26/12/2013 - 16:36
Mais de onze milhões de romeiros visitam, todo ano, a rota da fé, o eixo Aparecida-Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, em São Paulo. Na região, o culto a Frei Galvão, o primeiro santo católico brasileiro, virou uma devoção que não cessa de ganhar adeptos
Retirada da rotatória que margeava as rodovias Presidente Dutra e Paulo Virgínio, em São Paulo, a estátua de oito metros de altura de Frei Galvão está de volta a Guaratinguetá, sua cidade natal. No fim de outubro, a obra foi colocada num pedestal provisório no Santuário Arquidiocesano de Frei Galvão, à espera da construção de um monumento com 13 metros de base e 15 metros de altura, ao qual os romeiros terão acesso por escada ou elevador. Quando a obra for concluída, “praticamente toda a cidade terá uma visão belíssima de Frei Galvão”, afi rma o cardeal arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis.
Abençoada pelo papa Francisco em 2013, a imagem branca, de poliuretano revestido com fi bra de vidro e resina parafi nada, esculpida pelo artista Irineu Migliorini, vai intensifi car o fluxo de peregrinos e turistas para a “rota da fé” do Vale do Paraíba, no eixo Aparecida- Guaratinguetá. Em 2012, nada menos do que 11,6 milhões de devotos visitaram apenas Aparecida – 305 vezes a população da cidade, de 38 mil habitantes –, segundo o vice-prefeito, Ernaldo Marcondes. Na média, seriam 223 mil fi éis por fim de semana. Com o assédio, o “Caminho de Frei Galvão”, ao longo de 135 quilômetros na Serra da Mantiqueira, virou um circuito turístico inspirado no caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, que passa por dezenas de endereços entre Guaratinguetá e São Bento do Sapucaí. Os caminhantes, muitos com mochilas e cajados enfeitados com fitas coloridas do frei, percorrem as trilhas e ganham um “diploma” na casa do franciscano.
Em Aparecida e Guaratinguetá, a população cultiva a devoção ao santo com orgulho e interferências no culto não são bem-vindas. A transferência da estátua da rotatória para o santuário, por exemplo, gerou muita controvérsia. “Todo mundo que vinha aqui era recebido com a bênção do frei”, lamenta um dos membros da Irmandade de Frei Galvão, Tom Maia.
Turismo religioso
Alçada ao status de estância religiosa em 2009, Guaratinguetá atrai devotos que passam pelo Conjunto Devocional e Cultural Frei Galvão, no centro,e em seguida reverenciam a casa onde o santo nasceu e viveu até os 13 anos de idade, quando foi estudar no colégio jesuíta de Belém, na Bahia. Bem perto, fica a Fonte de Frei Galvão, cuja água-benta é disputada pelos turistas.
A casa e a catedral de Santo Antônio – a matriz onde o frei foi batizado – estão entre as mais antigas construções da cidade. Datadas dos séculos XVII e XVIII, foram eleitas uma das Sete Maravilhas de Guaratinguetá, em 2008. A residência colonial, pintada de branco e azul, com paredes de taipa, portas e janelas margeando a estreita rua Frei Galvão, de paralelepípedos, abriga uma “sala das relíquias” lotada de quadros, imagens, objetos, fragmentos de osso e da batina do franciscano. No edifício tombado como patrimônio histórico, também são distribuídas “pílulas” de Frei Galvão, confeccionadas por freiras, dentro das quais há minúsculos versículos do ofício da Santa Virgem. Para os devotos, o frei operava milagres distribuindo as pílulas para curar doenças do corpo e da alma.
Nas festas em homenagem ao santo – o dia 25 de outubro foi instituído pelo papa João Paulo II como Dia de Frei Galvão – , a casa mergulha no passado para resgatar costumes antigos. As janelas são enfeitadas com bandeirolas para saudar a passagem da cavalaria da Confraria de Frei Galvão e o tropel dos tropeiros, armados de estandartes coloridos, faz sua homenagem ao santo.
Na frente, encontram-se a “sala dos milagres”, com 30 mil cartas de agradetransfericimento e votos por graças alcançadas, e o oratório de Frei Galvão construtor, com a imagem do santo segurando um tijolo, a pá de pedreiro e o desenho da igreja que ele traçou na parede de sua cela, no Mosteiro da Luz.
Marco inicial da cidade, a catedral de Santo Antônio cresceu a partir de uma capela erguida em 1630, mergulhada em histórias sobre tesouros escondidos, padres fantasmas e procissões das almas. Ali, entre altares e imagens em estilo barroco, Frei Galvão rezou sua primeira missa. Conta-se no livro Guaratinguetá Ontem & Hoje (Noovha América Editora) que há tesouros enterrados nos arredores da catedral, desde o tempo em que os tropeiros levavam ouro das Minas para o porto de Paraty. A rodovia Paulo Virgínio, na verdade, é a antiga Estrada Real Paraty-Cunha.
Entre Guaratinguetá e Aparecida, na região do Morro Vermelho, há uma antiga sede de fazenda, supostamente assombrada pela lenda de um tesouro guardado debaixo de uma grande figueira. É voz corrente que uma tropa que levava ouro sob escolta de um alferes foi assaltada e morta por escravos, sendo o dinheiro enterrado para ser resgatado mais tarde. Entretanto, ninguém conseguiu localizar a carga novamente. Segundo a lenda, os mortos continuaram vigiando o tesouro.
