07/01/2015 - 11:55
Um súbito aumento no desmatamento na Amazônia no fim de 2014, supostamente ocultado nos debates eleitorais de outubro, coloca ambientalistas e representantes do governo em posições antagônicas depois de vários anos de redução na devastação ilegal. Para piorar o cenário, há sinais de que a perda da cobertura florestal no Norte esteja alterando o regime de chuvas e contribuindo para a seca no Sudeste.
De acordo com o relatório de novembro do sistema de monitoramento Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre julho de 2013 e julho de 2014 foram desmatados na Amazônia 4.848 quilômetros quadrados de floresta, a segunda menor taxa já registrada desde 1988 – o que representa um recuo de 18% em relação à devastação no ano anterior (5.891 km2). Entretanto, os dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), também do Inpe, para os meses imediatamente posteriores, de agosto, setembro e outubro, mostram que o desmatamento aumentou de 886 km2, nesse mesmo período em 2013, para 1.924 km2 em 2014 – 117% de aumento.
O quadro é mais grave em outros relatórios divulgados no final do ano. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que opera o sistema SAD de monitoramento independente, em agosto, setembro e outubro o desmatamento pulou de 331 km2, em 2013, para 1.983 km2, em 2014 – um aumento de 226%. Já a ONG Observatório do Clima, por meio do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa, verificou um aumento de 7,8% na emissão anual de gases de efeito estufa, de 2013 para 2014, derivado, sobretudo, de “mudanças no uso da terra”: o desmatamento, a degradação de florestas e a conversão de solos em atividades rurais, que são os maiores fatores de emissão de CO2 no Brasil (responsáveis por 34,6 % do total), subiram 16%.
Também em outubro, o bioquímico Antônio Nobre, pesquisador do Inpe, divulgou um relatório climático que reúne mais de 200 estudos sobre a Amazônia com outro alerta: há indícios de que a destruição florestal na Amazônia esteja relacionada com a seca no Sudeste, que pôs a cidade de São Paulo à beira de um colapso. O estudo calcula que 20% da cobertura florestal amazônica já foi desmatada e que 20% estaria degradada, totalizando quase 2 milhões de km2 de área impactada, o que poderia estar alterando o regime de chuvas do país. “As mudanças climáticas na Amazônia e fora dela já batem à porta”, afirma Nobre. “Não resta a menor dúvida de que os impactos do desmatamento, da degradação fl orestal e dos efeitos associados já afetam o clima próximo e distante da Amazônia”.
Denúncia Eleitoral
Vários ambientalistas consideram que, durante a campanha eleitoral, o governo federal omitiu de propósito os dados de aumento do desmatamento no fim de 2014, para não prejudicar a reeleição da presidente Dilma Rousseff . As autoridades possuiriam as informações desde o dia 24 de outubro, dois dias antes do segundo turno, mas o anúncio oficial só foi feito em 27 de novembro. “O que houve foi manipulação eleitoral dos dados”, acusa Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental (ISA). “E não foi o único caso. Ao longo das eleições, informações produzidas por vários órgãos oficiais de pesquisa também tiveram as suas datas de divulgação alteradas em função do calendário eleitoral.”
O Ibama rechaça a acusação. A agência alega que suspendeu a divulgação dos dados mensais do Deter pela necessidade de manter sigilo em relação ao desmatamento ilegal. Segundo o órgão, os criminosos valem-se dos relatórios para se defender das multas. Como os satélites do Deter só detectam áreas desmatadas a partir de 25 hectares, desmatam-se áreas abaixo dessa medida em diferentes pontos da floresta, uma tática conhecida como “desmatamento multiponto”. “Se eu liberar a imagem do Deter antes de concluir o inquérito junto à Polícia Federal, o desmatador vai atrás de um laranja para assumir o crime e escapa”, alega Luciano Evaristo, diretor de Proteção Ambiental do Ibama.
