Lilian Divina Leite levava uma vida relativamente tranquila nos Estados Unidos, apesar de situação irregular. Novo governo de Donald Trump, porém, mudou tudo.A advogada brasileira Lilian Divina Leite fez as malas em agosto de 2024 para o que seria uma simples viagem de férias aos Estados Unidos. Sem muito planejamento e com pouco dinheiro, ela acabou ficando 11 meses no país, percorrendo mais de oito estados até se tornar um dos raros casos de imigrantes que solicitaram a própria deportação e falam abertamente sobre o processo.

Lilian conta que chegou em Miami no dia 7 de agosto de 2024, onde ficou alguns dias antes de seguir viagem. De ônibus, ela seguiu para Orlando, ainda na Flórida, onde realizou o sonho de muitos turistas de visitar a Disney. Uma vez lá, ela decidiu deixar a passagem de volta para trás e seguir para Nova York, ainda sem saber como seria a saga dos onze meses seguintes que ela passou nos Estados Unidos.

Nos primeiros meses, Lilian viveu de forma instável, movida tanto pela curiosidade quanto pela fé. Segundo ela, foi um “direcionamento espiritual” que a levou até Charlotte, na Carolina do Norte, onde acabou se estabelecendo. “Eu não conhecia ninguém. Mas eu sou meio doida com esse negócio de fé, sabe? Eu acredito quando Deus fala e me jogo”, explica.

Em Charlotte, ela postou um apelo nas redes sociais em busca de trabalho disposta a fazer qualquer coisa, uma vez que, segundo ela, seu diploma “não servia para nada” no país. A postagem viralizou entre grupos de brasileiros e abriu portas. “Um rapaz de uma igreja me colocou em contato com pessoas que estavam alugando quartos. Eu fiquei um dia em Charlotte e já fui trabalhar em duas casas”, relembra. Ela conta que começou como aprendiz, ganhando 30 dólares para trabalhar o dia inteiro.

“Eles adoram quando percebem que você acabou de chegar, porque sabem que você vai aceitar tudo”, desabafa. Mesmo diante das dificuldades, Lilian se manteve firme. Nos períodos em que não conseguia trabalho, recebia cupons para comprar alimentos, doava plasma em centros de saúde em troca de dinheiro, além de contar com a solidariedade de igrejas e amigos.

“Eu via como um aprendizado. Nunca pensei que fosse passar por isso, mas também nunca senti vergonha. Eu fazia o que precisava para viver e para não depender de ninguém”, diz.

Novo governo

A decisão de voltar ao Brasil amadureceu lentamente, entre o cansaço, o medo e os problemas de saúde, que foram de problemas de pressão à descoberta de uma endometriose. O cenário externo também havia mudado, já que a política de deportação em massa do novo presidente começava a movimentar o país. “Eu via histórias de gente sendo parada pela imigração, até com visto válido. E pensei: eu não quero passar por isso”, conta.

Segundo dados oficiais do governo americano, no primeiro ano do retorno de Donald Trump à Casa Branca, 2 milhões de imigrantes em situação irregular deixaram os Estados Unidos em menos de 250 dias, sendo 1,6 milhão por autodeportação voluntária e mais de 400 mil deportados pelas autoridades.

Além disso, um estudo recente da ONU aponta ainda que as políticas migratórias de Trump resultaram em queda de 97% no número de migrantes que tentaram entrar no país vindo da América Central. Do total dos que desistiram da travessia, 49% disseram acreditar que seria impossível entrar nos EUA sob o governo Trump, enquanto 46% afirmaram ter abandonado a tentativa por medo de detenção ou deportação.

Mas, no caso de Lilian, a decisão de voltar ao Brasil nasceu do medo. Ela lembra que, entre conhecidos e até nas redes sociais, ouviu comentários cruéis. “A pessoa fica com vergonha. Você imagina o que os meus haters me falaram? ‘Nossa, que vergonha, não consegue nem ter dinheiro pra voltar!’ ‘Mas você deve ser uma advogada muito ruim mesmo, hein?’ Eu escuto de tudo”, conta, com ironia. “Mas a verdade é que eu fiquei com medo.”

