29/03/2019 - 8:46
Nos últimos 15 anos, mais de 40 mil mulheres vítimas de violência extrema foram atendidas no Hospital Panzi, fundado pelo médico Denis Mukwege em 1999 na República Democrática do Congo (RDC). Educação, serviços de reinserção comunitária, assistência jurídica, campanhas de conscientização – o dr. Mukwege, lendário defensor dos direitos das mulheres, não limita sua ação a dar assistência médica. Ele pede também que os perpetradores da violência sexual sejam levados à justiça. Suas convicções e determinação não foram abaladas por seis atentados contra sua vida.
Cuidar de vítimas de violência sexual se tornou a batalha de sua vida. Como e por quê?
DENIS MUKWEGE – Em 1989 eu era o médico encarregado do hospital geral de Lemera, no leste da RDC. Na época, minha principal preocupação era reduzir a taxa de mortes maternas durante o parto. Quando a primeira guerra do Congo eclodiu em 1996, o hospital foi destruído, pacientes mulheres foram mortas em suas camas, a equipe médica foi assassinada. Tive que deixar Lemera e ir para Bukavu, a capital do Kivu do Sul. Foi lá que fundei o Hospital Panzi em 1999, com a ideia de me concentrar na maternidade.
Mas minha primeira paciente não veio para dar à luz. Essa mulher havia sido estuprada. Seu estuprador atirou de perto nos órgãos sexuais dela. Ela teve que fazer seis cirurgias antes de poder voltar a uma vida normal.
A princípio, pensei que fosse um incidente excepcional, um ato bárbaro cometido por alguém que havia deixado de lado seus sentidos. Mas, três meses depois, já havia prestado cuidados a 45 mulheres vítimas de violência sexual.
Nos últimos 15 anos, mais de 40 mil mulheres que sobreviveram a estupros extremamente violentos receberam cuidados no Hospital Panzi. Mas também tenho visto um aumento no número de crianças estupradas. Já em 2013, um relatório da ONU estabeleceu que, no leste da RDC, cerca de 250 crianças haviam sido estupradas no espaço de um ano. Sessenta delas não tinham mais de 3 anos de idade. Uma vez recebi uma menina com 6 meses de idade. Como eu não poderia lutar contra isso?
Segundo o sr., o estupro é uma arma de guerra. Pode explicar isso?
MUKWEGE – De fato, o estupro e a violência sexual constituem uma formidável arma de guerra. Causam o deslocamento de populações civis, provocam o declínio demográfico, destroem a economia e desintegram o tecido familiar e social. Os agressores usam essas táticas em todas as guerras, qualquer que seja sua forma.
Na RDC, os estupros em geral ocorrem em público. Às vezes, são coletivos – até 300 mulheres de uma aldeia podem ser estupradas ao mesmo tempo. Os estupradores obrigam as famílias a assistir a essas cenas excruciantes. A mulher estuprada é desonrada e seu marido é humilhado. Ele então vai se esconder em um lugar onde ninguém o conhece. Quando esses estupros ficam recorrentes, mulheres e crianças são forçadas, em face da insegurança permanente, a buscar refúgio em outro lugar. Além disso, a violência sexual, quando não mata uma mulher, pode impedi-la de ter filhos. As doenças sexualmente transmissíveis podem ser fatais para a vítima.
O declínio demográfico resultante é um objetivo principal dos atacantes, que também cometem todo tipo de barbaridade: torturam pessoas, saqueiam seus recursos, queimam aldeias e deixam as populações passarem fome. É óbvio que os estupros não são motivados por impulsos sexuais, mas constituem um meio de debilitar, se não aniquilar, uma população.
Esses estupros públicos também levam à perda de identidade da vítima. Não é raro uma paciente me dizer “eu não sou mais uma mulher”. Quanto aos homens, se suas esposas foram violentadas ou se eles mesmos foram estuprados (1% dos casos), eles sentem que não merecem mais ser pais. A situação é tão sombria, ou pior, para crianças nascidas de estupro. Elas são rejeitadas por sua própria comunidade. São chamadas de “filhos de cobras”, “genocidas” – toda uma terminologia é posta em prática para negar sua humanidade.
A perda da identidade individual significa que as pessoas não mais se reconhecem como membros de sua própria comunidade. Pontos de referência são perdidos, papéis são confundidos, a coesão social é destruída. Isso abre as portas para todos os abusos. Em outras palavras, os atacantes podem dominar esses locais como mestres absolutos.
