05/09/2022 - 11:39
É a primeira vez que Auricélia Fonseca Arapium verá do alto a terra onde nasceu e teve seus quatro filhos, no baixo Tapajós, oeste do estado do Pará. Serão seis horas de sobrevoo nesta região onde o rio se encontra com as águas do Amazonas e corta unidades de conservação criadas para manter intactas grandes porções da Floresta Amazônica.
Nesta manhã, no fim de agosto, uma espécie de nevoeiro causado pela fumaça das queimadas se cruza com o trajeto do avião. Os focos de incêndio estão por toda parte e foram, em quase 100% dos casos, iniciados por quem desmatou a área.
Alguns dos pontos avistados por Auricélia, que coordena o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita), estavam sendo arrasados pelo fogo há mais de uma semana. Embora todos tivessem sido identificados pelo sistema de alerta de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), não havia qualquer sinal de combate às chamas em campo. Nesta época de seca na Amazônia, que se estende até outubro, o fogo deve se alastrar para além dos restos da mata derrubada e acabar com árvores saudáveis.
Não é só a imagem das grandes clareiras no meio da floresta que faz os olhos de Auricélia se encherem de lágrimas. À medida que o avião se distancia de Santarém, de onde decolou, os grandes buracos de tom marrom que surgem no horizonte provocam comoção. São garimpos abertos com máquinas pesadas, que mais parecem grandes estradas forjadas sobre o verde.
“É um crime contra a humanidade, não é só um crime ambiental. Estão matando a Amazônia”, diz Auricélia à DW Brasil, que acompanhou o sobrevoo à convite do Instituto Climainfo.
“Foi muito impactante e eu fico muito emocionada. A gente sabe o que significa um território vivo, um rio vivo. Eu sou mãe. O que vai ser do nosso futuro?”, questiona ela sobre os impactos da destruição que acabara de presenciar, sem conseguir conter o choro.
“A nossa mãe terra está pedindo socorro”
Em agosto de 2022, o pior agosto em focos de queimada na Amazônia dos últimos 12 anos, o Pará foi o estado que liderou esse ranking. Ele também é campeão consolidado em desmatamento, segundo dados do Inpe.
Entre as zonas mais destruídas estão a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós e a Floresta Nacional do Jamanxim, unidades de conservação incluídas na rota do sobrevoo. De longe, um cogumelo gigante de fumaça saindo da APA atraiu a atenção dos passageiros. Depois de sobrevoar o local duas vezes, o piloto preferiu mudar de direção, por receio da reação dos homens que observavam do terreno a movimentação nas alturas.
“Antigamente, era mais difícil chegar a locais como este. Hoje, já existem muitas estradas abertas clandestinamente por madeireiros, por garimpeiros, o que facilita o acesso. Mas esse pessoal costuma respeitar quem passa por aqui de avião e helicóptero”, respondeu o piloto ao questionamento da reportagem depois de informar que não voltaria a cruzar o local em chamas.
Muitas dessas vias clandestinas estão dentro da Terra Indígena (TI) Munduruku. A invasão de garimpeiros denunciada seguidamente por lideranças é gritante do alto: zonas de garimpo têm pista de pouso, acampamento e maquinário.
Daniel Munduruku, que tenta registrar no celular tudo o que vê, também está neste sobrevoo. O território que sua família habita, Sawré Muybu, está numa parte do estado que foi reconhecida pela União, mas ainda não demarcada oficialmente. Em 2016, a DW Brasil esteve na região para acompanhar o processo de autodemarcação feito pelos indígenas – e o garimpo não tinha a dimensão que ganhou nos últimos quatro anos.
Quase ninguém do povo munduruku escapa da contaminação causada pelo mercúrio, usado na garimpagem do ouro. Estudos feitos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) mostram que 99% dos indígenas avaliados apresentam níveis de mercúrio acima de limites seguros. Cerca de 73% deles relatam sintomas de contaminação, a maior parte de origem neurológica. Por conta dos dados preocupantes, o Ministério Público Federal tenta agora criar um fórum de discussão sobre a contaminação no rio Tapajós.
