09/07/2022 - 6:38
Numa das batalhas mais sangrentas em solo europeu, em 18 de junho de 1815, o exército francês comandado por Napoleão Bonaparte perdeu o confronto decisivo contra as tropas britânicas, comandadas pelo Duque de Wellington, e prussianas, lideradas pelo marechal Gebhard Leberecht von Blücher. No final, na pequena cidade de Waterloo, ao sul de Bruxelas, havia mais de 53 mil homens mortos.
Curiosamente, até hoje apenas alguns restos mortais foram encontrados em escavações. E não foram encontrados vestígios de valas comuns. Usando cartas, pinturas, artigos de jornal e relatos pessoais de escritores, poetas, pintores, diplomatas e espectadores da época, o arqueólogo britânico e professor Tony Pollard reconstruiu o que aconteceu nos dias e semanas após a Batalha de Waterloo.
De acordo com Pollard, apenas alguns dias depois do fim da batalha, já chegaram a Waterloo os primeiros curiosos e saqueadores. Testemunhas relataram que a população local roubou roupas e objetos pessoais antes de enterrar os mortos. “Muitos vieram para roubar os pertences dos mortos, alguns até roubaram dentes para fazer próteses, outros vieram apenas para observar o que havia acontecido”, explica Pollard.
De acordo com o arqueólogo, vários negociantes de ossos estavam entre os saqueadores. “Os campos de batalha da Europa eram boas fontes de ossos”, contou o diretor do Centro de Arqueologia do Campo de Batalha da Universidade de Glasgow ao Journal of Conflict Archaeology.
Ossos eram usados para adubo na agricultura
“Pelo menos três artigos de jornal da década de 1820 mencionam o recolhimento de ossos humanos de campos de batalha europeus para fazer fertilizante”, diz Pollard. “Nas duas décadas que se seguiram à Batalha de Waterloo, os campos de batalha europeus forneceram um rico suprimento de material para ser transformado em farinha de ossos, que era usada como fertilizante antes da descoberta de superfosfatos na década de 1840.”
Aparentemente, um procedimento semelhante aconteceu com os mortos da Batalha das Nações, perto de Leipzig, na Alemanha, em que uma aliança de tropas da Prússia, Áustria, Suécia e Rússia triunfou sobre Napoleão Bonaparte em 1813. Cerca de 92 mil dos cerca de 600 mil soldados envolvidos morreram.
Um jornal inglês noticiou em novembro de 1829 que um proprietário de terras escocês havia comprado um cargueiro inteiro carregado de ossos do campo de batalha de Leipzig para transformá-los em fertilizante.
Enormes pilhas de cadáveres
Muitos ingleses em particular foram atraídos para o famoso campo de batalha onde Napoleão Bonaparte sofreu sua derrota esmagadora que levou à sua abdicação e ao fim do Império Francês. “Vivenciar seu Waterloo” ainda hoje é uma expressão sinônima de derrota total.
Nos registros detalhados, descrições e pinturas feitas por escritores, poetas, pintores, diplomatas e espectadores do campo de batalha em Waterloo, as testemunhas relataram enormes montanhas de cadáveres que dificilmente poderiam ser manejados. Sempre que possível, os mortos eram enterrados em valas comuns ou em valas existentes no campo de batalha.
Muitas vezes, porém, os cadáveres eram queimados. A inglesa Charlotte Eaton relatou que as valas comuns cavadas não eram suficientes para todos os corpos: “As covas foram cavadas, mas seu conteúdo se projetava acima da superfície do solo”, escreveu Eaton, que viveu em Bruxelas em 1815. “Esses montes pavorosos foram, portanto, cobertos com madeira e incendiados.”
O fato de que muitos cadáveres foram queimados em vez de enterrados também foi descrito pelo comerciante escocês James Ker, que visitou Waterloo imediatamente após a batalha: “No lado francês do campo, o fedor era tão forte que, em vez de enterrá-los, se julgou razoável queimar os mortos, homens e cavalos, por falta de tempo e de ajudantes.”
As valas comuns foram saqueadas mais tarde?
O arqueólogo Pollard acha improvável que ainda sejam encontradas valas comuns. “Apesar da liberdade artística e do exagero sobre o número de corpos nas valas comuns, os cadáveres foram claramente descartados em vários locais no campo de batalha, por isso é um tanto surpreendente que não haja registros confiáveis da descoberta de uma vala comum”, explica o arqueólogo.
As supostas valas comuns podem realmente ser bem localizadas com base em relatos e fotos de testemunhas oculares: supostamente a área ao redor de Hougoumont, uma área perto de La Haye Sainte e um areal em La Belle Alliance.
No entanto, esses lugares já foram extensivamente examinados por arqueólogos com escavações de teste e radar de penetração no solo, em vão. Não foram encontradas ali valas comuns ou locais de queima de corpos.
“No geral, as investigações não mostraram nenhuma evidência de covas, seja na forma de relíquias humanas, como ossos, seja de covas identificáveis”, escreve Pollard. “Uma razão para essa falta de sepulturas pode ser a queima dos mortos, mas mesmo isso pode explicar apenas parcialmente as inúmeras relíquias que desapareceram.”
Segundo o arqueólogo britânico, é bem possível que a população local tenha ajudado os comerciantes de ossos. “Os moradores podem ter mostrado a localização das valas comuns aos compradores de ossos, já que muitos deles poderiam ter lembranças vívidas dos enterros ou até mesmo ter ajudado nas escavações.”
Afinal, o comércio de ossos era um negócio lucrativo, pois havia um grande número deles nas valas comuns.
A pesquisa continua
Do ponto de vista de hoje, no entanto, é muito surpreendente que uma perturbação tão irreverente da paz dos mortos tenha sido simplesmente aceita ou simplesmente silenciada. De acordo com Pollard, “em nenhum lugar dos registros foi comentada uma escavação em grande escala das valas comuns”.
Provavelmente só haverá clareza quando as valas comuns descritas ou pelo menos vestígios delas forem encontrados. “Se restos humanos foram removidos na medida sugerida, em alguns casos ainda deve haver evidências arqueológicas das sepulturas de onde foram retirados”, disse Pollard.
“Vamos retornar a Waterloo”, anunciou o diretor do Centro de Arqueologia de Campos de Batalha da Universidade de Glasgow. Ele quer encontrar sepulturas com base em registros contemporâneos, com suas próprias escavações e medições do solo. Talvez isso traga certeza sobre o que realmente aconteceu com a dezenas de milhares de combatentes mortos em Waterloo.