Esses lugares são em geral áreas de mineração ricas em coltan [de onde se extrai nióbio e tântalo – N. da R.] ou ouro. É por isso que defendo uma regulação internacional para possibilitar o rastreamento da cadeia de fornecimento de minerais. Uma lei restritiva é crucial se quisermos evitar que grupos armados nas áreas de conflito da RDC sejam financiados pelo comércio de minerais.
O sr. também pede um tribunal criminal internacional para a RDC.
MUKWEGE – A jurisdição internacional é vital para acabar com a impunidade dos estupradores. Enquanto esses crimes permanecerem impunes, a violência, o terror e o estupro continuarão com seus estragos. Lembre-se daquele terrível massacre em Beni (RDC) em maio de 2015: mulheres grávidas evisceradas, bebês mutilados, homens amarrados e com gargantas cortadas. Mais de 50 vítimas inocentes, para aumentar o já terrível número do conflito que assola meu país há mais de 20 anos.
Imediatamente após o massacre, lancei um apelo à comunidade internacional exigindo proteção para as populações civis na região dos Grandes Lagos (leste da RDC). Em março de 2016, apresentei uma petição à ONU: “Não à impunidade”. Assinada por 200 organizações, ela exigia que o Conselho de Direitos Humanos da ONU publicasse a lista dos 617 suspeitos de estupros e violações dos direitos humanos na RDC entre 1993 e 2003.
Acho que as amostras de DNA devem ser coletadas sistematicamente sempre que houver um estupro. Isso permitiria às autoridades judiciais identificar os culpados – um passo gigantesco para acabar com a impunidade.
A comunidade internacional não pode ficar em silêncio diante desses crimes. Eles às vezes são cometidos por soldados de exércitos estrangeiros, que nunca foram processados. As pessoas devem perceber que um crime não pode ficar impune. Devemos quebrar o silêncio – individual, nacional e internacionalmente.
Em 2015, a RDC adotou uma lei sobre os direitos e a paridade das mulheres e elaborou um projeto para criar um fundo para reparações em benefício das vítimas de violência sexual.
MUKWEGE – Não há falta de legislação; o problema está em outro lugar. Muitas vezes as mulheres não sabem que existem leis para protegê-las. E quando sabem, precisam confrontar normas sociais que as impedem de reivindicar seus direitos. Há muito trabalho a ser feito para aumentar a conscientização.
Quando uma mulher não se atreve a relatar um estupro, por considerá-lo um assunto tabu, está protegendo o estuprador. Seu silêncio aumenta o risco de mais estupros. Mas se ela conseguir quebrar o silêncio, a vergonha mudará de lado e o estuprador saberá que seu crime não passará despercebido, que ele será julgado e condenado. A situação vai mudar completamente.
Os formuladores de políticas devem ser firmes na luta contra a impunidade por tais atos. Não iremos longe se a vontade política estiver faltando! As mulheres lutaram duramente nos últimos 100 anos para obter direitos, mas as leis e resoluções internacionais permanecerão ineficazes se a mente das pessoas não mudar. A igualdade entre homens e mulheres só é possível se for um fato óbvio em nossas mentes.
Igualmente deplorável é que, mesmo quando vencem seus processos judiciais, as mulheres estupradas não recebem reparações substanciais. As indenizações concedidas pelo tribunal ajudariam a curar essas mulheres totalmente e convenceriam as pessoas de que elas são de fato vítimas. Como podemos reconstruir uma sociedade traumatizada sem reparações por crimes?
Como o sr. está contribuindo para reconstruir essa sociedade?
MUKWEGE – O trabalho do Hospital Panzi baseia-se em quatro pilares. O primeiro é o atendimento médico – operações, hospitalização, tratamentos –, intimamente ligado ao segundo, apoio psicológico, que é igualmente importante. No terceiro pilar estão a educação e a reinserção comunitária. Quando uma mulher recuperou sua força física e mental, você não pode simplesmente mandá-la de volta para sua aldeia, sozinha e sem recursos.
Ajudamos as vítimas a voltar para a escola se elas desistiram ou para adquirir habilidades profissionais. Também oferecemos aulas de alfabetização, porque o analfabetismo está frequentemente na raiz das trágicas experiências dessas mulheres. Por fim, o quarto pilar é a assistência jurídica. Damos a elas aconselhamento legal gratuito. Seis advogados estão disponíveis para elas e pagamos as custas legais. No entanto, das 3 mil mulheres que recebemos anualmente, não mais que 300 vão para o tribunal.
Além disso, organizamos inúmeras campanhas de conscientização contra a estigmatização das vítimas de violência sexual, que, na maioria das vezes, são rejeitadas e não ajudadas pela sociedade. Fico feliz em observar que, nesse aspecto, as mentes das pessoas estão evoluindo na direção certa.