“A gente sangra também. A nossa mãe terra está pedindo socorro, e a gente, principalmente como mulher indígena, traz muito para nós essa responsabilidade”, diz Auricélia ao descrever o que sente diante desse cenário.
Impactos profundos do garimpo
De Santarém, Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), estuda há décadas o cenário que impulsiona a destruição da floresta.
“Grande parte do desmatamento é associada à agropecuária, especialmente para o plantio de pastos. O desmatamento associado aos garimpos é bem menor em área, mas seus impactos são profundos no solo e amplos nos sistemas aquáticos”, afirma Barreto à DW Brasil.
Quando feita na terra, a escavação em busca do ouro revira o solo e camadas do subsolo. O mercúrio usado no processo contamina a lama, que escorre pelos pequenos cursos de água até chegar aos grandes rios. Essa poluição é ingerida pelos peixes e por pessoas que se alimentam deles, como as populações indígenas da região.
Uma análise feita pela EOS Data Analytics especialmente para esta reportagem identificou sinais de desequilíbrio observados por satélites. Por meio do Índice de Clorofila de Diferença Normalizada, a plataforma detectou vegetação na superfície da água em um local de baixa vazão do rio Tapajós.
“Observa-se uma ‘floração’, ou seja, algas que crescem perto de pedras e muitas vezes são prejudiciais aos habitantes dos rios e ecossistemas em geral”, diz o relatório que analisou a TI Munduruku.
Outro exemplo mostra uma área de garimpo ativa desde 2017, que, embora não tenha aumentado de tamanho, alcançou mais destruição. “Pode-se observar como zonas sem vegetação aumentaram após a lavagem do solo, mesmo sem a construção de novas minas. Como resultado, a vegetação diminuiu em 50 hectares”, aponta a análise.
“Terror” sob Bolsonaro e efeito da eleição
Na Amazônia, dois grandes vetores seguem alimentando o desmatamento. O primeiro deles, aponta Paulo Barreto, é o enfraquecimento das políticas de controle e os incentivos dados à ocupação e exploração de recursos naturais “com promessas de mudanças legais para regularizar atividades ilegais como a grilagem e os garimpos, inclusive em terras indígenas”.
A alta dos preços das commodities agrícolas e do ouro é tida como o segundo vetor. “Isso estimula uma corrida para aquisição de terras – inclusive a grilagem – e a garimpagem”, cita Barreto.
Em ano de eleição presidencial, a tendência é que a devastação piore. “Os políticos evitam fiscalizar e perder apoio de empresários e políticos locais. Nesta eleição, dados indicam um agravamento desta tendência, pois o governo atual tem promovido o desmatamento enquanto vários candidatos têm prometido voltar a fiscalização”, comenta Barreto.
Com o presidente Jair Bolsonaro na corrida pela reeleição, os desmatadores parecem querer aproveitar o resto do mandato e desmatar o máximo que possível. “Mesmo que as políticas mudem no futuro, eles vão pressionar para manter o que foi desmatado, incluindo perdões de crimes ambientais e fundiários”, analisa o pesquisador do Imazon.
Auricélia Fonseca Arapium também atribui ao atual governo o acirramento das invasões às áreas protegidas na Amazônia. “O governo incita isso. Ele incita o tempo todo essa violência. São momentos bem difíceis nestes últimos quatro anos, são momentos de terror”, pontua.
Apesar do choque e da tristeza ao observar a destruição do alto, somados ao medo das constantes ameaças que recebe, Auricélia diz acreditar estar no caminho certo. “Eu saio deste sobrevoo com muito mais coragem de continuar. A gente tem que continuar denunciando o que estão fazendo com nossos territórios, com nossas vidas, com nosso futuro”, defende.
“A Amazônia é rica e nós vivemos nessa riqueza. Nós queremos que ela continue para que a humanidade também continue”, diz.