05/05/2022 - 11:59
A Comissão Europeia propôs na quarta-feira (04/05) aplicar sanções contra Vladimir Gundyaev. Não se trata de mais um oligarca ou general russo, ou um simples político alinhado com o Kremlin, mas sim o chefe da Igreja Ortodoxa russa, mais conhecido por seu nome espiritual: Cirilo 1°.
Esta é a primeira vez que a União Europeia (UE) propõe incluir um líder religioso nas sanções que vem aplicando à Rússia desde o início da invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro.
Diplomatas da UE devem se reunir ainda nesta semana para discutir que tipo de sanção será aplicada ao patriarca, que deve ter seu nome incluído num pacote mais amplo de punições que também deve atingir a indústria petrolífera e bancos russos.
Uma hipótese é que Cirilo, de 75 anos, tenha seu nome listado numa relação de 58 figuras próximas de Putin que devem ser proibidas de entrar na UE e ter eventuais ativos no bloco congelados. Isso, por exemplo, impediria formalmente que Cirilo compareça à Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas em Karlsruhe, Alemanha, no final de agosto.
O patriarca de Putin
Cirilo e Putin mantêm uma relação estreita. Ambos nasceram em Leningrado (hoje São Petersburgo), mas percorreram caminhos à primeira vista diferentes antes de se tornarem aliados. Enquanto Putin entrava para a KGB (antigo serviço secreto soviético) na década de 1970, Cirilo já era um seminarista junto à Igreja Ortodoxa russa. Com apenas 31 anos, o clérigo tornou-se arcebispo. Putin conta que o pai de Cirilo, que também era um clérigo, foi responsável por seu batismo nos anos 1950.
Os dois homens se aproximaram na segunda metade dos anos 2000. À época, Putin ocupava a posição de primeiro-ministro da Rússia, revezando a presidência com seu aliado Dmitri Medvedev.
Após a morte do patriarca anterior, Alexis 2°, em 2008, Cirilo – então um nome em ascensão e que por duas décadas havia chefiado o departamento de relações externas da Igreja – foi eleito o novo patriarca de Moscou e de toda a Igreja Ortodoxa russa.
Na posição, Cirilo passou a se comportar de forma bem diferente que seu antecessor. Enquanto Alexis 2° chegou a criticar a invasão russa da Geórgia em 2008, o novo patriarca evitou fazer declarações semelhantes sobre as intervenções de Moscou na Síria ou na Ucrânia, que foram marcadas por denúncias de bombardeio indiscriminado contra civis e até suspeitas de crimes de guerra. Muito pelo contrário. Cirilo até mesmo elogiou a missão de Putin no Oriente Médio como “uma luta abençoada”.
Em 2012, ele já havia descrito a nova eleição de Putin à presidência russa como um “milagre de Deus”.
Cirilo compartilha com Putin uma rejeição aos valores liberais e uma condenação da homossexualidade, além de lamentar uma “civilização ocidental sem Deus”.
Sob Cirilo, a liderança da Igreja Ortodoxa aprofundou junto com Putin a promoção de uma ideologia que funde respeito pelo passado czarista e ortodoxo da Rússia com uma reverência pela vitória soviética sobre o nazismo. Nenhum lugar expressa tanto essa ideia quanto a Catedral Principal das Forças Armadas Russas, a oeste de Moscou, inaugurada em 2020, no aniversário de 75 anos do fim da Segunda Guerra, e que inclui mosaicos celebrando tropas soviéticas.
Dias após a Rússia invadir a Ucrânia, o patriarca concedeu novamente sua “bênção” num sermão. Sem nenhuma referência à agressão russa e nem mesmo uma condenação genérica do conflito, Cirilo afirmou que o povo russo havia “entrado numa luta que não tinha apenas um aspecto físico, mas também um significado metafísico”, e mencionou de forma negativa “valores” que forças externas estariam promovendo entre a população russófoba da Ucrânia, incluindo “marchas do orgulho gay”.
Cirilo ainda repetiu em sermões a propaganda do Kremlin que nega a existência de um povo ucraniano e vê o país vizinho como uma mera extensão da Rússia, ao pedir que “Deus promova a reconciliação com nosso povo na Ucrânia”.
Mesmo após as várias denúncias de massacres contra a população civil na Ucrânia, Cirilo evitou criticar a guerra.
Estado e Igreja
Putin cuida bem de seu patriarca, que, aliás, segundo alguns especialistas, também chegou a atuar como um agente da KGB durante a era soviética.
Sob Putin, o ensino religioso está de volta às escolas russas. A renda da Igreja é isenta de impostos. Repetidamente, o presidente participa dos cultos realizados por Cirilo, especialmente em datas sagradas, como a Páscoa ortodoxa.
Repetidas vezes houve relatos na Rússia sobre o patriarca levar um estilo de vida luxuoso e rumores sobre uma vila na Suíça. Esse estilo combina com uma foto revelada em 2012 que mostrava o patriarca com um relógio de luxo suíço de 30 mil euros no pulso.
“Coroinha de Putin”
Especialistas em ortodoxia no Ocidente foram rápidos em criticar o curso adotado e a responsabilidade do patriarca. Por outro lado, o papa Francisco, que como chefe da Igreja de Roma é geralmente entendido como um igual ao patriarca de Moscou e ao patriarca ortodoxo grego de Constantinopla, evitou inicialmente dirigir qualquer palavra crítica sobre o papel de Cirilo.
Mas Francisco finalmente expressou ao jornal italiano Corriere della Sera nesta terça-feira palavras mais críticas.
“Falei com Cirilo via Zoom por 40 minutos. Nos primeiros 20 minutos ele me leu todas as justificativas para a guerra. Eu escutei e disse: não somos clérigos do Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas a de Jesus. Somos pastores do mesmo povo santo de Deus. Por isso devemos buscar caminhos de paz e cessar o fogo das armas. O patriarca não pode se transformar num coroinha de Putin.”
Francisco contou ainda que tinha um encontro marcado com o religioso russo, em Jerusalém, no dia 14 de junho. Seria o segundo encontro presencial entre os dois e não teria relação com a guerra na Ucrânia. Agora, no entanto, o papa considerou que o plano não se mostra mais viável. “Ele (Cirilo) também concorda: vamos suspender, pode ser um sinal ambíguo.”
Após a entrevista de Francisco, a Igreja Ortodoxa russa afirmou ser lamentável que o pontífice tenha adotado tal tom.
“O papa Francisco escolheu um tom incorreto para transmitir o conteúdo desta conversa”, disse o Patriarcado de Moscou, sem mencionar explicitamente o comentário sobre Cirilo ser um “coroinha de Putin”.
jps/ek (ots)