19/05/2021 - 16:03
São 9h da manhã, e Arvind Gaekwad e Gautam Ingle, funcionários de um crematório, descansam antes de começar mais um turno agitado. “Um corpo está a caminho e outros devem chegar ainda hoje”, comentam à DW. Eles trabalham num crematório hindu em Turbhe, nas cercanias de Mumbai, no estado indiano de Maharashtra.
Gautam e Arvind foram informados pelos parentes que não se trata de uma morte provocada por coronavírus. O atestado de óbito, no entanto, dá como causa da morte choque séptico causado por síndrome do desconforto respiratório agudo, que frequentemente mata pacientes de covid-19.
Após a morte, os familiares não realizaram o teste de RT-PCR para detectar a presença do vírus. Em vez disso, simplesmente informaram os funcionários do crematório que um exame feito pelo paciente seis dias antes do óbito dera negativo.
Os trabalhadores do local começam então a preparar a pira para o corpo. Ele chega 30 minutos depois numa ambulância. Há uma clara violação do protocolo da covid-19, com pelo menos 30 presentes para o funeral, enquanto o governo de Maharashtra prescreve que apenas 20 podem comparecer a tais eventos.
Os funcionários do crematório dizem à família que deve seguir as orientações do governo, mas são pressionados. “Tentamos o máximo possível seguir todas as diretrizes do governo. Mas se a família nos bate ou nos ameaça, não há muito a fazer. Somos só cinco contra 20 a 30”, explica um funcionário que não quer ser identificado.
Arvind conta ter havido muitos casos em que cremaram um corpo e, vários dias depois, foram informados de que a causa mortis fora covid-19. “É como se estivéssemos literalmente brincando com nossas vidas e não houvesse ninguém para nos proteger. Se apresentarmos sintomas de covid e tentarmos ser internados num hospital, vamos ser rejeitados como ‘sujos’.”
Salários baixos, condições perigosas
Ao limpar as piras funerárias, Arvind não usa uma máscara N95, mas apenas um lenço tapando o rosto. Outros funcionários do crematório também manuseiam os cadáveres sem usar kit de proteção. “Como não somos vistos como trabalhadores da linha de frente, nossa saúde não é uma prioridade”, queixa-se.
Caso adoeçam, o salário deles não basta para cuidar de suas necessidades de saúde. “Pela quantidade de trabalho que esses funcionários fazem, eles recebem apenas 15 mil rúpias [R$ 1.085] por mês. Não há nenhum plano para protegê-los – seja física ou mentalmente”, explica o assistente social local Deepak Gaikwad.
“O trabalho deles é precário e podem ser demitidos facilmente, pois são contratados para funções temporárias. Eles não podem nem mesmo conseguir um emprego em outro local, pois não adquiriram nenhuma qualificação considerável com esse trabalho.”
Gaikwad revela que os trabalhadores receberam recentemente uma advertência do empregador de que poderiam ser multados ou demitidos se continuassem a receber “propinas” das famílias dos mortos para descartar os ossos dos defuntos. Na cultura hindu, é costume coletar os ossos e mergulhá-los num rio sagrado.
“Muitos não querem tocar diretamente nos ossos do falecido. Eles então pagam a esses trabalhadores para coletarem os ossos em seu lugar. Às vezes, também pagam uma quantia simbólica por pura gratidão, pelo imenso risco que correm ao cremar os corpos.”
Mas alguns reclamaram à corporação municipal local, e o empregador, sem verificar as informações pessoalmente, enviou a carta ameaçando de demissão. “Isso deixou esses funcionários com medo de perderem o emprego, num momento em que já arriscam a vida todos os dias”, completa Gaikwad.
Risco de infecção
Sahil Singh, médico da clínica V-Medica na cidade de Gurgaon, confirma que os trabalhadores do crematório correm riscos durante todas as etapas do processo de cremação. Ele lembra que há muitos riscos de transmissão além da covid-19, como HIV, hepatite, febre tifoide, cólera e tuberculose.
Doenças podem também se transmitir aos funcionários se eles manejarem inadequadamente os corpos durante a cremação, ou mesmo recolherem os ossos sem proteger as mãos: “Se o paciente morre de causas naturais, é difícil determinar se ele tinha covid”, diz Singh.
“Nesse caso, o corpo que chega ao crematório é desembrulhado. Isso aumenta o risco de infecção para os trabalhadores. Mesmo que não se trate de covid-19, não podemos ter certeza de que o saco que envolvia o corpo esteja livre do vírus. Os fluidos corporais contêm bactérias e vírus nocivos.”
Singh também comenta que, em lugares como Uttar Pradesh e Nova Délhi, onde ocorriam cremações em massa, os funcionários do crematório literalmente retiravam os corpos semi-incinerados da pira para abrir caminho a outros.
Esse manuseio impróprio de cadáveres exumados também expõe os trabalhadores a doenças perigosas. Ele acrescentou que os crematórios muçulmanos e cristãos, onde os corpos são enterrados antes da queima, também expõem os trabalhadores a infecções.
“Em vários crematórios, uma vez que o corpo está enterrado e começa a se deteriorar, ele é removido e levado para outro local. Este cadáver é uma imensa fonte de infecção.”
Sofrimento psicológico
Os trabalhadores do crematório de Turbhe relatam que a atual onda da pandemia tem afetado sua saúde mental.
“Trabalhamos sem parar em março e abril. Chegavam literalmente de 20 a 25 corpos por hora. Ambulâncias se alinhavam do lado de fora do crematório. Não tínhamos tempo para comer nem beber água. Nosso pagamento não compensou a quantidade de trabalho que fizemos nesses dois meses”, afirma Arvind.
Ele tem medo de contrair o novo coronavírus. “Não sei muito sobre a doença, mas tenho visto os cadáveres. Se é essa a condição de quem morre de covid, então não quero ser um deles. Todos os dias acordo pensando se será hoje que vou pegar o vírus.”
“Se me sinto sobrecarregado emocionalmente, posso tirar um ou dois dias de folga. Depois disso, tenho que voltar ao trabalho, caso contrário o empregador desconta do meu salário”, acrescenta. “Trabalho aqui há quase 20 anos, mas ainda não me tornei funcionário fixo. Nunca quis fazer esse trabalho, mas as dificuldades econômicas me obrigaram a aceitar. Foram as bênçãos da minha família que me salvaram da covid até agora.”