileiro do LHCb. “Estamos há cinco anos analisando os dados e produzindo esse estudo.” Em seu doutorado, Lavra trabalhou com dados preliminares do LHCb.
Produzir trabalhos que possam ajudar a compreender melhor o predomínio da matéria sobre a antimatéria é o objetivo central do experimento LHCb. A quebra da simetria CP é o único princípio incorporado ao chamado Modelo Padrão da física que tenta interpretar a produção ligeiramente desigual de partículas e antipartículas desde o Big Bang. O Modelo Padrão é a teoria dominante que, há meio século, explica as partículas constituintes da matéria e quase todas as suas formas de interação (força eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca). A única força não coberta pelo modelo é a gravidade.
Produção em excesso
A rigor, a quebra da simetria CP foi uma condição necessária para que o próprio universo, e tudo que há nele, exista. Se a quantidade de matéria e antimatéria fosse exatamente igual, haveria apenas energia no cosmo. Isso porque, sempre que uma partícula se encontra com sua antipartícula, as duas se aniquilam de imediato. Elas desaparecem instantaneamente e liberam algum tipo de luz (radiação eletromagnética). Estudos indicam que a quase totalidade da antimatéria do universo sumiu menos de um segundo após o Big Bang. Restou praticamente só a matéria produzida em excesso.
“Os resultados desse trabalho do grupo brasileiro no LHCb são muito importantes”, comenta o físico teórico Tobias Frederico, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), que colabora com Bediaga do CBPF, sem, no entanto, fazer parte da equipe brasileira que atua no experimento internacional. “Mas ainda não é possível usá-los como uma possível explicação para o excesso de matéria em relação à antimatéria no universo. No momento, fazer esse tipo de ligação seria um salto muito grande. Pode haver outras explicações que justifiquem o grau elevado de violação da simetria CP obtido.”
O físico teórico argentino Gustavo Burdman, da Universidade de São Paulo (USP), também concorda que a contribuição do estudo é relevante e merece reconhecimento. Ele, no entanto, ressalta que o elevado grau de violação da simetria CP medido pelo grupo do CBPF não é necessariamente surpreendente. “A física teórica tem dificuldade de fazer previsões consistentes sobre qual nível de violação da simetria CP seria considerado normal ou aceitável para esse tipo específico de decaimento de mésons B”, explica Burdman. “Por isso, não é trivial extrair alguma informação do experimento que possa ser relevante para o entendimento da assimetria entre matéria e antimatéria no universo.”
O pesquisador da USP ressalta que a existência de violação da simetria CP é uma condição necessária, mas não suficiente para explicar o predomínio da matéria no universo. Outras alterações ao longo da história do cosmo, como um período de desequilíbrio térmico, devem ter contribuído para o sumiço quase total da antimatéria.
Brasil assina acordo para entrar no Cern
Adesão do país ao centro europeu como membro associado ainda precisa ser ratificada pelo Congresso Nacional
Em 3 de março, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Marcos Pontes, assinou na sede do Cern, na Suíça, acordo que prevê a adesão do Brasil como membro associado do centro de pesquisa europeu, que conta com o maior acelerador de partículas do mundo, o LHC. Desde setembro de 2021, o Cern tinha dado o sinal verde para o país tocar adiante seu processo de entrada. Para ser implementado, o acerto ainda precisa ser ratificado pelo Congresso Nacional. Em seguida, o país passa a pagar uma taxa ao Cern, estimada em aproximadamente € 10 milhões (R$ 53 milhões) por ano.
Criado em 1954, o Cern conta atualmente com 23 países-membros, todos da Europa, com exceção de Israel. Outros sete foram aprovados como membros associados e três estão no meio do processo de ser aceito pelo centro com esse status, o mesmo que o Brasil pleiteia. Mais de 12 mil pesquisadores de 110 países fazem pesquisa no centro.
O orçamento anual do Cern é da ordem de € 1,2 bilhão, e o valor da contribuição de cada país é calculado de acordo com o tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) e outros fatores de correção. Estados-membros plenos pagam bem mais do que os associados. Maior financiadora do centro, a Alemanha, por exemplo, deve destinar € 240 milhões ao centro neste ano. A contribuição da Índia, que é um membro associado e tem uma economia 80% maior do que a brasileira, será de € 17 milhões em 2022.
Pleito da comunidade brasileira de físicos há mais de uma década, a entrada do país no Cern poderá trazer benefícios à ciência e indústria nacional. Os pesquisadores brasileiros terão o direito de atuar de forma mais ampla nos experimentos do LHC e em outros laboratórios do centro, e o Brasil terá assento em comitês que definem os rumos da organização. As empresas nacionais poderão participar de concorrência para fornecer serviços e equipamentos ao Cern, que periodicamente tem de modernizar suas instalações. A organização tem planos para construir uma versão quatro vezes maior do LHC nas próximas décadas, o Future Circular Collider (FCC). Os grandes ímãs usados nos aceleradores de partículas empregam ligas com nióbio. O Brasil é dono de cerca de 98% dos depósitos de nióbio em operação no mundo.
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.