27/12/2022 - 10:01
Após a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro, a guerra de informações em paralelo ao conflito foi acompanhada por campanhas de desinformação em larga escala, propaganda e teorias da conspiração especialmente nas redes sociais.
A equipe do NewsGuard, que há anos está engajada na luta contra a desinformação, identificou 311 sites que publicam fake news pró-Kremlin para justificar a guerra de agressão da Rússia.
Não é de se admirar que a equipe de checagem de fatos da DW, em 2022, tenha analisado principalmente notícias falsas sobre a guerra na Ucrânia, mas houve também curiosidades em áreas como saúde, esporte e meio ambiente, nas quais nos aprofundamos abaixo.
Não, não havia “cadáveres em movimento” em Bucha
No início de abril, as imagens de civis mortos em Bucha, uma vila perto de Kiev, causaram horror em todo o mundo. Centenas de cadáveres ficaram nas ruas depois que soldados russos deixaram o local, no final de março. O governo ucraniano falou de um “massacre deliberado” por soldados russos, e a Rússia respondeu com uma acusação terrível: os vídeos de Bucha teriam sido encenados. A narrativa correspondente, de que os cadáveres eram apenas atores que até se mexiam, espalhou-se rapidamente nas redes sociais – e, segundo alguns usuários, um vídeo poderia comprová-la.
Mas uma análise do vídeo feita pela DW com um suposto “cadáver em movimento” numa resolução superior mostrou: a impressão de que a mão de um morto teria se movimentado foi criada por uma gota d’água no para-brisa do carro do qual a rua em Bucha foi filmada.
Peritos forenses digitais independentes confirmaram e uma investigação do New York Times também mostrou que imagens de satélite da empresa americana Maxar provaram que os corpos jaziam na rua Yablunska, em Bucha, desde 19 de março – e, em alguns casos, até mesmo desde 11 de março.
Essas imagens contradizem claramente o relato russo de que os corpos só apareceram após a retirada das tropas russas em 30 de março. Negar alegados crimes de guerra e rotular as evidências como falsas se tornaram estratégia de uma Rússia em guerra.
Não, o “Fantasma de Kiev” não era um piloto de caça excepcional
Depois que os ucranianos superaram o choque inicial da invasão russa, muitos buscaram consolo nas notícias sobre as vitórias militares das Forças Armadas da Ucrânia. Particularmente populares foram as histórias sobre o chamado “Fantasma de Kiev” – um piloto de caça que supostamente conseguiu destruir sozinho cerca de 40 aeronaves russas e cuja identidade permaneceu em segredo. Muitos usuários, incluindo o ex-presidente ucraniano, Petro Poroshenko, compartilharam vídeos e fotos nas redes sociais – muitos dos quais eram falsos – que supostamente mostravam o “Fantasma de Kiev”.
Particularmente curiosa foi uma imagem manipulada do misterioso piloto ucraniano, que na verdade mostra um advogado argentino de Buenos Aires. No final, a liderança da Força Aérea da Ucrânia também declarou que o “Fantasma de Kiev” era, na verdade, “uma lenda criada pelos ucranianos” e “uma representação coletiva dos pilotos da 40ª brigada da Força Aérea”.
Não, “nazistas ucranianos” não causaram tumultos na Copa do Catar
De acordo com a suposta necessária “desnazificação” da Ucrânia, que Putin repetidamente usa como justificativa para a invasão, muitas fotos e vídeos que circulam nas redes sociais supostamente mostram “nazistas ucranianos” – mais recentemente, durante a Copa do Mundo, no Catar. Um vídeo com o logotipo e design da emissora de televisão Al Jazeera afirma que três ucranianos bêbados foram presos em Doha após espalhar símbolos e fazer saudações nazistas.
Tanto a Al Jazeera – suposta autora das imagens – quanto a equipe de checagem de fatos da DW conseguiram provar que o referido vídeo é falso. A presença de homens ucranianos entre 18 e 60 anos no Catar não é plausível, já que atualmente eles não podem deixar o país. Além disso, a nação nem se classificou para a Copa do Mundo.
O vídeo não fornece nenhuma informação das autoridades sobre a suposta prisão e consiste de imagens de arquivo e sequências de vídeos que não têm relação direta com a história contada. Por exemplo, os policiais no vídeo não estão usando o uniforme que, segundo o Ministério do Interior do Catar, foi usado pelas forças de segurança durante a Copa do Mundo.
Semelhante à Al Jazeera, outras mídias internacionais como BBC, CNN e também DW já tiveram a mesma experiência quando imagens, capturas de tela, vídeos ou postagens com narrativas principalmente pró-russas, contra a Ucrânia ou o contra o Ocidente foram divulgadas usando seus nomes.
