27/09/2022 - 4:20
Havia um intencional clima de otimismo naquele 27 de setembro de 1972, quando foi inaugurada a BR-230, mais conhecida como rodovia Transamazônica. O Brasil vivia o auge da ditadura militar e esforços de propaganda procuravam dar a ideia de grandeza.
Conforme registrou o jornal O Estado de S.Paulo, o então ministro dos Transportes, Mário Andreazza (1918-1988) foi ufanista. Disse ele que a Transamazônica “simboliza o poder criador do homem brasileiro e sobretudo a atitude de uma nação jovem e corajosa, decidida a enfrentar com firmeza e determinação todos os problemas que lhe dificultam o acesso ao pleno desenvolvimento econômico e social”.
Na visão predominante naqueles dias, desenvolver significava avançar sobre a floresta. A mentalidade era de uma verdadeira batalha entre civilização e natureza. A cerimônia de inauguração do primeiro trecho, com 1.253 quilômetros, ocorreu em um ponto a cinco quilômetros de Altamira, com a presença do então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici.
A historiadora Janaína Martins Cordeiro, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta que a Transamazônica estava dentro da ideia, presente no governo Médici, de “construção de um Brasil potência como projeto da política econômica da ditadura”.
“Símbolo do futuro”
Em seu livro Reinventando o Otimismo, o historiador Carlos Fico, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), situa a rodovia como parte do sonho histórico brasileiro de integração plena do território, inclusive a região amazônica.
“Houve um investimento sem igual em propaganda e uma conjuntura que favoreceu a emergência de um nacionalismo desenvolvimentista extremamente ufanista e otimista”, contextualiza Cordeiro. “A Transamazônica passou a ser o símbolo de um país que se realizava, o futuro que tinha chegado. Era o homem se sobrepondo à floresta, domando as forças da natureza.”
Para embasar a expansão sobre a floresta, havia teorias conspiratórias. Como lembra o historiador César Martins de Souza, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e editor da Nova Revista Amazônica, argumentava-se que havia “interesses estrangeiros em tomar a Amazônia” e, por isso, era necessário ocupá-la e explorá-la. “Essas ideias, que eu chamo de ideologias, embasavam a construção de projetos agropecuários e minerais [na região]”, pontua o historiador.
“Rasgamos o inferno verde”
Além de simbolizar o que se entendia por desenvolvimento, a Transamazônica deixou clara a prioridade nacional pelo transporte rodoviário, em detrimento de outras possibilidades.
Além disso, como ressalta o antropólogo Fred Lucio, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), representava um acesso a áreas remotas, em nome de uma suposta segurança nacional. “Havia uma preocupação com as fronteiras do Brasil. A defesa da Amazônia fazia parte do fantasma da segurança nacional”, diz ele.
Segundo a imprensa da época, a rodovia já trazia ocupação humana para a floresta, com 250 “colonos” chegando por dia à região de Altamira e se fixando nas redondezas da Transamazônica.
Slogans governamentais incentivavam isso, dizendo que a Amazônia era “uma terra sem homens para homens sem terras”, por exemplo.
“Chega de lendas, vamos faturar”, apelava anúncio publicado pelo governo, na imprensa, para divulgar as ações da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro.”
Anúncios de empresas ligadas à construção, publicados na época, reforçavam a ideia. “Para unir o Brasil, nós rasgamos o inferno verde”, escreveu a construtora Andrade Gutierrez. “A Amazônia já era”, exaltou a companhia Netumar.
“A propaganda mostrava árvores sendo derrubadas, a estrada aberta onde antes havia, segundo o discurso, uma natureza hostil, selvagem. Predominava a ideia da civilização dominando o selvagem, o indomável”, aponta Cordeiro.
A tônica era a ideia de “conquista da Amazônia”, explica o historiador Souza. “Como se a floresta fosse um inimigo a ser vencido”, acrescenta.
Projeto de ocupação e exploração da Amazônia
Do plano inicial de 8 mil quilômetros, a Transamazônica acabou ficando com pouco mais da metade. Cinquenta anos depois, a história demonstra que o projeto foi um desastre ambiental.
“Havia estimativa de escavação de aproximadamente 35 milhões de metros cúbicos de terra e foram erguidos cerca de 4 mil metros de pontes de madeira. Nessa mesma proporção, o desmatamento já alcançava cerca de 100 milhões de metros quadrados. Árvores com mais de 50 metros de altura e centenas de anos de vida iam ao chão em poucos minutos e, com elas, toda uma biota era arrancada e destruída”, comenta Souza.
“As obras transformaram e transtornaram a região, pois a Transamazônica não era apenas uma estrada que objetivava atravessar a Amazônia no sentido Leste-Oeste e integrar a região ao restante do país e o Atlântico ao Pacífico, permitindo ao Brasil acessar com maior facilidade e menores custos mercados asiáticos, mas uma obra que integrava diversos projetos de ocupação e exploração da Amazônia”, afirma.
“Dessa forma, ela gerou um novo desenho da cartografia da região, pautada no desenvolvimentismo, com fortes impactos socioambientais sobre as populações da Amazônia, como povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e populações urbanas, bem como sobre a fauna e flora.”
Quem ousava fazer uma crítica ambiental costumava ser rebatido com teorias conspiratórias. Em entrevista publicada na revista Manchete, na época, o ministro Andreazza argumentou que por trás da defesa ecológica havia interesses estrangeiros em dominar a floresta.
“Os debates ambientais ainda não se davam de modo sistemático como atualmente, devido ao momento histórico”, pontua Souza.
Desmatamento e “desenvolvimento fajuto”
Professor na Universidade de Bristol, no Reino Unido, o biólogo Filipe França explica que a construção de rodovias em regiões florestais acarreta dois danos ambientais e, nesse sentido, analisar a Transamazônica é mergulhar em “um clássico exemplo”.
O primeiro dano é aquele que parece mais óbvio: o desmatamento, a remoção florestal para dar espaço à via. “Além da perda de árvores, ocorre a fragmentação da floresta, com a criação de ilhas de vegetação [divididas por áreas desmatadas]”, explica. “A estrada divide os ecossistemas. Isso leva a mortalidade de espécies e redução da diversidade genética.”
Depois do primeiro momento, contudo, esse processo continua, porque, com a facilidade de acesso, grupos passam a explorar cada vez mais o entorno, estradas secundárias — ainda que extraoficiais — são criadas e isso aumenta a escala de degradação. “A floresta ainda fica de pé, mas perde biodiversidade”, argumenta.
O antropólogo Fred Lucio resume as consequências da construção da Transamazônica da seguinte maneira: “destruição e extermínio de populações indígenas”, a transformação do entorno em “um lugar deplorável” e um “desenvolvimento fajuto para a região”.