A justificativa, entretanto, não convence os críticos. Em 2012, as atualizações dos dados do Deter eram feitas pelo Inpe a cada 15 dias, enquanto os alertas do sistema eram emitidos diariamente para orientar as ações de fiscalização do Ibama. Os dados eram divulgados ao público mensalmente, em épocas de menor cobertura de nuvens sobre a floresta, ou bimestralmente, na estação de chuvas. Em julho de 2014, quando os alertas de desmatamento começaram a aumentar, o Inpe e o Ibama alteraram o calendário de divulgação. Em novembro, o governo anunciou que as informações do Deter passariam a ser trimestrais, gerando desconfiança.
Tendência de alta
Apesar de utilizarem tecnologia e metodologia diferentes, o Inpe e o Imazon sempre apresentam resultados próximos. Mas no último semestre a discrepância entre os dados do Deter e do SAD aumentou. “O que é importante de se analisar nessa questão são as tendências”, refl ete Paulo Moutinho, diretor do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Depois da celebrada diminuição de 84% nos índices anuais de desmatamento da Amazônia, o combate ao crime vem oscilando ora para cima, ora para baixo. “Não podemos fi car confortáveis com essa taxa. A meta deveria ser a extinção do desmatamento, chegar a zero. Temos de lembrar que essa oscilação signifi ca que quase cinco milhões de hectares por ano ainda são desmatados na Amazônia. A floresta é finita”, afirma Moutinho.
A interpretação de ambientalistas sobre os últimos relatórios é convergente. A redução de 18% do desmatamento apre-sentada pelo Prodes, de julho de 2013 para julho de 2014, é positiva, mas deve ser encarada com ressalvas, tendo em vista o aumento apresentado pelo Deter nos últimos meses. Para Adalberto Veríssimo, pesquisador do Imazon, embora ainda não seja possível prever o impacto da alta anual no Prodes de 2015, a tendência não pode ser ignorada. “Em termos absolutos, o aumento pode não ser muito signifi cativo, mas percentualmente é muito expressivo”, diz Veríssimo.
O discurso oficial vai na direção contrária. Luciano Evaristo, do Ibama, argumenta que os dados online do Deter não podem ser analisados como medidores de desmatamento. Segundo ele, a única métrica correta é a análise anual do Prodes. Sob essa ótica, afirma Evaristo, o desmatamento não aumentou. “O Deter não tem o condão de medir desmatamento. Trata-se de um satélite de baixa resolução. Ele não consegue diferenciar corte raso de degradação, não consegue diferenciar um afl oramento rochoso de um desmatamento a corte raso”, ressalta.
O diretor do Ibama explica que o sistema Deter emite alertas de possíveis áreas afetadas, mas suas imagens não são suficientes para determinar o que aconteceu no local. É preciso ir a campo para verifi car se houve degradação (quando a vegetação da área é parcialmente destruída) ou corte raso (quando há eliminação completa das árvores); ou se o que foi detectado eram focos de incêndio ou rochas que não confi guram desmatamento, ou ainda um curso d’água cobrindo a vegetação. Para ele, a interpretação correta a se fazer dos dados do Deter de agosto a outubro seria dizer, apenas, que “os alertas aumentaram”, não o desmatamento.
No entanto, o próprio governo federal utiliza o Deter como instrumento de medida para elaborar relatórios parciais de desmatamento. Em 2009, o então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, anunciou em coletiva de imprensa que a devastação na Amazônia no mês de maio havia caído 89% em comparação ao mesmo mês do ano interior. O sistema utilizado para a medição foi o Deter.
De acordo com Veríssimo, modelos como o SAD e o Deter não só podem ser considerados medidores de desmatamento como seus números frequentemente são subestimados. Isso acontece devido às limitações dos satélites, que só enxergam clareiras a partir de faixas amplas de território (10 hectares no caso do SAD e 25 hectares no caso do Deter) e podem ter sua visão obstruída por nuvens. Veríssimo também afirma que casos de falsos positivos detectados costumam representar menos de 10%.
Disparada localizada
Os dados de recrudescimento do desmatamentio ilegal, tanto do Deter quanto do Imazon, revelam que o crescimento ocorreu em Estados com intensa atividade agropecuária. Em outubro de 2014, o desmatamento se concentrou principalmente em Rondônia (27%) e Mato Grosso (23%); em setembro, em Rondônia (33%), Pará (23%) e Mato Grosso (18%); e em agosto, em Mato Grosso (33%) e Rondônia (30%).
