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Há pelo menos 40 anos, a engenharia genética seduz cientistas com a esperança de curar doenças, acabar com as pragas nas lavouras, anular as fragilidades dos seres vivos. Agora, uma tecnologia chamada CRISPR permite desligar ou trocar pedaços de genes de forma pontual e prática. (Em novembro, noticiou-se que a técnica, usada na Califórnia, devolveu visão parcial a animais cegos.)

Em muitos casos, o pesquisador só precisa buscar uma sequência de bases no banco de dados que já está na internet e comprar o “kit CRISPR”. Se, por um lado, ganharam os cientistas dos pequenos laboratórios (os menos patrocinados), por outro, tamanha acessibilidade gerou uma corrida desregulada. Se o objetivo é chegar na frente, quem está disposto a parar para discutir parâmetros ou refletir sobre questões éticas?

CRISPR (sigla em inglês para Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas) nada mais é que um sistema de defesa comum das bactérias. Quando atacadas por um vírus, elas usam sequências de RNA (o ácido ribonucleico, responsável pela síntese de proteínas da célula) que se encaixam perfeitamente no DNA viral. Depois disso, uma enzima chamada Cas9 encontra o local certinho para cortar a carreira de genes do vírus e desativá-lo.

Recentemente, os pesquisadores descobriram que o Cas9 é muito preciso em relação ao local em que o DNA será cortado. Basta mudar o RNA enviado – as coordenadas – para repetir a mesma ação no genoma de qualquer ser vivo, com pouco risco de errar o alvo. Além disso, o processo todo pode ocorrer simultaneamente em quantas células for necessário.

Pode parecer complicado para quem não vive em um laboratório de genética. Mas lembra-se da sensação maravilhosa que você teve quando descobriu os comandos Ctrl-C/Ctrl-V no computador? Foi algo assim que os cientistas da área sentiram ao perceber que podiam usar o CRISPR-Cas9 na engenharia genética.

Bons e maus motivos

A CRISPR já foi usada para editar o genoma de vários seres vivos, de elefantes a laranjas. Bons motivos para isso não faltam. Um exemplo está na PRRS, síndrome que causa insuficiência respiratória e leva porcos à morte, gerando aos suinocultores americanos prejuízos anuais de US$ 600 milhões. Há pelo menos dois institutos desenvolvendo porcos resistentes ao vírus da doença.

Ao mesmo tempo, ganham destaque na mídia projetos excêntricos como o do laboratório de Harvard que investe na geração dos extintos mamutes em úteros artificiais. Ou o do grupo de chineses que criou uma espécie de miniporcos para vendê-los como animais de estimação. Mas há também as pesquisas urgentes. A CRISPR pode ser a solução para o controle do vírus da zika na América Latina.

Vários laboratórios estão trabalhando para modificar as características genéticas do mosquito Aedes aegypti e evitar que ele continue hospedando e transmitindo a doença. Os primeiros testes já foram realizados com sucesso, mas ainda não há um consenso sobre como usar os mosquitos mutantes. “Mesmo os insetos indesejados fazem parte de um ecossistema e de uma cadeia alimentar natural. Eliminá-los pode acarretar um desequilíbrio de proporção imprevisível”, alerta Fábio Arrojo, do laboratório de Genética Molecular da Unicamp.

A CRISPR já tem seu espaço também nas discussões sobre segurança alimentar. Se a população mundial continuar a crescer na atual proporção, em 2100 precisaremos produzir três vezes mais alimentos do que hoje. “E teremos de fazer isso usando a mesma área de terra, menos água, menos fósforo. A única maneira, portanto, é implementando novas técnicas”, afirma Francisco Aragão, responsável pelo Laboratório de Engenharia Genética Aplicada à Agricultura Tropical da Embrapa. Aragão reforça o coro dos cientistas que defendem a manipulação genética como forma de aprimorar a agricultura.