No início, diz ela, o clima na Carolina do Norte não parecia hostil. A região, que apoiou Trump nas urnas, era mais tranquila que outros estados, e por um tempo ela acreditou que poderia continuar ali em paz. Com o passar dos meses, porém, começaram a circular histórias de pessoas com visto regular que haviam sido detidas. “Duas pessoas que trabalhavam foram levadas para a delegacia. Um deles apanhou tanto que foi parar no hospital”, relata. O episódio a marcou profundamente. Aí eu pensei: eu não consigo nem dividir quarto com outras pessoas. Se eu for presa, eu vou surtar.”

Tentativa de regularizar a situação

Antes de tomar a decisão de voltar para o Brasil, Lilian ainda tentou regularizar a permanência. Pediu extensão de visto alegando motivos de saúde e dificuldades financeiras. Explica que reuniu toda a documentação e solicitou isenção da taxa de 600 dólares. Mas, ao fazer as contas, percebeu que o custo seria alto demais. “Aí pensei: é melhor usar esse dinheiro para ir embora.”

A ideia de pedir a autodeportação veio algumas semanas depois. Lilian conta que fez a solicitação no dia 18 de maio, por meio do aplicativo CBP Home, e recebeu uma resposta automática. “Eles dão um telefone, mas ninguém atende. Fiquei uma semana tentando até que uma mulher me ligou”, diz, rindo ao lembrar da conversa: “É do negócio que leva a gente embora?”, disse ela à funcionária que a ajudou a decidir as datas para que o próprio órgão de imigração comprasse a passagem. “Eles pagam a passagem e ainda dão mil dólares quando a gente chega no Brasil”, acrescenta a brasileira.

O benefício, explica ela, é transferido pela Western Union. “Mas eles só pagam uma vez que você já chegou ao Brasil e somente se a passagem de volta foi comprada por eles, senão você perde o direito. Tem gente que compra por conta própria e depois quer o dinheiro, mas não tem como.”

Durante os meses em que viveu em Matthews, cidade com grande presença brasileira em Charlotte, Lilian alugava um quarto simples na casa de um conterrâneo. “Pagava 750 dólares, com cozinha, lavanderia, tudo incluso. Era simples, mas tranquilo”, diz. Mas ela garante que diferentemente de outros imigrantes, seu objetivo não era viver o sonho americano e que resolveu voltar para casa antes de que a aventura virasse um pesadelo.

Hoje, ela conta essa história sem arrependimento, embora não tenha vontade de reviver a experiência. “Eu faria tudo de novo, com certeza. Mas eu não gostaria de estar nos Estados Unidos agora, de jeito nenhum, de jeito nenhum”, desabafa.

De fé forte e criação evangélica, Lilian acredita que toda a jornada teve um sentido espiritual. “É tão bizarro. Muita gente acredita que o Trump é um enviado de Deus. Como que ele autorizou um ambiente onde os imigrantes passaram a ser odiados?”, questiona.

Medo constante

Ela recorda que o medo era constante entre os brasileiros com quem conviveu. Diz ter presenciado uma mulher passar mal no carro depois que alguém ameaçou denunciar o marido dela ao ICE. “Ela vivia lá há mais de 20 anos, os filhos eram americanos, pagava impostos. Mas o medo tomou conta de todo mundo.”

O impacto psicológico sofrido por ela só ficou claro quando ela já estava de volta ao Brasil. “Quando cheguei em São Paulo, peguei um ônibus com meu filho. Ouvi uma sirene e me assustei. Falei para mim mesma: ‘calma, você tá no Brasil, ninguém vai te prender.” Emocionada, ela faz uma pausa e continua: “Foi ali que percebi que eu estava tensa o tempo todo. Eu nunca tive medo da deportação, o medo era de ser presa.”

Mesmo assim, Lilian encara tudo como parte de um aprendizado. “Eu só aceitei a autodeportação porque minha situação era totalmente diferente. Fui passear, acabei ficando. Minha família toda está no Brasil. Eu não fui para os Estados Unidos para ganhar dinheiro, eu fui pra viver a experiência.”

Agora, de volta à rotina brasileira, ela reflete sobre o que viveu. “Eu não estava nos Estados Unidos para vencer na vida. Eu só queria ver o mundo. Mas aprendi que, lá, às vezes, liberdade é um luxo que nem todo mundo pode ter.”