10/01/2017 - 11:45
A engenheira agrônoma síria Rima Eissa, de 41 anos, prefere olhar o menos possível para trás. A cabeça está focada no futuro, um não tão distante e que se encaixe na sua atual realidade, com novas amizades, um idioma estranho e trabalho em uma área totalmente diferente. “O que acha de investir em beleza no Brasil?”, pergunta ao contar o plano de abrir uma clínica estética. Apesar de ter adquirido há pouco tempo uma maca de massagem, já sonha alto. Nem parece que chegou há um ano, fugindo dos conflitos na Síria, com poucas informações a respeito do Brasil. Como ela, refugiados de diversas nacionalidades, abrigados no país nos últimos anos, tentam reconstruir a vida aqui sem esquecer suas origens.
O Brasil possui oficialmente 8.863 refugiados, segundo o último relatório, divulgado em maio, do Conselho Nacional para os Refugiados (Conare), órgão do Ministério da Justiça. Eles representam 79 nacionalidades, em especial sírios (2.298), angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses (968) e palestinos (376). Sem contar populações em situação análoga ao refúgio, como os haitianos, vítimas de desastres naturais e da pobreza. Apenas entre 2010 e 2015, o número de solicitações subiu 2.868%. O principal motivo foi a guerra na Síria, pior crise humanitária em 70 anos, que obrigou cerca de 5 milhões de pessoas a deixar sua terra natal. Em 2013, o governo de Dilma Rousseff facilitou a entrada desses imigrantes.
Desde então, surgiram várias ações sociais dedicadas a criar ferramentas para possibilitar a inserção deles, indo além do acolhimento emergencial. Uma dessas iniciativas é do Adus – Instituto de Reintegração do Refugiado. O trabalho, feito por voluntários desde 2010, envolve a realização de eventos culturais e a orientação para a recolocação profissional. Há um ano, conseguiram uma sede própria, em São Paulo – antes, as reuniões eram improvisadas em cafés ou residências. Dessa forma, em parceria com a plataforma social Atados, viabilizaram um financiamento coletivo para realizar a Copa dos Refugiados, em 2014, torneio de futebol conquistado pelo Haiti.
Traumas de guerra
Hoje, o Adus tem cerca de 2.300 refugiados registrados, a quem oferece serviços como atendimento de saúde mental, com psicólogos que falam inglês, francês ou árabe. “Há vários casos de traumas de guerra, e apenas a situação de ser forçado a sair do seu país já traz consequências”, afirma Erika Omori, coordenadora de comunicação. O forte do instituto são os cursos de português, primeira barreira que o imigrante de países não lusófonos encontra ao buscar trabalho. Há também oficinas de empreendedorismo realizadas em parceria com a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp). É possível até adaptar aulas por videoconferência, em empresas que empregarem refugiados.
O Adus ainda organiza bazares, que permitem aos beneficiados oferecer serviços. Em um desses eventos, a síria Rima, aluna de português, investiu na carreira de massoterapeuta. Ela havia feito cursos na área em Damasco (capital síria) e em Dubai e, no Brasil, adotou essa profissão. Inscrita em uma faculdade de estética, também dá aulas de aeróbica e de pilates. Casos como o de Rima são comuns. Quase sempre o refugiado trabalha em algo diferente de sua formação, seja pela burocracia para validar seu diploma aqui ou por perceber uma abertura maior em outra área. Uma forma de criar oportunidades é apostar nos conhecimentos que os imigrantes trazem consigo e torná-los professores.
Em 2015, o Adus ajudou a criar o Abraço Cultural, projeto presente no Rio de Janeiro e em São Paulo no qual estrangeiros dão aulas de idiomas para brasileiros. “A ideia era tornar os refugiados protagonistas da própria geração de renda, dando-lhes autonomia”, conta a coordenadora Mari Garbelini. São aulas de inglês, francês, espanhol e árabe com professores capacitados para desenvolver a didática. Na primeira turma, a expectativa era de 40 alunos, dez por classe. Mais de 500 se inscreveram. “Percebemos que havia muito interesse dos brasileiros não só em aprender um idioma, mas também em conhecer melhor outras culturas”, diz Mari.
