23/05/2024 - 14:03
Berlim quer expandir o modo de lidar com a história para incluir o passado colonialista do país. A ideia foi recebida com críticas: teme-se que os crimes genocidas do nazismo passem a ser relativizados.Há décadas a Erinnerungskultur, a cultura da memória alemã, é tida como padrão ouro para o modo como uma nação deve lidar com os crimes de seu passado e honrar as vítimas de tirania. No caso da Alemanha, isso tem se aplicado, em princípio, às atrocidades do regime nazista (1933-1945), com a perseguição de inimigos políticos e minorias, redundando no horror do Holocausto.
No entanto, vem crescendo a pressão para integrar a essa cultura tão venerada o passado colonialista alemão. Quando o governo de centro-esquerda de Olaf Scholz assumiu, em 2021, o acordo de coalizão previa uma reforma para incluir a época colonial e as histórias dos que imigraram para o país.
Em fevereiro de 2024, o escritório da ministra da Cultura e Mídia, Claudia Roth, publicou uma lista de 43 páginas com sugestões de reforma, abarcando cinco áreas: história do nacional-socialismo, a extinta República Democrática Alemã (RDA, sob regime comunista de 1949 a 1990), passado colonialista, democracia e imigração.
A proposta foi logo alvo de críticas severas, em especial por parte dos responsáveis por memoriais do Holocausto. Em carta conjunta, estes acusaram o novo quadro de introduzir “uma mudança de paradigma que acarretaria um enfraquecimento fundamental da cultura da memória”, divergindo do “consenso de longa data de que os crimes nacional-socialistas não devem ser relativizados”.
Para os signatários, as sugestões não deixavam clara a importância do Holocausto para a Alemanha, podendo ser “interpretadas como revisionismo histórico, no sentido de trivializar os crimes nazistas”. Tamanha foi a pressão, que o ministério de Roth removeu o esboço de seu website.
Não é um concurso de vitimização
A organização sem fins lucrativos Iniciativa Pessoas Negras na Alemanha (ISD), foi convidada pelo escritório da encarregada de Cultura para dar seu parecer sobre as propostas. Seu porta-voz, Tahir Della, saudou a inclusão da história colonial na cultura da memória mais ampla, porém, enfatizou que não se trata de um “concurso de vitimização”.
Em vez disso, a ISD gostaria de um intercâmbio entre os sítios memoriais do Holocausto, os das etnias nômades sinto e roma (popularmente conhecidos como “ciganos”), e o sistema da RDA, a fim de “deixar claro que experiências históricas, histórias e épocas de perseguição têm que ser e devem ser vistas como histórias entrelaçadas”.
“Nosso ponto de vista é que estamos falando de continuidade colonialista, a qual ultrapassa o período colonial, indo pela era nazista adentro, por exemplo. E que houve precursores, por assim dizer, antes mesmo que a Alemanha fosse oficialmente uma potência colonial, que estivesse envolvida em crimes colonialistas, em escravidão”.
Para Della, os problemas atuais da mudança climática, migração e deslocamento, desigualdades comerciais e racismo são consequências diretas do passado colonial europeu, e entender essa história é essencial para encarar tais desafios – por mais difícil que seja se confrontar com tal história.
“Temo que [a resistência] esteja em parte relacionada ao fato de que é preciso 'revisitar' uma história que não é especialmente positiva para a historiografia alemã, para a autoimagem do país, de que muita gente acha difícil levar em consideração esses aspectos.”
Memória num mundo globalizado
Sebastian Conrad, professor de história global e pós-colonial da Universidade Livre de Berlim, tampouco acha que as reformas propostas, em particular a da inclusão do passado colonialista, possam resultar numa trivialização dos crimes nazistas: “não concordo com a premissa dessa crítica, de que celebrar uma outra coisa signifique relativizar.”
Para ele, o debate sobre a cultura da memória reflete questões sociais mais amplas, como a migração para a Alemanha desde 2015: esta também deveria ser discutida no nível da política da memória, pois a imagem do passado se transforma à medida que a sociedade alemã muda.
“Todo ano vai haver novos alemães, novos alemães nascendo, novos alemães vindo para o país, então não seria realista pensar na memória como algo estável, fixo e consensual, e que, se há um consenso, é assim que ficará”, lembra Conrad.
“O mundo globalizante em que vivemos tem uma história mais longa, uma em que o colonialismo representou um papel crucial. Então, sempre que quisermos entender como chegamos ao presente globalizado, precisamos entender a história do imperialismo, dos impérios, do colonialismo também.”
Para o politólogo teuto-namibiano Henning Melber, a resposta às propostas de Roth é “triste e lamentável”.
“Quase parece uma reação irracional; ter medo de que acrescentar dois pilares à memória do Holocausto e da RDA – os quais, é interessante, nunca foram considerados concorrentes entre si – vá subtrair atenção, mas possivelmente também patrocínio, para suas atividades.”
Como fechar contas com um passado que é presente?
Costuma-se descrever o Holocausto como uma “ruptura com a civilização”. No entanto, a crítica pós-colonial argumenta que, antes dele, as potências colonialistas europeias já tinham estabelecido um sistema racista e violento, incluindo genocídio, em nome da civilização. No próprio passado colonial da Alemanha está o genocídio dos povos herero e nama no Sudoeste Africano Alemão, atual Namíbia, entre 1904 e 1908.
“Todos que exigem uma confrontação adequada com os crimes colonialistas jamais colocaram em questão que o Holocausto culminou numa forma singular de extermínio em massa planejado, sistemático, industrial, de um grupo específico, ou melhor, de grupos específicos, no plural”, enfatiza o ativista anticolonial Melber.
“Se eu tento entender a perspectiva dos herero e dos nama, a estratégia de extermínio que matou a maioria dos ancestrais deles foi uma experiência singular, então sua condição de vítima também foi de singularidade. Não significa que seja a mesma, ninguém diria tal coisa. A exigência é dar o reconhecimento apropriado às vítimas desses crimes e exigir expiação suficiente.”
Melber aponta que, embora muito elogiada por sua cultura da memória relativa ao Holocausto, a Alemanha tem “fracassado redondamente” no tocante à história violenta do Império Alemão nas colônias, em parte porque as antigas potências coloniais ainda se beneficiam de um sistema – supremacista branco – baseado em exploração, subjugação e opressão.
“Estar disposto a tomar conhecimento da história, com as consequências que teve para nós, como beneficiários, e para os que estavam pagando o preço, cria um problema moral tremendo”, reconhece o politólogo teuto-namibiano. “Como podemos realmente acertar contas com aquele passado no presente? Porque não é passado, é presente. Basicamente significa: de quanto estamos dispostos a abrir mão?”