17/06/2022 - 8:33
Em 17 de junho de 1962, a seleção brasileira de futebol conquistava o bicampeonato mundial no Chile. Com Pelé contundido, Garrincha endiabrou zagueiros adversários e ganhou a Copa do Mundo praticamente sozinho.A notícia de que Pelé não poderia mais jogar a Copa do Mundo de 1962 chegou ao Brasil de forma devastadora. Se o astro era apenas uma jovem promessa em 1958, no primeiro título mundial da seleção, naquela Copa ele encarnava a esperança de conquistar o bicampeonato. A imprensa endossava o sentimento generalizado na população: sem Pelé, o Brasil não vence.
O camisa 10 estava no auge da sua forma em 1962. Liderado pelo rei do futebol, o Santos se tornaria o primeiro clube brasileiro a conquistar a Taça Libertadores e o Torneio Intercontinental, em setembro daquele ano. Mas na Copa do Chile, três meses antes, o astro se lesionou no segundo jogo. O abalo da perda de seu melhor jogador quase custou à seleção a eliminação na primeira fase do torneio.
Amarildo, do Botafogo, foi o escolhido para a árdua missão de substituí-lo. A desconfiança da torcida foi superada pelo bom desempenho do atacante na estreia, que marcou os dois gols da vitória de 2 a 1 sobre a Espanha, no último jogo da fase de grupos.
“O Brasil tem que agradecer aos céus por ter ganho essa partida, porque não merecia”, atesta o jornalista e escritor João Máximo, de 87 anos. O jogo decisivo ficou marcado pelo “pulinho” para fora da área de Nilton Santos, para evitar que o árbitro marcasse um pênalti para a Espanha. O juiz ainda anularia um gol de bicicleta dos espanhóis, sob contestação.
Amarildo seguiu dando conta do recado no decorrer da competição, mas era incapaz de suplantar a lacuna deixada pela liderança técnica de Pelé. Preso à ponta-direita na conquista de 1958, Mané Garrincha decidiu chamar para si a responsabilidade. Tido como irresponsável e individualista pela comissão técnica e cartolas da seleção, Garrincha matou as críticas no peito e resolveu ganhar a Copa para o Brasil.
“Na história das Copas, só há dois mundiais em que jogadores ganharam a Copa praticamente sozinhos”, afirma o jornalista Thiago Uberreich, autor do livro Biografia das Copas. “Não é um exagero dizer que Garrincha, em 1962, e Maradona, em 1986, ganharam a Copa para suas seleções”.
Pode-se dizer que a visão expressa por Uberreich reflete um consenso entre pesquisadores das Copas. Em 1958, Garrincha já havia encantado o mundo com dribles e assistências. Mas foi na conquista do bi que o ídolo do Botafogo se revelou um jogador completo. Além de fazer gols de cabeça, de falta e perna esquerda, Mané voltava para buscar a bola, organizar o jogo e flutuava pelo ataque.
“A imagem que se tem do Garrincha em 1958 era a de um sujeito muito intuitivo, sob aquela fama perniciosa de que era burro, meio tosco, um ‘crianção'. A Copa de 1962 mostrou que o Garrincha não era nada disso, mas um cara que unia o instinto corporal com uma inteligência de jogo absurda”, afirma o historiador e escritor Luiz Antonio Simas.
Uma campeã contestada
Em maio, pouco antes da Copa, o filme O Pagador de Promessas, que celebrava o sincretismo da fé, trazia pra casa a primeira Palma de Ouro de Cannes. Em novembro, a Bossa Nova lançava o seu gênero musical para o público americano no Carnegie Hall, em New York (EUA).
Definitivamente, o Brasil vivia uma época de efervescência cultural e social. Mas o clima nos bastidores da seleção era tenso, pois a cartolagem disputava a imagem da seleção. Dirigentes estaduais, do Rio de Janeiro e São Paulo, exerciam pressão sobre a convocatória e a escalação. Todos reivindicavam um jogador para chamar de seu. Mesmo craques consagrados em 1958, como Nilton Santos, Didi e Vavá, eram contestados devido à idade.
“É um erro dizer que a Copa de 1962 é uma mera extensão da conquista de 1958”, avalia Uberreich. Segundo o levantamento feito pelo especialista, Pelé jogou pelo menos 330 partidas no período entre os torneios. “Ele chegou esgotado e acabou se machucando sozinho”, disse.
João Máximo, por sua vez, recorda que o técnico Aymoré Moreira pretendia escalar o time completo da final de 1958 para a iniciar a Copa seguinte. Sob protestos, abriu mão da ideia. A troca mais emblemática foi a do capitão Bellini, que levantou o caneco quatro anos antes na Suécia, pelo zagueiro Mauro, do Santos, que acabou erguendo a taça do bi.
“O próprio Mauro se escalou na seleção. Ele não admitia ficar de fora e acabou convencendo o técnico. Ele estava treinando e jogando melhor, tinha conquistado a posição. Então, não via sentido em não sair jogando”, disse o jornalista.
Na campanha do Chile, o Brasil marcou 14 gols, sendo nove deles de cabeça. Na semifinal contra os donos da casa, Garricha acabou expulso. Como não havia suspensão automática, a comissão disciplinar da Fifa ficou responsável pela análise do caso que poderia tirá-lo da final. É quando entra em cena o então primeiro-ministro Tancredo Neves, que escreve uma carta à Fifa suplicando pela liberação do jogador.