No laboratório onde trabalha, a CRISPR já foi usada para produzir alface com mais ácido fólico, soja com maior concentração de ácido oleico e mamonas livres de toxinas. “A mudança genética que fazemos hoje nos laboratórios é uma continuação do que o homem já vem fazendo nos últimos 10 mil anos”, diz. “Não teríamos plantações de feijão ou de milho se não tivesse ocorrido uma seleção genética com a mão humana.”

Novas versões

Antes de haver agricultura, muitos vegetais tinham características bem diferentes das que conhecemos. O feijão e o milho, por exemplo, tinham proteínas tóxicas e alergênicas para que os predadores (no caso, nós) não pudessem consumi-los. Foi selecionando os frutos mutantes, aqueles mais fáceis de plantar e de comer, que chegamos aos modelos hoje expostos em feiras e supermercados.

Por que, então, há tanta polêmica sobre a produção de alimentos geneticamente modificados? É que os pesquisadores do outro lado do debate afirmam que faltam testes para comprovar a segurança no consumo de vegetais que não foram modificados num acidente da natureza, mas pelas mãos do homem. No Brasil, ainda não há regulação sobre o uso da CRISPR nos laboratórios voltados para alimentos.

Uma área específica tem gerado mais preocupação aos cientistas em relação à CRISPR: a edição do genoma humano. A biotecnologia pode ser a solução para os desafios da medicina moderna, mas também pode abrir a “Caixa de Pandora 2.0”. Na Universidade Cornell (EUA), a brasileira Vera Rinaldi pesquisa os genes ligados à infertilidade em humanos. Antes de aplicar a CRISPR, ela recorreu à bioinformática: um conjunto de softwares calcula quais são os pedaços do genoma envolvidos em cada característica do organismo.

“Em menos de dois anos, geramos cinco ratinhos cobaias com os genes indicados. E descobrimos que apenas um deles realmente era responsável pela infertilidade. Isso mostra o nível de imprecisão dos computadores e a eficiência da CRISPR para avançar no projeto”, afirma Vera. Com os resultados, a pesquisadora pretende desenvolver terapias para tratar um problema que atinge cerca de 10% dos adultos em idade reprodutiva.

Preencha as lacunas

Quando apresentados estudos sérios e qualidade nas análises clínicas, poucos são contra a terapia genética para tratar doenças. Mas falar em edição no genoma de embriões humanos ainda é tabu. Em abril de 2015, cientistas chineses divulgaram os resultados de experimentos com a CRISPR em embriões de uma clínica de fertilização in vitro. Eles teriam usado embriões “inviáveis” (que não poderiam gerar vida) para tentar alterar o gene que causa uma doença no sangue, a talassemia beta.

Segundo a publicação, o índice de erros obtidos foi alto, mas a simples notícia bastou para provocar burburinho e lotar congressos e painéis de bioética pelo mundo. Em teoria, tudo o que for alterado nas células germinativas – espermatozoides e óvulos – seria transferido geneticamente para as gerações seguintes do indivíduo que for gerado. A ciência pode criar um ser humano mais saudável, mais bonito, mais inteligente, ou pôr em risco todos os filhos e netos que ele tiver.

Para Bill Skarnes, líder do laboratório de engenharia com células-tronco no Instituto Wellcome Trust Sanger, na Inglaterra, é preciso pensar também na desigualdade que essa tecnologia pode gerar: “Modificar células germinativas é muito caro, invasivo e tem riscos imprevisíveis. Se isso for aplicado um dia, certamente será em benefício de um pequeno grupo da elite”.

Há pouco mais de dez anos, os estados membros da Unesco assinaram a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. No documento, o genoma humano é tratado como patrimônio da humanidade, e foram listadas regras para sua preservação e respeito. Mas a cada novo avanço da ciência o debate ressurge, porque a ética é um assunto que nunca se esgota e não pode ser tratada exclusivamente por um grupo ou outro.

“Entre os grandes problemas práticos da bioética está a dificuldade de se trabalhar a relação entre a certeza do que é benéfico e a dúvida sobre os limites”, diz Volnei Garrafa, membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco. “A ética deve ser delegada à sociedade como um todo, com seus organismos representativos privados e públicos.”

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