Para os instrutores, o ganho supera a independência financeira. Além de se sentirem valorizados, fazem amizade com os alunos. “É a chance de se reintegrar ao mercado usando algo que trouxemos conosco: o idioma natal e a herança cultural”, afirma o professor de francês Steve Kikudi, 18 anos, do Congo. Outra conquista indireta do projeto é unir a comunidade de refugiados, sem se prender a bandeiras ou raízes étnicas. “No começo, havia certa desconfiança entre as nacionalidades”, revela Mari. “Mas agora a maioria dos professores convive há bastante tempo, eles viraram amigos e aprendem um pouco sobre a cultura um do outro.”
Xenofobia atenuada
Essa integração ajuda a quebrar a barreira da xenofobia, ainda presente, e a atrair políticas públicas. Apesar do apoio do Conare e da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), as iniciativas mais voltadas a recolocar o refugiado no mercado de trabalho são conduzidas por organizações não governamentais. Em Curitiba, onde também se fixaram muitos imigrantes, o Linyon preenche esse espaço. Formada em Relações Internacionais, Marcela Milano, 26 anos, idealizou o projeto ao observar que uma das dificuldades vividas pelos imigrantes é vencer a falta de informação do brasileiro sobre o papel deles.
Além de trabalhar com recolocação profissional e capacitação, ela faz a ponte com escolas e empresas em uma campanha de conscientização. “Mostramos como é a legislação no Brasil para se abrir uma empresa e trabalhamos temas como direitos trabalhistas, liderança e desenvolvimento pessoal”, diz. Vários optam pela área gastronômica. “Há muita procura por restaurantes étnicos e a comida é a forma mais fácil de integrar as pessoas.”
É o caso de Bernardo Domingos, 39 anos, de Guiné-Bissau que participou do primeiro grupo de empreendedores do Linyon. Desde 2015 no Brasil, ele escolheu Curitiba, pois um primo já morava lá. Em seu país, era supervisor de telemarketing em uma empresa de telefonia móvel. Hoje, estuda letras e faz um curso de culinária com a ONG Gastromotiva. “Com a crise, não pude escolher com o que trabalhar”, afirma. “E quero ter formação em diversas áreas, porque, se não encontrar algo de um lado, consigo do outro.”
A classe de empreendedorismo de Domingos acaba no fim de novembro, com outros 11 alunos. Para participar, é preciso estar totalmente legalizado e falar português no nível intermediário. Em um ano, o projeto cadastrou 543 currículos de refugiados de Angola, Síria, Congo, Palestina, Egito, Venezuela, Colômbia e Guiné-Bissau. “Muitos haitianos com quem trabalhamos voltaram antes da passagem do último furacão”, diz Marcela, lembrando que boa parte deles não pretende ficar aqui. “O objetivo, muitas vezes, é ganhar dinheiro e voltar para reconstruir seus países, o que continua sendo válido.”
O sonho de retornar é defendido pelo ativista Hasan Zarif, em São Paulo. Brasileiro, filho de palestinos, ele milita no Movimento Palestina para Todos (Mopat) e organiza o acolhimento de refugiados que têm o árabe como primeiro idioma. Engajado, chegou a morar na Ocupação Leila Khaled, prédio na Liberdade (o bairro oriental de São Paulo) que abriga 60 árabes e 100 brasileiros desde o fim de 2015. “A principal dificuldade de todos os refugiados é a questão da moradia e muitos viviam em condições horríveis, pagando caro por isso”, afirma. Na ocupação, conseguiram se mobilizar melhor, até politicamente, defendendo a bandeira do retorno à Palestina.
A força da culinária
A principal ferramenta na luta pela integração do grupo tem sido a culinária árabe. A princípio, Zarif organizou alguns refugiados para fazer bufê em festas. Depois, ficaram conhecidos ao abraçar o Jantar dos Refugiados, noite gastronômica da loja Fatiado Discos, todas as terças-feiras. Em janeiro, ele abriu o próprio restaurante, o Al Janiah, centro do debate da Frente Independente de Refugiados e Imigrantes, reunindo não só árabes e palestinos, mas também africanos e sul-americanos. Entre os funcionários do restaurante (que em dezembro muda-se para um espaço maior, na Bela Vista), há oito refugiados.
