19/06/2017 - 15:00
Dono de 12% da água doce do mundo, o Brasil não deveria ter problemas para abastecer sua população. Mas a escassez ou a falta dela é uma realidade para milhões de brasileiros. E não só no sertão nordestino, como se viu na crise hídrica que atingiu São Paulo, sobretudo a região metropolitana da capital, entre 2013 e 2014. Nesse contexto, as atenções se voltam para os aquíferos, enormes depósitos subterrâneos de água, cada vez mais vistos como solução, ao menos parcial, para a falta do líquido nas grandes cidades.
De acordo com o Mapa das Áreas Aflorantes dos Aquíferos e Sistemas Aquíferos do Brasil, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), há 182 desses reservatórios distribuídos pelo território nacional, inclusive no árido Nordeste. Entre eles estão dois dos maiores do mundo, o Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), com reservas estimadas de 162.520 quilômetros cúbicos (km3), e o Sistema Aquífero Guarani (SAG), localizado no sudeste e sul do país, que pode ter até 40.000 km3 de água. Somados, esses mananciais chegam a cerca de duas vezes o volume existente em todos os rios e lagos do planeta.
Aquíferos não são rios correntes ou lagos subterrâneos. São reservas de água que ocupam os interstícios das rochas, como poros, fissuras ou rachaduras. Ou seja, as pedras funcionam como espécies de esponjas gigantes. “Eles são uma unidade geológica (formação ou grupo) saturada pelo líquido, constituída de rocha ou sedimento, suficientemente permeável para permitir a extração dele de forma econômica e por meio de técnicas convencionais”, explica Rodrigo Lilla Manzione, professor e pesquisador da Faculdade de Ciências e Engenharia do campus de Tupã da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Os aquíferos se dividem em três tipos. No primeiro, chamado de sistema fraturado, a água subterrânea encontra-se basicamente nas fraturas, microfraturas, juntas e falhas das rochas. Já os porosos guardam o líquido entre os poros das pedras. Por fim, há os sistemas cársticos, em que o armazenamento e a circulação são condicionados principalmente pela dissolução aleatória e pelo fraturamento ou pelas descontinuidades das rochas carbonáticas (rochas sedimentares cuja composição primária são os carbonatos, como o calcário e o dolomito). O Saga e o Guarani se enquadram na segunda categoria. A diferença é que o segundo tem uma “capa” de basalto – um rocha dura – por cima, com até 1.000 metros de espessura, o que dificulta sua exploração em alguns pontos.
Entusiasmo revisto
Segundo o geólogo Ricardo Hirata, professor titular do Instituto de Geociências e vice-diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas), ambos da Universidade de São Paulo (USP), o aquífero Guarani tem espessura média de 250 metros, variando de 50 a 600 metros, e profundidades superiores a 1.000 metros. “O volume total armazenado é estimado entre 30 mil km3 e 40 mil km3”, diz. “Isso é o equivalente a 100 anos de fluxo cumulativo do rio Paraná.”
Em 1996, quando o Guarani recebeu seu nome atual, pensava-se que ele era o maior do mundo e que poderia abastecer a população brasileira durante 2.500 anos. Depois de realizar novos estudos, porém, o geólogo gaúcho José Luiz Flores Machado concluiu que ele não é o “mar de água doce” que se imaginava. As pesquisas revelaram que, em distâncias de algumas centenas de quilômetros, sua potencialidade varia muito.
A parte do manancial que fica no estado de São Paulo, por exemplo, “apresenta excelente conformação estrutural, facilitando a recarga (reabastecimento do aquífero pela chuva), circulação e descarga das águas subterrâneas”, e seu potencial se aproxima do que foi divulgado no início. Já em Santa Catarina e no Paraná, “extensas áreas do aquífero têm alta salinidade”. Na Argentina a situação é ainda pior: lá, segundo Machado, o sistema é totalmente confinado em grandes profundidades.
Na província de Entre Rios, por exemplo, a salinidade aumenta muito logo a partir do rio Uruguai, quando poços termais que tinham águas com cerca de 1.000 miligrama por litro (mg/l) de sais passam a apresentar mais de 100.000 mg/l, quase três vezes o valor encontrado no mar. Já o Saga apresenta um potencial maior do que se pensava de início. O que se conhecia até recentemente era o aquífero Alter do Chão, mesmo nome de uma bela praia fluvial em Santarém (PA), com reservas estimadas em 86.000 km3.
Há cerca de 15 anos pesquisadores das universidades federais do Pará (UFPA) e Ceará (UFC) começaram a estudar com mais detalhes esse manancial e perceberam que ele é apenas parte de um sistema que se estende por mais de 1.800 km desde o Peru e a Colômbia, entrando no Brasil pelo Acre e indo até a ilha de Marajó, com uma largura que varia de 250 km a 500 km e uma espessura que vai de 1.200 a 7.000 metros.
“Nossos estudos revelaram que o Alter do Chão integra um sistema hidrogeológico maior, que abrange as bacias sedimentares do Acre, Solimões, Amazonas e Marajó”, explica o geólogo Francisco de Assis Matos de Abreu, da UFPA, um dos coordenadores da pesquisa. “No total, essas bacias possuem, aproximadamente, uma superfície de 1,3 milhão de km2, dos quais 67% ficam no Brasil, com o dobro das reservas conhecidas anteriormente.” Por isso, acharam melhor rebatizá-lo com a denominação atual.
Uso sustentável
O que começa a ser discutido é a melhor forma de explorar de modo sustentável esses depósitos subterrâneos, sem esgotá-los. A preocupação se justifica, porque eles já estão sendo comprometidos, seja por superexploração ou contaminação por poluentes. “A crise hídrica que assolou o estado de São Paulo, principalmente a região metropolitana da capital, em 2013/2014, traz reflexos até hoje”, diz Manzione. “Houve uma procura por soluções alternativas para o abastecimento, como perfuração clandestina de poços artesianos. Apesar de proibida pela legislação, essa prática é difícil de ser controlada.”
Embora não se estenda até a cidade de São Paulo, a superexploração afeta o aquífero Guarani. “Ela vem ocorrendo em diversos locais, onde a demanda não acompanha a recarga dos reservatórios subterrâneos, causando rebaixamentos sistemáticos”, explica Manzione. “Além disso, existe a poluição do solo e da água provocada principalmente por atividades como agricultura e pastoreio conduzidas em áreas vulneráveis.”
A superexploração ainda não é problema para o Saga. “O que se retira dele é praticamente nada em relação ao seu potencial”, diz Abreu. “O problema principal hoje é a vulnerabilidade nas áreas de extração mais importantes, ou seja, nas cidades. Isso ocorre por causa da falta de saneamento e da deposição de resíduos sólidos sem controle (lixões). Por isso, suas águas, nas porções mais rasas, começam a ficar poluídas, dificultando seu uso para o suprimento humano.”
No caso do Guarani, para reduzir problemas como esses e geri-lo melhor, os países por onde ele se estende assinaram um acordo em San Juan, Argentina, em 2010. Até 2012, porém, apenas o Uruguai e a Argentina o haviam ratificado; o Senado brasileiro fez isso em 2 de maio de 2017. Agora, só falta o Paraguai aprová-lo.
Segundo Hirata, o tratado atrairá mais investimentos e financiamentos a esses países, permitindo o retorno de projetos que trarão mais conhecimento técnico e científico sobre o manancial, por meio de programas ambientais e de cooperação internacional. “Além disso, levará seus países à vanguarda da cooperação sobre águas internacionais, considerando-se o número ainda baixo de acordos vigentes entre países sobre aquíferos transfronteiriços”, diz.