Não, nenhuma tatuagem de Putin foi feita em clínica alemã
Fazer uma tatuagem gratuita de Vladimir Putin, Sergei Lavrov ou outros políticos russos em seu corpo e, depois, levá-las junto com você para a morte? Isso é exatamente o que supostamente aconteceu numa clínica de cuidados paliativos na Alemanha, de acordo com vídeo na internet, em inglês, que se parece muito com uma reportagem de televisão da DW.
A história, porém, é fictícia – e o vídeo falso foi editado a partir de vários vídeos antigos, como descobriu a equipe de checagem de fatos da DW. Quando questionada pela DW, a clínica de cuidados paliativos em Dülmen, mostrada no vídeo falso, descreveu como “absurdas” e “desinformação deliberada” as alegações de que os residentes estariam fazendo tatuagens.
Uma série de erros gramaticais e inconsistências também revelam que o vídeo é uma produção falsa em que foi usado o logotipo da DW.
Não, não houve capa da revista “Vogue” com Adolf Hitler e Eva Braun
A representação do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, como nazista é uma das principais narrativas de desinformação em torno da invasão da Rússia na Ucrânia. Depois que a revista americana Vogue publicou um artigo com várias fotos, incluindo uma capa sobre a primeira-dama ucraniana, Olena Zelenska, e seu marido Volodimir Zelenski no final de julho, uma colagem de fotos compartilhada milhares de vezes nas redes sociais sugere que, em 1939, houve uma sessão fotográfica dedicada a Adolf Hitler e Eva Braun na revista de moda e estilo de vida.
Isso, porém, é falso: a foto com Adolf Hitler e Eva Braun nunca foi impressa na Vogue – nem mesmo como capa. Nenhuma das 24 edições da revista em 1939, que estão disponíveis publicamente no arquivo da Vogue, mostra o casal. Uma porta-voz da Vogue também confirmou à DW que tal foto nunca foi usada na capa ou na revista. Além disso, é possível determinar – por meio da pesquisa de imagem reversa – que a imagem com Hitler e Braun foi manipulada para fazer a colagem de fotos: na imagem original, Johanna Morell, a esposa do médico pessoal de Hitler, pode ser vista entre os dois.
Não, não prevalecem condições medievais na Europa por causa da crise energética
“É hora de falar sobre bactérias, sarna, pulgas e piolhos […], porque a Europa esclarecida está aparentemente voltando à Idade Média – uma época em que as pessoas não se lavavam lá”, afirmou o apresentador Dmitry Kiselyov, no final de abril de 2022, na televisão estatal russa.
Isso foi motivado pela recomendação do ministro da Economia da Alemanha, Robert Habeck, de economizar energia também no banheiro, e pelo pedido do chefe da Agência Federal de Redes de Energia, Klaus Müller, de não tomar banhos quentes com frequência.
Segundo Kiselyov, por causa do ódio à Rússia e do gás russo, a Europa está pronta para negligenciar a higiene, como fez na Idade Média – o que supostamente estaria sendo acompanhado de um problema de parasitas.
Mas, mesmo oito meses depois, o prognóstico assustador não foi confirmado: não há um aumento significativo de ácaros, piolhos ou infestações por pulgas nem a nível nacional nem na União Europeia. Quer dizer, a afirmação de Kiselyov se trata claramente de um caso de propaganda sem base factual.
Sim, a mudança climática realmente existe
O ano de 2022 foi de superlativos climáticos: foi o verão mais quente da Europa desde que começaram os registros. Já o Paquistão vivenciou sua pior inundação, matando cerca de 2 mil pessoas e deixando cerca de 20 milhões de desabrigados; e os estados dos Novo México e da Califórnia, nos Estados Unidos, sofreram os incêndios florestais mais devastadores. E esses foram apenas três exemplos dos fenômenos naturais extremos de 2022 que os ativistas do clima consideram evidências óbvias das mudanças climáticas.
No entanto, alguns usuários continuam afirmando, por exemplo no Twitter, que “não há aquecimento global nem mudança climática”. No entanto, o aquecimento global e as mudanças climáticas já foram comprovados cientificamente há décadas. O Consórcio Alemão do Clima (DKK, em alemão) explica que todas as partes do sistema climático – ou seja, oceanos, gelo, terra, atmosfera e biosfera – aqueceram-se significativamente nas últimas décadas. E, além disso, o ar na superfície da Terra já é 1ºC mais quente do que a média global na era pré-industrial.
“Devido às mudanças climáticas, os extremos estão mudando em termos de frequência e intensidade, o que significa que os eventos climáticos extremos estão se tornando mais frequentes e mais fortes”, afirmou Marie-Luise Beck, diretora do Consórcio Alemão do Clima, em entrevista à DW.
