01/07/2011 - 0:00
O palácio da Alhambra, construído pelos mouros no século 14, visto do mirante de San Nicolás.
ete anos antes de morrer, durante uma reunião com familiares e amigos, o poeta espanhol Federico García Lorca fez uma declaração de amor a Granada, uma das principais cidades da região da Andaluzia, no sul da Espanha, onde viveu e escreveu grande parte de sua obra: “Se, pela graça de Deus, eu me tornar famoso, metade do que a fama irá me dar pertence a Granada, que me formou e me fez o que sou, um poeta de nascença.”
Huerta de San Vicente, a casa em que nasceu Lorca, na periferia de Granada. Aqui foi escrita peça A Casa de Bernarda Alba.
Isso foi em 1929. Lorca tinha 30 anos e gozava de prestígio como artista, uma fama que lhe custaria a vida, pois seria fuzilado pelos soldados nacionalistas do general Francisco Franco, logo no início da Guerra Civil Espanhola. Os franquistas diziam que Lorca era “mais perigoso com a caneta do que os outros com o revólver”, frase que virou símbolo do seu carisma. Socialista convicto e homossexual, o poeta foi um alvo contumaz dos espanhóis conservadores e da Igreja Católica, que o consideravam um símbolo da rebeldia esquerdista republicana.
García Lorca nasceu em 5 de junho de 1898, no pequeno vilarejo de Fuente Vaqueros, a dez quilômetros da cidade que influenciaria sua vida e obra. Estudou direito em Granada e em 1919 mudou-se para Madri, onde ficou amigo de artistas como Luis Buñuel e Salvador Dalí. Sua carreira o levou a locais distantes, como Nova York, Havana e Buenos Aires, mas sempre voltava a Granada para descansar, visitar amigos e familiares e escrever. Foi na cidade natal que, nos primeiros anos da década de 30, intimidado pelas perseguições franquistas, buscou refúgio.
Granada foi vital para a construção da personalidade artística e da carreira de Lorca. Foi no bairro de Albaicin que o poeta teve os primeiros contatos com os ciganos que inspiraram um dos seus trabalhos mais famosos, o Romancero Gitano, no qual canta as mazelas e belezas desse povo que deixou uma marca forte na cultura andaluz. O flamenco é apenas uma das contribuições ciganas à Espanha.
No bairro de Sacromonte estão preservadas as cuevas, cavernas usadas pelos ciganos como moradia, uma vez que eles eram constantemente expulsos do centro da cidade. Grande parte delas foi tombada e hoje faz parte de um museu, o Museo de Las Cuevas de Sacromonte, onde é possível ver como los gitanos viviam e como transformavam espaços em habitações, oficinas de tecelagem, serralheria, cerâmica e palcos para danças flamencas. Em Sacromonte os visitantes podem saborear uma noite de flamenco entre descendentes de ciganos, com vários tablaos (palcos) em atividade, onde se ouve a música que influenciou a obra de Lorca.
Na década de 1930, o poeta e seus amigos frequentavam o restaurante Reconcillo (hoje, Chikito), que ainda preserva as baixelas, louças, pratos e bebidas da época do escritor
No bairro de Sacromonte a arquitetura barroca convive com os cabarés e as cuevas (cavernas) onde os dançarinos de flamenco se apresentam nos tablaos (palcos).
Horta de São Vicente
Um possível itinerário pela passaria por praças como a do Campillo, onde há um bar que o poeta frequentava, pela Plaza Bibirrambla, presente em várias de suas obras, e pela faculdade de direito, onde se formou. Uma viagem gastronômica passaria pelo Chikito Bar-Restaurante, que na época de Lorca era chamado de El Rinconcillo, expressão que pode ser traduzida como o “lugarzinho”. Ali, o escritor se reunia com um grupo de artistas que adotavam o nome do café para se identificar. O estabelecimento mudou de nome, mas o Chikito ainda conserva a atmosfera (e os pratos e as bebidas típicas) que transporta ao tempo em que o poeta se debruçava nos seus balcões.
À noite, a Plaza Bibirrambla era o lugar onde passeava a personagem Mariana Pineda, da peça homônima escrita pelo poeta em 1925. Sua história narra o inconformismo de uma jovem encarcerada por bordar uma bandeira com símbolos que incitam à insurreição na cidade. O passeio histórico pode incluir ainda a calle Angulo, rua onde Lorca foi preso pelos soldados nacionalistas. Embora não haja nada no local que lembre o poeta, ela é muito visitada pelos fãs mais apaixonados.
As escolas de flamenco existem por todo o Sacromonte.
