28/06/2022 - 16:42
A gravidez de Danielle, de Nova York, parecia estar indo bem, os testes e sonografias não indicavam nenhum problema. Na 29ª semana, porém, ela foi informada de que seu bebê portava numerosas malformações cerebrais: se sobrevivesse até o parto, sofreria.
Após a difícil decisão de interromper a gestação, veio outro desafio: como estava em estado tão adiantado, ela teve que viajar até o Novo México para se submeter à intervenção. “O que meu marido e eu vivenciamos foi simplesmente horrível”, contou ao grupo pelos direitos de reprodução Planned Parenthood, que a atendeu. “Quem não passou pelo que eu passei, não entende.”
Mas a tendência é sua história se tornar muito mais comum nos Estados Unidos desde 24 de junho, quando a Suprema Corte revogou a histórica decisão Roe vs. Wade, de 1973, que garantia o direito ao aborto em nível nacional. No momento, a intervenção é ilegal ou será em breve em 16 estados americanos.
O Instituto Guttmacher, de pesquisa e políticas sobre saúde reprodutiva, prevê que um total de 26 estados adotará a proibição. “A coisa muda literalmente de hora em hora”, conta Adele Costa, diretora de comunicações da Rede Nacional de Saúde Feminina. Embora as mulheres ainda tenham alternativas nos estados onde vigora a proibição, vários deles “estão correndo” para tornar o aborto ilegal “agora mesmo”.
Duas formas de aborto
O aborto tem atualmente duas formas: cirúrgica e médica. Na primeira, conhecida como dilatação e curetagem, o profissional aplica um procedimento de sucção seguido por raspadura do útero, para remover manualmente a gestação.
O aborto médico, ou “pílula de aborto”, envolve duas medicações: mifepristona é ministrada oralmente para interromper a gestação; e 24 ou 48 horas mais tarde misoprostol é aplicado por via vaginal ou oral, fazendo o organismo expelir o revestimento uterino, num processo análogo ao aborto natural.
Segundo a ginecologista-obstetra Anna Whelan, especializada em gravidez de alto risco, o aborto médico “funciona melhor até dez semanas, mas pode ser aplicado com até 12 semanas de gravidez”.
Essas semanas, ou idade gestacional, são calculadas a partir do primeiro dia da última menstruação. Em diversos estados americanos, a interdição ao aborto vigora já a partir de seis semanas. A essa altura, as mulheres possivelmente ainda não sabem que estão grávidas – já que o ciclo menstrual típico leva por volta de quatro semanas –, e o término da gestação não é mais permitido.
Autogerido, seguro e – ainda – legal
Segundo Costa “o aborto médico, honestamente, é a tábua de salvação no momento”. Ele pode ser acessado via telemedicina, e os medicamentos, encomendados online por US$40 a US600 e entregues pelo correio. A disponibilidade na internet elimina a necessidade de viajar, e “você pode tomar a pílula na privacidade do seu lar”.
Privacidade é especialmente importante em estados como Texas, onde a Lei SB8 estimula os cidadãos comuns a delataram seus vizinhos, em caso de suspeita de aborto.
Whelan enfatiza que esse “aborto autogerido” é uma prática segura e bem estudada. “Os medicamentos são mais seguros do que tomar um [analgésico] Tylenol e têm boa taxa de sucesso, com baixa necessidade de intervenção e baixo risco de hemorragia.”
Quem esteja entre os 2% das pacientes que apresentam complicações, que podem incluir grave sangramento, dores fortes e febre, deve procurar um hospital, mas não precisa contar aos atendentes sobre as pílulas. “Nós, como médicos ou até ginecologistas, não temos como saber se alguém tomou remédio para aborto ou está tendo um aborto espontâneo.”
Na maioria dos estados dos EUA ainda é legal organizar o aborto médico online, embora alguns estados repressivos estejam tentando fechar essa brecha. Porém, “no momento eu não sei de nenhum plano para começar a abrir a correspondência das pessoas”, afirma Costa.
Por outro lado, em estados como o Texas, até, mesmo ao se informar sobre as opções de aborto, “encontre um jeito de navegar anonimamente e não dê o seu nome, pois é algo que eles podem usar contra você, infelizmente”.
“Foi ridículo”
Para as que ultrapassaram a marca das 12 semanas, há a opção de viajar até um outro estado sem proibição a fim de obter um aborto cirúrgico. Tal empreitada, porém, “significa ficar longe dos filhos, do trabalho, e o custo da viagem – como todas sabemos, os preços da gasolina estão incrivelmente altos”, observa Whelan.
“Com certeza, é uma carga extra para as pacientes. A gente sabe que as restrições ao aborto são especialmente danosas para pacientes de cor, sobretudo negras ou latinas, assim como para quem vive abaixo da linha da pobreza.”
Para quem mora em “desertos de aborto”, como, por exemplo, a Costa do Golfo, no sul dos EUA, tal viagem pode ser de centenas de quilômetros. Uma boa notícia é a possibilidade de pedir assistência financeira, lembra Costa: “[Organização pró-aborto] Plan C, seu fundo local para abortos… há tantas organizações se fortalecendo agora para ajudar a cobrir o custo.”
Alguns empregadores, também, como Amazon, Disney e Starbucks, estão oferecendo um bônus de viagem a funcionárias de estados onde o aborto é proibido. Fato é, porém, que esse esforço adicional acrescenta estresse desnecessário a um procedimento que nunca foi agradável.
Seema, de Nova York, decidiu abortar às 28 semanas, por ter uma gravidez de alto risco e estar numa relação abusiva. A viagem forçada a Washington lhe custou US$9 mil (parte dos quais ainda será ressarcida).
Após a intervenção: “Eu me sinto aliviada, estava estressada. Não fiquei pê da vida pelo que tive que passar, mas por ter que deixar meu estado para que fosse feito”, compartilhou na organização We Testify, voltada à desestigmatização do aborto. “Foi ridículo.”