17/01/2017 - 11:39
Lançada em 1972 no Brasil, PLANETA reproduziu, em sua primeira fase, diversos textos literários, de autores renomados como H. P. Lovecraft, Ambrose Bierce, Robert Sheckley e o brasileiro Zélio Alves Pinto. A presença da literatura nas páginas da revista vinha na esteira da própria matriz francesa, Planète, fundada em 1961 por Louis Pauwels e Jacques Bergier. Sucesso estrondoso na época em que foi lançada em seu país, com tiragens de 100 mil exemplares, a revista ficou associada a uma literatura inovadora e de qualidade, que ainda em seu número 6 abriu espaço para um dos mais importantes escritores brasileiros: João Guimarães Rosa.
Planète, vale lembrar, foi uma derivação jornalística do best seller de Pauwels e Bergier O Despertar dos Mágicos, de 1960, em que os autores lançaram o movimento do realismo fantástico – um novo olhar sobre todos os setores do conhecimento, de confronto ao positivismo imperante e no qual ciência e tradição convivem harmoniosamente. “Uma revolução se opera a nossos olhos, e trata-se de um novo casamento inesperado da razão, no ápice de suas conquistas, com a intuição espiritual”, escreveram Pauwels e Bergier em O Despertar dos Mágicos.
Há alguns anos, ao examinar as cartas trocadas entre Guimarães Rosa e seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard, para sua tese, a aluna de pós-doutorado Márcia Valéria de Aguiar descobriu que o conto “A Terceira Margem do Rio”, de Primeiras Estórias, fora publicado na edição n° 6 de Planète, lançada em 1962. Foi algo surpreendente para ela: “Eu conhecia a PLANETA no Brasil”, diz Márcia. “Era criança e lembrava de meus pais com a revista. Sabia que ela havia causado uma comoção no país e que os autores de O Despertar dos Mágicos eram os editores da revista francesa. Ligava a PLANETA a ufologia, esoterismo, mas a Planète francesa eu não conhecia.”
Papel de destaque
À surpresa inicial sucedeu-se um cuidadoso estudo, que revelou a Márcia (que faz pós-doutorado no Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, sob supervisão de Gloria Carneiro do Amaral e com bolsa da Fapesp) a importância da revista na apresentação (ou popularização) de vários autores, principalmente latino-americanos, ao grande público francês.
Em “A Terceira Margem do Rio e o Realismo Fantástico da Revista Planète”, trabalho que apresentou no congresso “Vertentes do Fantástico”, realizado na Unesp em Assis (SP) em 2013, ela observa que, na seção “Literatura diferente”, a revista buscava “reabilitar autores e gêneros desprezados a priori pela cultura oficial e relegados ‘à segunda prateleira da estante’”, na expressão de Pauwels. “Dentre essa literatura considerada de segunda categoria”, prossegue, “destaca-se aquela que se alia à ciência ou que, de algum modo, trata de fenômenos inexplicáveis: a ficção científica, os contos de horror, todas as estórias que encontram no próprio real o fantástico”.
No número 1, Planète publicou um conto do americano H. P. Lovecraft, um mestre do terror com toques de fantasia e de ficção científica. A edição seguinte trouxe “A Escrita de Deus”, do argentino Jorge Luis Borges – que, embora já tivesse seu Ficções publicado na França pela editora Gallimard, na coleção Croix du Sud (dirigida por Roger Caillois, colaborador de Planète), tornou-se mais conhecido dos leitores franceses a partir daí. O mestre da ficção científica Arthur C. Clarke apareceu no n° 3, e vários outros escritores de destaque se sucederam, como Edgar Allan Poe, Miguel Angel Astúrias, Julio Cortázar, Ray Bradbury e Ambrose Bierce.
“Em uma palavra, todos os autores, recentes ou não, que não se enquadravam nas ‘hierarquias míticas’ socialmente estabelecidas e que, de algum modo, desvelavam o fantástico no real eram bem-vindos na Planète”, observa Márcia em seu trabalho. “A revista se tornou, assim, um novo veículo para a divulgação da literatura latino-americana. Ecoava a tendência de algumas editoras que haviam começado, já nos anos 1950, a publicar essa ‘literatura diferente’ na França.”
Sugestão de amiga
A primeira tradução de Guimarães Rosa para uma língua estrangeira foi publicada em 1961 na França: Buriti, que incluía os contos “Dao Lalalao”, “Le Message du Morne” e “La Fête à Manuelzão”. A crítica recebeu muito bem o livro, mas isso não garantia sucesso de público. Naquele ano, uma oficial de administração da Embaixada do Brasil em Paris e amiga de Guimarães Rosa, Maria José Frias, lhe escreveu em 19 de outubro pedindo-lhe autorização para propor o conto “A Terceira Margem do Rio” a Planète.
Na carta, ela justificava o pedido: “É uma revista inteligente, com colaboração interessante, e teu nome gravado naquelas páginas seria bom. No meu miolo considero que aquele conto coincidiria com as planetices dos editores. Manda os consentimentos necessários, e vou ver o herói que já traduziu livro teu aqui para a versão francesa.” Como não gostou da tradução do conto feita por Jean-Jacques Villard, a própria Maria José preparou uma versão mais sintética, que enviou ao escritor Maurice Pons a fim de que este a adaptasse para o francês.
Foi esse o texto que chegou a Pauwels e o seduziu. “Agradecendo a indicação de Maria Frias”, conta Márcia, “ele lhe escreve em maio de 1962: ‘É de fato uma obra-prima. Vou publicá-lo o mais rapidamente possível’. Efetivamente, o conto já pôde ser lido em setembro, na Planète n° 6”. A versão publicada, acompanhada de uma gravura de Claude Schürr, tinha em destaque a chamada “Uma obra-prima da literatura diferente. Um grande poeta e romancista brasileiro”. Abaixo, havia uma pequena biografia do escritor. Em epígrafe, uma frase do próprio conto – et ce disant, mon coeur avait le battement d’un compas… (“E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso…”).
Guimarães Rosa recebeu um exemplar da revista e gostou do que viu: “Tradução linda, naturalmente. Comovo-me, às pampas. Circulo-me, estufo, estouro-não-estouro. Você é: a Maria Milagreira, milagrosa. Do Rosa.” Mesmo encurtado, o conto impressiona, avalia Márcia, “e corresponde exatamente ao conceito de um fantástico que brota do próprio real. Não há nada que escape ao possível na realidade, mas a atitude do pai, o mistério de sua decisão e toda a simbologia ligada à água e, assim, ao rio, faz com que nos remetamos a outro plano”. Nas ideias e na forma como as expressou nesse conto, o grande Guimarães Rosa estava em perfeita sintonia com a revolucionária Planète.