Outro ponto alto é a visita à propriedade rural da família, a Huerta de San Vicente, sítio onde o poeta costumava passar as férias ou dias de descanso. Ela ficava em Fuente Vaqueros, na zona rural de Granada, mas acabou sendo engolida pela expansão da cidade. Parte da área foi transformada em parque, preservando o bucolismo da época de Lorca. Principalmente nos arredores de sua casa, há árvores centenárias, plantas e flores. A casa do poeta possui cômodos espaçosos, retratos da família e mobiliário original da época. No seu quarto, vê-se a mesa de carvalho que o artista usava para trabalhar. Foi nela que ele escreveu grande parte de sua obra, como as peças A Casa de Bernarda Alba e Bodas de Sangue.
Da varanda do quarto o poeta avistava outra de suas paixões granadinas, o Palácio de Alhambra. Foi nessa fortaleza moura que organizou festivais de teatro, os quais são recelebrados atualmente no mês de agosto, tendo-o como homenageado. Lorca passava tardes inteiras circulando entre os jardins, as fontes e as torres da Alhambra, de onde tinha uma visão privilegiada de sua cidade.
Granada expõe a mistura de duas culturas antigas: a tradição mourisca e o catolicismo medieval, as duas maiores influências da identidade espanhola.
Alhambra
Iniciada no reinado do califa Ibn-al- Ahmar, em 1248, e terminada em 1354, no final da dinastia Nasrida, a Alhambra é uma das fortalezas árabes mais preservadas da Espanha, tendo sido sede do Reino Al-Andalus durante três séculos, até a expulsão dos árabes em 1496 pelos reis católicos Fernando II, de Aragão, e Isabel de Castela.
Graças à for taleza, Granada foi refúgio de intelectuais e artistas estrangeiros, judeus e árabes durante a reconquista cristã e a última cidade a ser tomada por Aragão e Castela, após sangrentas batalhas. Hoje, essa obra-prima da arquitetura islâmica é um dos locais mais visitados da Europa. Além da sua imponência exterior, o interior dos seus salões é de tirar o fôlego, com abóbadas esculpidas em madeira que surpreendem pela profusão de detalhes.
Embora quase não apareça citado na obra de Lorca, o palácio de tijolos de taipa vermelha (daí o nome Alhambra, “a vermelha”) teve grande influência na sua formação.
Linha da História
Século 7 a.C. – Ilturir, vilarejo dos íberos (habitantes do leste e do sul da Península Ibérica), cercado por uma muralha, surge na área de Granada.
180 a.C.. – O exército romano conquista a região. O povoado passa a município, com o nome de Florentia.
711 – Os muçulmanos conquistam a Península Ibérica e introduzem cultivos na região, como frutas cítricas e abricó. Pouco antes, refugiados judeus fundam uma comunidade na periferia da cidade, “Gárnata al-yahud” (“Granada dos Judeus”).
1013 – Após ser destruída por conflitos civis, Granada é reconstruída, incorporando o subúrbio judeu. Torna-se, então, um emirado independente.
Século 11 – Sob a dinastia Almohad, Granada se expande para a outra margem do Rio Darro e ocupa a região onde está a atual Alhambra.
Século 14 – Construção do palácio de Alhambra.
Século 18 – A cidade se recupera de graves crises econômicas, graças à agricultura, e volta a progredir.
1492 – Os reis católicos Fernando II e Isabel I conquistam o Emirado de Granada. Muçulmanos e judeus são perseguidos. Nos anos seguintes, os governantes reformam a cidade introduzindo feições “cristãs”.
1898 – Nasce Federico García Lorca.
Século 19 – Até 1850, a cidade sofre problemas econômicos e surtos de doenças, perdendo importância política. O reinado de Isabel II a revigora, tornando-a centro comercial e industrial.
936-39 – Guerra Civil espanhola. Granada é considerada zona sublevada em plena região pró-Franco. Lorca é executado em 18 de agosto de 1936.
1970- Como polo turístico a cidade volta a crescer, depois de décadas de ruína econômica.
1975 – Fim da ditadura franquista. Restabelecimento da democracia.
O poeta admirava a história do califado perseguido pelos reis católicos e pela Igreja, que também foi intolerante com judeus, ciganos e negros. “Sendo de Granada, sinto compreensão empática pelos que são perseguidos, pelo cigano, pelo negro, pelo judeu, pelo mouro que todos os granadinos carregamos dentro de nós”, ressaltou.
Uma visão da imponência da Alhambra pode ser obtida do mirante de San Nicolás, um dos pontos mais altos do bairro de Albaicin. Lorca passou boas tardes por ali, vendo o sol se pôr sobre as pedras vermelhas da fortaleza.
Em agosto de 1936, com 38 anos, o poeta foi morto, sem julgamento, com um tiro na nuca. Seu corpo foi jogado num ponto desconhecido da Sierra Nevada, a quilômetros da cidade que amou, e jamais encontrado.
A caneta calou, mas a poesia se tornou eterna. O crime repercutiu no mundo todo, despertando forte reação wwcontra o fascismo espanholw. Durante décadas, a obra de Lorca circulou clandestinamente na Espanha. Só com o fim do regime e a volta da democracia, em 1975, Granada pôde render homenagens ao seu mais ilustre poeta.