E no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) cientistas de 195 países escrevem que há evidências crescentes entre extremos climáticos – como ondas de calor, chuvas intensas, secas e ciclones tropicais – e ação humana. Os principais pesquisadores de uma ampla gama de áreas em todo o mundo afirmam estar comprovada a conexão entre mudanças climáticas e influência humana.
Cuidado, o aborto com uso de ervas não é considerado seguro
A decisão da Suprema Corte dos EUA de que a Constituição do país não garante o direito ao aborto abriu o caminho para a proibição do procedimento em cerca de metade dos estados americanos. Diante da proibição iminente, aumentaram as alegações nas redes sociais de que ervas – como salsa – ou frutas – como mamão – também poderiam ser usadas para mulheres abortarem. Mas tais remédios à base de plantas podem realmente causar aborto? Será que eles são seguros?
Na verdade, a equipe de checagem de fatos da DW descobriu que quase não há estudos que tenham pesquisado o tema de forma suficiente. Algumas mulheres fazem uso de plantas e ervas, por exemplo, como chá, as comem ou as introduzem por via vaginal ou até mesmo por via intravenosa.
De acordo com especialistas entrevistados pela DW, todos esses métodos são potencialmente perigosos porque o efeito não pode ser calculado. Às vezes, o aborto através do uso de ervas ocorre, mas pode ser extremamente arriscado. Aborto seguro com remédios fitoterápicos, como prometido nas redes sociais, não existe.
Não, a varíola dos macacos não é consequência da vacina contra covid-19
Da alteração do DNA humano à infertilidade em mulheres, as fake news sobre os supostos efeitos colaterais das vacinas contra a covid-19 foram acompanhadas por outra alegação falsa em 2022: de que a varíola dos macacos, de acordo com alguns usuários na internet, surgiu por causa da vacina de mRNA da AstraZeneca, que contém adenovírus atenuados de chimpanzés – como portadores do DNA da proteína spike.
Mas isso é errado porque a varíola e os adenovírus dos macacos não têm relação entre si, mesmo que à primeira vista a palavra macaco possa sugerir uma possível conexão entre os vírus. A varíola dos macacos deve seu nome unicamente ao fato de ter sido detectada pela primeira vez numa colônia de macacos, mas, na verdade, ela vem de roedores, explicaram cientistas para a equipe de checagem de dados da DW. Além disso, os adenovírus, incluindo os de chimpanzés, que são a base das vacinas vetoriais, são uma classe de vírus completamente diferente da dos da varíola.
Aliás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu recentemente renomear a doença (monkeypox, em inglês) para Mpox e, assim, evitar a estigmatização das pessoas acometidas.
Sim, o Catar “comprou” torcedores para a Copa do Mundo de 2022
Após o Catar conquistar o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022, o país foi criticado pelo tratamento que dispensou aos trabalhadores migrantes que construíram estádios e outras obras de infraestrutura. Até hoje, o número de trabalhadores que morreram nos canteiros de obras ainda não é claro.
O Catar também foi acusado de violar os direitos humanos e a liberdade de imprensa. Porém, pouco antes do início do torneio, vários meios de comunicação internacionais também acusaram o Catar de “comprar” torcedores para a Copa ao pagar seus voos, hotéis e ingressos.
O Comitê Supremo (SC), responsável pela organização da Copa do Mundo, negou as acusações de que os torcedores teriam sido pagos em troca de “promoção coordenada para a Copa do Mundo”. “Esta alegação é absolutamente errada”, disse num comunicado.
Mas o fato é que o Comitê Supremo do Catar convidou torcedores selecionados para a Copa do Mundo como parte do programa chamado Qatar Fan Leader Network e pagou por seus voos, hotéis e ingressos para os jogos. Os torcedores entrevistados pela DW confirmaram a oferta, e o SC também confirmou a iniciativa ao ser questionado pela DW. Depois, o SC voltou a negar a contrapartida em outro comunicado.
Na verdade, o Catar apresentou a alguns torcedores o chamado “Código de Conduta”, no qual eles deveriam se comprometer contratualmente a “apoiar” a Copa do Mundo no Catar “curtindo e compartilhando” postagens nas redes sociais. Em troca, os torcedores receberiam os benefícios mencionados – o que não deixa de ser uma forma de pagamento.
Em resposta à reportagem, o SC explicou num e-mail aos participantes que a quantia em dinheiro para a viagem ao Catar não seria mais dada, de acordo com uma pesquisa do programa de televisão Sportschau, da emissora pública alemã ARD.