01/01/2010 - 0:00
Há milênios, os mestres da arte do vidro transmitem suas habilidades de pai para filho, através de um percurso de experimentações e de invenções, nas quais a habilidade manual e a utilidade do objeto criado se fundem com a criatividade artística. Não é diferente para dois mestres contemporâneos dessa arte antiquíssima, os italianos Claudio Radiciotti e sua filha, Alessia. Ela, glass designer formada pela Academia de Belas Artes de Roma, na Itália; ele, conhecido expoente do panorama artístico romano.
A esposa, Gioia, mãe de Alessia, e mais um cão, três gatos, dois periquitos e um pássaro mainá indiano completam a família. Os Radiciotti vivem e trabalham num grande apartamento de cobertura situado na Via Umberto Saba 4, no bairro EUR, em Roma (visite o site: www.radiciotti.it ). Misto de antiga bottega artigiana e moderna residência, a casa/ateliê dos Radiciotti dá a quem chega a curiosa impressão de ser uma nave para se viajar no tempo e no espaço. Nas paredes do grande salão central, prateleiras repletas de obras em vidro disputam espaço com óleos, desenhos e gravuras assinadas tanto por Claudio quanto por vários outros artistas plásticos amigos da família.
Em outro salão, onde ficam os fornos para a fusão dos vidros, uma imensa mesa de trabalho também serve de base para as gaiolas dos pássaros. No ateliê de criação há incontáveis recipientes transparentes cheios de pigmentos para a produção de vidros coloridos. Alguns ângulos da casa lembram um laboratório alquímico misteriosamente transposto da Idade Média para a Roma de hoje. É ali que esses dois bruxos da moderna arte do vidro, não por acaso pai e filha, fazem suas artimanhas, inventando e criando peças cuja beleza chega a tirar o fôlego de quem as vê. Em todos os cantos existem obras de vidro criadas pela dupla. São sobretudo luminárias, mas também portas, janelas, vitrais, divisórias, pratos, taças e copas, uma infinidade de objetos para o uso cotidiano que parecem feitos de luz colorida e solidificada.
“Esse é o mistério do vidro”, diz Claudio. “Como a água, ele é na verdade um fluido, só que muito mais viscoso. Como a água congelada, ele derrete e vira líquido quando subimos a sua temperatura. É por conta dessas características que o vidro é a matéria-prima ideal para realizarmos a nossa light painting, pintura de luz, uma refinada evolução da antiga técnica da vidro fusão, com a qual é possível obter extraordinários efeitos pictóricos graças à intensidade cromática do material utilizado.” E, sem conter o próprio entusiasmo, ele acende uma a uma as várias luminárias de vidro dispostas ao longo das paredes.
“COMO A ÁGUA, O VIDRO É UM FLUIDO, SÓ QUE MUITO MAIS VISCOSO. É A MATÉRIA- PRIMA IDEAL PARA REALIZARMOS A NOSSA LIGHT PAINTING, PINTURA DE LUZ”
O salão logo se transforma numa caverna das maravilhas. Atravessadas pela luz, cada uma delas revela cenas e paisagens figurativas e abstratas, feitas de cores tão intensas que parecem coisas vivas. Muitas utilizam motivos próprios da estética de Claudio e Alessia. Outras revelam suas fontes de inspiração: Picasso, Braque, Cézanne, Chagal, Klee, Klimt, Kandinsky, Miró, Monet e vários outros grandes da pintura europeia do século 20. Saídos todos da paleta mágica dos Radiciotti, esses vidros não têm nenhum pudor de se apossar das idéias daqueles grandes para devolvê-las, transfiguradas, na linguagem desse material.
Qual é a origem do vidro? Como a técnica de produção do vidro de arte se desenvolveu até chegar aos Radiciotti?, pergunto, afobado, na tentativa de subtrair-me ao fascínio um tanto perturbador daquelas peças luminosas. Claudio se acomoda na poltrona. A conversa será longa. Diz que o vidro tem origens muito antigas e que até hoje é difícil estabelecer com certeza qual povo o descobriu, certamente de maneira fortuita e inesperada.
Segundo uma antiga história fenícia, recontada pelo historiador Plínio, alguns mercadores, retornando do Egito com uma carga de natrão (ou salnitro), pararam uma noite à beira de um rio para descansar. Não encontrando pedras no local para colocar as panelas em que cozinhariam o jantar, tomaram alguns blocos de natrão e sob eles acenderam o fogo que continuou a queimar por toda a noite. Pela manhã, ao despertar, esses mercadores viram com estupor que, em vez da areia do rio e dos blocos de natrão, havia no lugar um novo material brilhante e transparente. Estava descoberto o vidro.
Trata-se de uma lenda, mas ela contém verdades a respeito da composição do vidro e da difusão desse material na orla mediterrânea pelos mercadores fenícios. O vidro nasce da combinação da sílica, mineral contido na areia de rio, com cal (carbonato de cálcio); a fusão é facilitada por uma substância alcalina, a soda – esta última extraída, na antiguidade, das cinzas das algas e de plantas costeiras.
A mais antiga manufatura conhecida do vidro provém da Ásia ocidental, na Mesopotâmia (atual Iraque), e remonta à Idade do Bronze, ao redor do terceiro milênio antes de Cristo. Os mais antigos trabalhos encontrados são contas coloridas, carimbos e sigilos, ornamentos de marchetaria e placas. Essas técnicas mais antigas possibilitavam apenas a fabricação de peças pequenas, quase sempre destinadas a usos ritualísticos ou decorativos.