Outra história de assombração percorre a antiga linha férrea entre Aparecida e Guaratinguetá. Conta-se que em certas sextas-feiras, quando o bonde das 23 horas entrava na rua Visconde de Guaratinguetá, vindo de Aparecida, um estranho passageiro o apanhava e seu peso decomunal fazia com que o trem se arrastasse penosamente sobre os trilhos. Quando descia, na altura da rua do Cemitério dos Passos, a composição retomava a velocidade normal, como por encanto. Já ao passar pelo Morro Vermelho, onde os escravos haviam matado a tropa do alferes, a trepidação do bonde era tamanha que os passageiros se arrepiavam de medo.
sa esse santo a sua admiração”. a narrativa contempla a infância do frei em guaratinguetá, sua vida no seminário, a ordenação sacerdotal como franciscano, o trabalho missionário em são Paulo, a construção do Mosteiro da luz e as privações infl igidas pelas autoridades portuguesas, num tempo em que a perseguição aos jesuítas era implacável no Brasil Colônia.
Lendas à parte, outros marcos religiosos, como o Museu Frei Galvão, na praça Conselheiro Rodrigues Alves, a Igreja de Frei Galvão e a capela na Fazenda da Esperança – do outro lado da cidade, na margem esquerda do Paraíba, abençoada pelo papa Bento XVI em 2007 –, integram o patrimônio da rota da fé, zelosamente cuidado.
Em 2013 os ciúmes afl oraram, quando a popular estátua do frei foi retirada da entrada de Guaratinguetá, onde estava desde 2006, e transferida da para a entrada de Aparecida, para o papa Francisco abençoá-la, muito embora “já estivesse integrada ao patrimônio paisagístico, histórico e afetivo da cidade”, segundo a historiadora Thereza Maia, descendente do santo.
O fato revoltou parte da população, para a qual a imagem é o marco da cidade, a exemplo do Cristo Redentor no Rio de Janeiro. O imbróglio foi parar no Ministério Público e, após audiência, ficou definido que a estátua deveria ser levada para um novo santuário, onde Frei Galvão pudesse ser invocado e homenageado pelos devotos “sem oferecer risco de vida para ninguém em uma rotatória com grande movimento de carros”, nas palavras de dom Raymundo Damasceno.
Inconformada, a população lançou um abaixo-assinado com 6.200 assinaturas, solicitando a devolução da estátua, mas o Ministério Público arquivou o procedimento. De acordo com Thereza Maia, também há quem cogite a edificação de um novo santuário, a Igreja de Frei Galvão, a ser construída no bairro Jardim do Vale, localizado na margem esquerda do rio Paraíba. “As terras para esse monumento ainda estão sendo negociadas”, garante ela. “Mas, como não existe local determinado para a construção, não há obras.”
Um santo perseverante
Patrono de Guaratinguetá, onde nasceu em 1739, Santo Antônio de Sant’Ana Galvão viveu até 1822, testemunhando a perseguição religiosa do Marquês de Pombal aos jesuítas do Brasil Colônia. Em 11 de maio de 2007, foi canonizado pelo papa Bento XVI durante sua visita ao Brasil, tornando- se o primeiro santo brasileiro. Conhecido por distribuir pílulas milagrosas a doentes e necessitados, o frei ajudou a construir e fundar o Mosteiro da Luz em 1774, em São Paulo.
Além das habilidades que lhe eram atribuídas, o santo possuiria premonição e clarividência, tendo sido chamado a dar prova de sabedoria e persistência inúmeras vezes. Filho de um rico negociante português e de uma fazendeira paulista, rejeitou os bens materiais e abraçou os valores franciscanos, vivendo em simplicidade. Mais que tudo, Frei Galvão desafiou seu próprio tempo, pregando a resistência pacífica e a resignação diante da Coroa portuguesa, pela qual foi comparado ao líder hindu Mahatma Gandhi.
Seu comportamento não mudou quando, em 1775, foi obrigado a abandonar o convento onde vivia com irmãs contemplativas, em São Paulo. A ordem, emitida pelo capitão-general Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador da Capitania até 1782, obedecia às determinações do Marquês de Pombal de erradicar a atividade religiosa na Colônia. Fechar as portas do convento e abandonar as freiras era impensável. Frei Galvão desobedeceu e permitiu que sete religiosas ficassem refugiadas no mosteiro, sem água ou comida, durante quase um mês.
Um documento existente no Mosteiro da Luz atesta prodígios nessa resistência: “O primeiro [milagre] foi que, tendo estado o tempo seco por alguns dias, e faltando inteiramente a água, em um dia sereno e claro resolveram as religiosas implorar a clemência divina. Reuniram-se no coro e começaram a orar com fervor. Imediatamente cobriu-se o céu de nuvens, começou a trovejar e caiu uma pancada d’água – o quanto era necessário para encher as vasilhas de casa. E, logo que estas foram enchidas, cessou a chuva.”
“Outro [milagre]”, diz o documento, “foi que, havendo no quintal da casa um pé de morangas, o qual era continuamente despojado das folhas tenras e grelos em razão da grande fome e falta de alimentos, não obstante prosperou e estendeu-se tanto, e no tempo próprio produziu tanta abundância de frutas, que as religiosas, não podendo dar consumo a todas, deram a outras pessoas e tiveram de deixar apodrecer grande parte das morangas…”