Um deles é Mohammed Othman, 28 anos, palestino da Síria, onde trabalhava na indústria farmacêutica. Ele veio em 2014 para o Brasil, único país a lhe conceder o visto. “Foi a primeira vez tão longe de casa, conhecendo uma nova língua”, recorda. Trabalhou em dois restaurantes e morou em quatro lugares. Há dois meses, alugou uma casa no centro com amigos. “Primeiro lugar tranquilo em que vivo desde que cheguei.” Já seu irmão Rami, 31 anos, cortava cabelo em Damasco. Passou os primeiros meses em São Paulo em uma barbearia. Depois também partiu para o fogão e ambos fazem parte da equipe do Al Janiah. “Em casa, éramos apenas eu, meu irmão e minha mãe, e ela nos ensinou a cozinhar desde crianças”, afirma.
Os talentos culinários estão em alta entre os refugiados. Para constatar, basta abrir a página do Migraflix, plataforma digital desenvolvida para os imigrantes oferecerem serviços. Entre uma oficina de dança colombiana e outra de música do Togo, grande parte das ofertas envolve sabores e aromas. “Em cada atividade, a gente cria um diálogo entre o estrangeiro e o brasileiro”, comenta um dos idealizadores, o administrador de empresas argentino Jonathan Berezovsky. “Além de você aprender sobre comida, vai entender quem é o refugiado e identificar-se com ele, porque o professor também conta sua história.”
Como a sorridente Olga Yavo, 45 anos, da Costa do Marfim, que deu sua primeira aula sobre pratos típicos de seu país em outubro. No Brasil desde 2014, ela aprendeu rapidamente o português por ter estudado espanhol no curso de letras. A dificuldade para validar o diploma aqui a impediu de fazer uma pós-graduação. Então, decidiu estudar fisioterapia e começou a cuidar de idosos. Também entrou para a equipe do Abraço Cultural, ensinando francês. A empreitada de Olga na cozinha é nova, mas tem um toque nostálgico. “No meu país, eu costumava fazer bufê de casamentos”, afirma. “Fico alegre por passar adiante um pouco da cultura do meu país.”
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Flores para um mundo melhor
Brasileiros também participam por conta própria das missões a campos de refugiados na Europa. Um dos projetos mais simples é o Flores para os Refugiados. Dona de uma empresa de arqueologia urbana, a paulistana Kety Shapazian, 49 anos, vende arranjos de flores para viabilizar as viagens dela e da filha Gabriela, 16 anos, à ilha de Lesbos, na Grécia, porta de entrada para a Europa. Há um ano, no auge da crise dos refugiados sírios, elas não suportaram acompanhar as notícias pela imprensa e foram até lá ajudar.
Pelo Facebook, contataram outros voluntários de vários países, formaram uma rede solidária e ajudaram a alimentar milhares de refugiados na ilha. “Cada vez que íamos às saídas das balsas, distribuíamos de 500 a 600 sacolas de comida”, afirma. A ideia era passar duas semanas. Acabaram ficando 50 dias. E Gabriela já voltou outras vezes. ”Essa é a missão dela, não vai parar”, orgulha-se Kety. O projeto surgiu da necessidade de custear esse trabalho social. Mãe e filha atendem encomendas e montam todo fim de semana uma barraquinha no Armazém da Cidade, na Vila Madalena.
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Debate no cinema e no teatro
Os refugiados chegaram também aos palcos e telonas. No cinema, o ator e diretor Germano Pereira lançará em breve Somos Todos Estrangeiros, documentário que retrata os refugiados sírios e palestinos em busca de abrigo no Brasil. Outro título destinado às salas comerciais, Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, mistura ficção e documentário ao apresentar a rotina de uma ocupação famosa na capital paulista, onde também vivem muitos refugiados.
No teatro, a peça São Paulo Refúgio, com texto e direção de Conrado Dess, utiliza uma série de depoimentos de imigrantes em situação de vulnerabilidade para construir diversas cenas. Entre os atores figura um congolês, Tresor Muteba. Apresentada inicialmente em São Paulo, a obra ficou quatro meses em cartaz no Rio de Janeiro, onde foi adaptada para incluir a realidade local. A partir de novembro, ela fará uma turnê pelo país e voltará a ser encenada no local de origem.