Para a sorte dos brasileiros, o bandeirinha não havia registrado a infração na súmula. Com Mané em campo, o Brasil sagrou-se bicampeão mundial vencendo a Tchecoslováquia por 3 a 1, em 17 de junho de 1962. No retorno ao país, os jogadores foram recebidos pelo presidente João Goulart em Brasília, a capital federal inaugurada em 1960.
A Copa de 1962 ficaria ainda marcada como a primeira em que aos jogos eram gravados em videotape. No dia seguinte às partidas, famílias se reuniam em frente à TV e comemoravam como se o jogo fosse ao vivo. Nascia ali uma rixa entre rádio e imagem.
“As pessoas ouviam o jogo pelo rádio e assistiam ao videotape no dia seguinte. Como os narradores esportivos ‘floreiam' os acontecimentos, houve uma espécie de indignação popular”, conta Uberreich.
Garrincha: a beleza e o horror
Em 20 de janeiro de 2023, a morte de Garrincha completará 40 anos. Quis o destino, a de sua companheira, a cantora Elza Soares, fará um ano no mesmo dia. A Copa de 62 foi o palco que os uniu num relacionamento extraconjugal. O craque era casado e, após o torneio, abandonou a vida familiar com a esposa e sete filhos para viver a paixão com a artista.
A união, contudo, não foi bem recebida nem mesmo por amigos próximos de Garrincha, como Nilton Santos, seu compadre. “A Elza foi tratada como uma mulher maldita”, afirmou João Máximo. “O povão pode até ter compreendido isso, mas a classe média moralista foi muito cruel. Perseguiram os dois, mataram até um passarinho que o Garrincha tinha ganhado do governador Carlos Lacerda”, recorda o jornalista.
Dos adversários que Garrincha colocou no chão, o único que não driblou foi o álcool. Em Pau Grande, na cidade de Magé (RJ), onde o craque nasceu, havia uma cultura de molhar o bico das mamadeiras com cachaça para adormecer as crianças, conta Ruy Castro no livro biográfico Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha.
Por influência do álcool, Garrincha teve episódios de violência doméstica contra Elza Soares. Em 1982, o casal se divorciou. Não bastasse ter sofrido com as agressões, a cantora carregou o estigma de ter arrastado Mané para o alcoolismo, enquanto rodava os bares da cidade pedindo que não servissem bebida ao marido.
Em entrevista no programa Conversa com Bial, em 2018, a cantora se queixou por ter sido sempre tratada como “a mulher de Garrincha”, no lugar de sua identidade própria. Mas lembrou com carinho de Mané.
“Eu nunca gostei de ser mulher de fulano. Eu sou eu. Não era preciso ser mulher do Garrincha pra ser a Elza Soares. O Garrincha era marido da Elza Soares”, afirmou. “Eu sonho muito com o Mané. O maior amor da minha vida foi ele”.
Para Simas, Garrincha é um retrato do país que vive no fio da navalha. “É preciso reconhecer essas contradições terríveis do Brasil. O Garrincha encarna a contradição do nosso horror mais terrível e do nosso sentido mais profundo de produção inusitada de beleza”, reflete.
O gênio do “anjo das pernas tortas”
O historiador Luiz Antonio Simas evoca uma imagem carregada de simbolismos registrada no título em 1958: “O rei da Suécia cumprimenta o Pelé, um descendente de bantos sequestrados e escravizados que chegaram ao Brasil. Já o Garrincha é um indígena fulni-ô. Ver o rei da Suécia curvar-se à majestade do banto e à majestade fulni-ô é muito impactante”.
Em uma espécie de “semiótica do futebol”, Simas interpreta a genialidade de Garrincha como a expressão mais sublime do futebol brasileiro, simbolizada pelo drible do homem comum à opressão do Estado, um marcador implacável. Por isso, diz o historiador, Mané combatia, de certa forma, a estrutura colonialista eurocêntrica.
“Quando o Garrincha apresenta ao mundo a possibilidade do drible, é como se estivesse dizendo o seguinte: ‘olha, tem outro jeito de fazer as coisas'. Isso a gente pode levar para muito além do futebol. Garrincha era a arte de ocupar o vazio com a bola e seu corpo”, sintetiza o historiador, que traça um paralelo entre a arte futebolística do craque e a construção rítmica do samba.
“O babado do gênero é o sincopado que acontece entre a marcação do tempo e o contratempo. Existem várias formas de preencher esse vazio. João Gilberto é o dono do tempo no violão. No gramado, o tempo era do Mané. Tal como Exu, Garrincha é a espera do inesperado. É essa arte do sincopado, da ginga, brasileiríssima”, diz.
Garrincha representa, assim, o paradoxo brasileiro, do pau que bate no corpo e a baqueta que bate no couro do tambor. “Nós somos um país extremamente violento, fundado em pelourinhos, canaviais. Somos um empreendimento da morte. Isso é terrível. Ao mesmo tempo, nas brechas desse Brasil horroroso, foram se produzindo sentidos de vida a partir da beleza que são surpreendentes”, finaliza.