Um estudo coordenado pelo geólogo Saulo Rodrigues Filho, da Universidade de Brasília (UnB), sugere que mudanças de quadros políticos também costumam infl uenciar as altas de desmatamento. A pesquisa demonstra que o aumento no preço das commodities agrícolas e as grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas de Belo Monte, em Altamira (PA), e de São Luiz do Tapajós, no rio Tapajós (PA), e a pavimentação da BR- 163, de Cuiabá (MT) a Santarém (PA), contribuem para a devastação.
Outro fator apontado como determinante é a fl exibilização das punições promovida pelo novo Código Florestal. No passado, desmatamentos anteriores à lei foram anistiados, reforçando a sensação de impunidade. Ao mesmo tempo, o Código teria criado distorções que podem prejudicar o produtor rural que cumpre a lei. “Eu não desmato nada em minha propriedade, nem o que poderia desmatar por lei”, explica Marcos da Rosa, presidente do Sindicato da Indústria e Comércio de Canarana, Mato Grosso. “O Código Florestal tem pontos que criam uma insegurança jurídica.Amanhã, eu posso ser acusado de ter seguido algo que era considerado correto.”
Combate
Muito se investiu no combate ao desmatamento de 2004 a 2012. Mas, ao que tudo indica, houve relaxamento do controle. É preciso retomar com intensidade medidas de proteção que vinham dando certo e implementar novas.
A fiscalização por satélites e as autuações do Ibama não dão conta do problema, embora sejam fundamentais para inibir a atividade ilegal. “Hoje em dia, desmatamento tem nome e sobrenome. Quem desmata, o satélite pega”, afirma Carlos Xavier, presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa), que reclama da perseguição ambiental à atividade rural. “Estão escandalizando o desmatamento. Não é o produtor rural que está desmatando. Isso está acontecendo muito em assentamentos do Incra”, diz.
De fato, a intensificação da grilagem em terras públicas é um grande problema na Amazônia. Houve expansão no desmatamento em áreas de assentamentos de reforma agrária, assim como houve derrubada para ampliação da pecuária e da agricultura em Mato Grosso e Rondônia. Diante das tendências, uma solução possível é aumentar o número de unidades de conservação, que agem como uma “vacina contra o desmatamento”, sugere Veríssimo.
O Estado precisa estar mais presente nas regiões onde as grandes obras de infraestrutura estão sendo implantadas. Esse tipo de investimento deflagra processos migratórios e especulação com o valor da terra. Se não houver presença permanente do poder público, por meio de todos os seus órgãos oficiais (prefeituras, delegacias de polícia, etc.), a destruição da floresta continuará.
Além de ações para frear a escalada, é preciso ir adiante com medidas de reversão dos estragos e lutar para reduzir os índices de desmatamento a zero. É consenso a necessidade de se implementar incentivos econômicos para a conservação da floresta, já previstos pelo artigo 41 do novo Código Florestal, como tratamento tributário diferenciado, pagamento por serviços ambientais e certifi cação e crédito para a produção agrícola sustentável e florestal.
Desde os estudos da década de 1970 do professor Enéas Salatti, sobre os “rios voadores” criados pela evapotranspiração da floresta e a exportação de umidade da Amazônia para o centro-sul, sabe-se que a maior parte da água que irriga o celeiro produtivo da América do Sul procede das fl orestas do Norte. Os cientistas temem que o aumento do desmatamento induza o clima no continente a se tornar consideravelmente seco no futuro – como já estaria acontecendo. Por enquanto não há evidências precisas de causa e efeito. “Se os cenários catastrófi cos se materializarão ou não, e quanto tempo isso demorará, depende de muitos fatores difíceis de se prever, entre eles quanto da cobertura vegetal original terá sido modifi cada e com qual velocidade”, explica Antônio Nobre.
Ou se assume o compromisso de recuperar a fl oresta e parar de destruí-la ou teremos de encarar o cenário dos seus efeitos no resto do país, cujas projeções vêm sendo defi nidas em relatórios científicos cada vez mais consistentes.