10/01/2017 - 12:15
Navegar pelo rio Doce ajuda a assimilar a realidade do pior crime socioambiental da história do Brasil. Na região da foz, na proa de um pequeno barco de madeira, pode-se imaginar como era a vida antes da tarde de 21 de novembro de 2015, quando a lama tóxica da Samarco alterou o cotidiano em Regência, uma pequena vila do Espírito Santo onde os cerca de 1.200 moradores viviam do rio e do mar.
Os rejeitos de mineração percorreram 650 quilômetros em 16 dias, de Mariana a Regência. No mar, o governo e a empresa esperavam que a “pluma de turbidez” se espalhasse em uma área de 9 quilômetros e se dissipasse. Contudo, ainda hoje a lama é perceptível na foz, um hotspot de biodiversidade mundial. Um ano depois da tragédia, o oceanógrafo Eric Farias, de 30 anos, proprietário da pousada Bocana Surf Camp, ainda não vê motivos para comemorar.
“Está ocorrendo o que estava previsto para esse tipo de incidente: a lama decantou no fundo do rio e do mar e agora vivemos alterações de panoramas, mas que de fato não caracterizam melhoras quanto aos impactos severos tanto no âmbito social quanto ambiental”, avalia. “Pelo contrário: ainda existe o risco de uma nova onda de lama, talvez ainda pior (devido ao previsto período de chuvas fortes), os efeitos da toxicidade dos metais ainda vêm sendo bastante minimizados, ou nem sequer avaliados, e a contaminação é algo extremamente real, principalmente se tratando de um cenário crônico no médio e no longo prazo.”
Os moradores se esforçam para voltar a uma vida normal, mas essa é uma tarefa bem difícil, como já se podia antever ainda na nossa visita ao local em dezembro de 2015. Eduardo Barcelos, pescador de 34 anos, por exemplo, não foi contratado pela Samarco para instalar e monitorar os 9 quilômetros de boias de contenção, de um tipo comum em casos de vazamento de óleo, e para aliviar o prejuízo passou a realizar expedições pelo rio, muito procuradas por pesquisadores e jornalistas.
No estuário, peixes vez ou outra irrompiam na superfície da água. “Pulam pra pegar oxigênio, e não por estarem saudáveis. Estão infectados, não está pra consumo humano”, observou. “Quem vai ser o primeiro a arriscar? Eu não, e turista nenhum vai querer comprar peixe.” Barcelos acertou em cheio. A Justiça proibiu a pesca na foz do rio Doce, assim como no próprio leito do rio, mas, mesmo que isso não tivesse acontecido, não se vende peixe capturado na região, porque os consumidores têm medo de ingeri-los. Os próprios pescadores receiam alimentar-se com eles.
Mar contaminado
O surfe (Regência tem uma onda considerada clássica no Espírito Santo) e o comércio ligado a ele também foram duramente atingidos pelo desastre. Seis meses antes da lama, Lucas Teixeira (o “Índio”), de 22 anos, o mais velho de cinco irmãos, havia concretizado o sonho de abrir a loja Regisurf, que lhe permitia garantir o sustento e poupar para construir um “barraco” para a família. Na manhã de 5 de dezembro, ele decidiu surfar, a exemplo de uma dúzia de nativos e locais.
Na saída da foz, a onda continuava marrom, mas 5 quilômetros ao sul, no Point 1, quebravam tubos esverdeados. Antes de cair na água, Índio ajoelhou-se na areia por alguns minutos, cabeça baixa e olhos fechados. Sua preocupação tinha fundamento. As substâncias presentes no mar só seriam divulgadas no dia 5 de fevereiro, pela Universidade Federal do Espírito Santo: elevado teor de ferro, alumínio, manganês e cromo.
Perto da Regisurf de Índio está o Bocana Surf Camp de Freitas, um dos empreendimentos turísticos da região, que ficaram às moscas com o desastre do rio. Ele investiu todo seu dinheiro na pousada, inaugurada em setembro de 2015, à espera do retorno financeiro durante uma temporada que se afigurava promissora. Quando a lama chegou, Freitas se viu em um cenário de poucos dados, muita especulação e sob a tentativa incessante de acobertar a situação.
Diante disso, passou a ajudar a comunidade nas questões técnicas, ambientais e burocráticas e tornou-se representante do Fórum Capixaba de Defesa da Bacia do Rio Doce. Freitas também iniciou, com a surfista nativa Thalena Pereira, o movimento Regência Viva, dedicado a encontrar fórmulas para a própria população se desenvolver e renovar a vila. “A gente quer recuperar não só a energia das pessoas, mas também a atratividade de Regência, por meio de outras fontes de renda: turismo sustentável, trilhas ecológicas, birdwatching”, explicou um mês após o desastre.
Um ano depois, no entanto, Freitas reconhece que ainda não há boas notícias a comemorar. “Vivemos um momento muito triste, pois a realidade em que os atingidos (comunidades) estão não lhes deixa outras oportunidades a não ser aceitar a atual situação de riscos elevados e continuar a tentar levar a mesma vida de antes. Mas tudo mudou para todos, e essa realidade não há como negar…”