A MAIS ANTIGA MANUFATURA CONHECIDA DO VIDRO PROVÉM DA ÁSIA CENTRAL, NO ATUAL IRAQUE, E REMONTA À IDADE DO BRONZE
Só bem mais tarde, ao redor dos século 16 e 15 antes de Cristo, aparecem os primeiros objetos de dimensões maiores, vasos, jarras, copas. Eles eram bastante frequentes na época dos faraós, no Egito. Como, naquela época, o Egito conquistara vastas áreas da Mesopotâmia, da Síria e da Palestina, é provável que tenham aprendido os segredos da composição e da fabricação do vidro com alguns prisioneiros que os conheciam bastante bem.
Rapidamente, a tecnologia da produção do vidro se difundiu em toda a orla do Mediterrâneo entre os séculos 15 e 13 antes de Cristo. Apesar disso, o vidro permaneceu um produto raro e caro, por conta das dificuldades da sua produção. As fábricas foram instaladas nos grandes centros urbanos e desenvolveram sua atividade sob o patrocínio do rei ou da classe aristocrática. Eram, de qualquer forma, pequenos ateliês de dimensões e de produção bastante limitadas.
“TALVEZ SEJA POR POSSIBILITAR UM ALCANCE TÃO PROFUNDO À PERCEPÇÃO QUE O VIDRO SE MOSTRA UM MATERIAL TÃO DELICADO E MUITAS VEZES TÃO CIUMENTO E POSSESSIVO”
Já nessa época, os vidreiros conquistaram uma aura que, de certa forma, permanece até os dias de hoje. Eles constituíam uma classe de operários de elite, dedicados a uma arte “esotérica”: os métodos da sua atividade eram considerados fruto da habilidade e do talento pessoais, mas também da magia e da posse de poderes ocultos.
As diferentes formas de produzir e trabalhar o vidro foram surgindo e se desenvolvendo ao longo dos séculos, dando origem a várias tecnologias. Uma delas, a do vidro soprado, surgiu aparentemente no antigo Egito e atingiu seu máximo desenvolvimento em Veneza e nas cidades vizinhas de Murano e Burano, durante a Idade Média, bem como na região da Boêmia alemã e checa.
Foi também nesse período que surgiu a extraordinária arte dos vitrais, que até hoje podem ser admirados nas grandes catedrais cristãs da Europa e de outros lugares do mundo. A técnica continua sendo utilizada até hoje, sobretudo para a realização de obras de arte. Já o termo “vidro cristal”, que deriva do cristal mineral, assumiu uma conotação de vidro incolor de alta qualidade, geralmente usado para a confecção de objetos refinados, como taças, vasos e contas para lustres e outros lampadários.
Alessia e seu pai, Claudio Radiciotti, passam horas inteiras compondo suas peças de vidro, antes de levá-las ao forno de alta temperatura, nos quais irão adquirir sua cores, texturas e transparências definitivas.
Por que a escolha do vidro como matéria-prima da sua arte? “Porque o vidro, com sua transparência, funciona como um filtro de luz. Ao passar através dele, a luz revela todos os matizes das cores que o compõe. E uma simples luminária de vidro, por exemplo, se transforma numa verdadeira porta dimensional para quem a contempla. Ela permite que o observador faça o caminho inverso: passar para o outro lado para encontrar não simplesmente a luz elétrica que a ilumina, mas toda a paleta subjetiva que representa a própria origem das cores: a dimensão quase intangível da cor pura”, diz Claudio.
“Talvez seja por isso, por possibilitar um alcance tão profundo à percepção, que o vidro se mostra um material tão delicado e muitas vezes tão ciumento e possessivo. Você não imagina quantas peças simplesmente se quebram ou se desfazem durante a cocção no forno, para que apenas algumas poucas permaneçam intactas e perfeitas. Mesmo assim, quando você começa a trabalhar com ele, não consegue mais parar. O vidro se apodera do vidreiro, acena sempre com algum novo mistério a ser descoberto, e não admite que você se dedique a qualquer outro material. Ele exige exclusividade.”
E vocês estão dispostos a concedê-la? Claudio e Alessia respondem quase ao mesmo tempo: “Acho que não somos nós a escolher o vidro. É ele quem nos escolhe.”
Um sólido com estrutura atômica de líquido
O vidro é uma substância inorgânica, homogênea e amorfa, obtida através do resfriamento de uma massa líquida à base de sílica.
Em sua forma pura, o vidro é um óxido metálico superesfriado transparente, de elevada dureza, essencialmente inerte e biologicamente inativo, que pode ser fabricado com superfícies muito lisas e impermeáveis. essas propriedades desejáveis conduzem a um grande número de aplicações. No entanto, o vidro é frágil, quebrando-se com facilidade.
Certos autores consideram o vidro um sólido amorfo, ou seja, sem estrutura cristalina. No entanto, ele apresenta características de um líquido em sua ordenação atômica, mesmo em temperatura ambiente, ou seja, quando tem a aparência de sólido, por se tratar de uma substância de alta viscosidade (1.040 Pa·s, a unidade de medida de viscosidade, a 20°C). o vidro comum se obtém por fusão em torno de 1.250ºC de dióxido de silício, (sio2), carbonato de sódio (Na2Co3) e carbonato de cálcio (CaCo3). sua manipulação só é possível no momento da fundição, quando se encontra quente e maleável.