03/08/2021 - 16:32
Elas contrabandearam armas, sabotaram ferrovias alemãs e morreram em combate: em novo livro, historiadora Judy Batalion resgata histórias da resistência feminina à ditadura de Adolf Hitler na Polônia ocupada.É um dia frio de inverno, em fevereiro de 1943, no gueto judeu de Bedzin, uma cidade na Polônia ocupada pela Alemanha nazista. Em meio a casas superlotadas impõe-se um edifício especial: o coração da organização juvenil de judeus Freiheit (liberdade, em alemão) – e sede da resistência judaica contra os nazistas.
Mulheres e homens estão ali reunidos para tomar uma decisão memorável. Eles conseguiram obter documentos que lhes permitiram contrabandear algumas pessoas para fora dos territórios ocupados. Deveria então a líder do grupo, a judia polonesa Frumka Plotnicka, usar esses documentos para viajar até Haia e representar a comunidade judaica perante o Tribunal Penal Internacional (TPI)?
Todos os olhos se voltam para Plotnicka, que diz: “Não. Se temos que morrer, vamos morrer juntos. Mas vamos lutar por uma morte heroica.” Na mesma sala se encontra a jovem Renia Kukielka. Juntas, essas mulheres se tornariam o rosto da resistência judaica feminina ao regime de Adolf Hitler na Polônia ocupada.
É assim que os acontecimentos históricos daquela noite, quase oito décadas atrás, são retratados pela historiadora Judy Batalion em seu livro A luz dos dias – A história não contada das mulheres lutadoras da resistência nos guetos de Hitler (tradução livre), que deve ser lançado em breve no Brasil.
Ao longo de dez anos, Batalion recuperou e analisou inúmeros relatos de testemunhas oculares, memórias, legados e documentos de arquivo, e falou com sobreviventes do Holocausto e seus filhos e netos em todo o mundo.
Através desse trabalho meticuloso, ela conseguiu reconstruir uma história que havia sido perdida por décadas. Ou melhor, nunca tinha sido devidamente contada: como as mulheres judias resistiram à ocupação nazista na Polônia. Com tenacidade, coragem e, às vezes, violência.
Sabotagem, armas de fogo e camuflagem
Batalion, que é neta de sobreviventes do Holocausto, vive em Nova York, mas descobriu as histórias não contadas dessas mulheres na Biblioteca Britânica, em Londres. Examinando vários documentos históricos, ela se deparou com uma empoeirada edição do livro Frauen in die Ghettos (Mulheres nos guetos). A autora esperava mais uma “enfadonha” elegia sobre a força e a coragem feminina, mas o que encontrou foram “mulheres, sabotagem, armas de fogo, camuflagem, dinamite”.
Os dez anos de pesquisa produziram resultados notáveis: um grande número de mulheres judias resistiu ativamente aos nazistas na Polônia ocupada, em todos os sentidos da palavra, a partir de guetos em Bedzin a Varsóvia. Elas contrabandearam armas, sabotaram a ferrovia alemã e detonaram grandes cargas de TNT.
Frumka Plotnicka morreu em combate contra os nazistas, e Renia Kukielka e muitas outras mulheres agiram como “mensageiras”. Arriscando constantemente suas vidas, elas usaram sua aparência “não judia” para transportar pessoas, dinheiro, informações, munições e armas de fogo dentro e fora dos guetos.
Resistência cultural
Outras mulheres fugiram das cidades e se juntaram a guerrilhas nas florestas, ou a grupos de resistência estrangeira. Elas construíram redes de resgate para ajudar outros judeus a se esconder ou fugir, e se envolveram em “resistência moral, espiritual e cultural”.
Um exemplo de resistência cultural é dado por Batalion através da biografia de Henia Reinhartz, uma jovem mulher do gueto de Lodz. Junto com outras mulheres, ela resgatou pilhas de livros em iídiche da biblioteca da cidade e os contrabandeou para o gueto. “Era uma biblioteca subterrânea”, ela mesma escreveu muitos anos mais tarde.
Ler era uma forma de escapar para “outro mundo”, uma “vida normal em um mundo normal, não uma vida como a nossa, que tem tudo a ver com medo e fome”. Comovida, Batalion conta que Reinhartz leu o romance americano E o vento levou enquanto se escondia para escapar da deportação.
Livro é como joia rara
Batalion também procura usar a cultura e a literatura para revigorar a memória das lutadoras da resistência judaica. Seu livro é uma conquista: tão sério quanto envolvente. Em sua narrativa, ela recupera uma parte importante da história que, por muito tempo, foi ignorada.
A tradução alemã do livro, lançada neste mês de agosto, chega num momento de contínuos debates sobre como manter viva a memória do Holocausto, à medida que as testemunhas oculares envelhecem e morrem.
À DW, a tradutora Maria Zettner destaca o quanto é importante que essa história seja contada em particular na Alemanha: “Enquanto eu traduzia o livro e lia sobre o que os alemães fizeram a essas judias, tive um grande sentimento de vergonha. Temos a responsabilidade, como alemães, de garantir que essas memórias não sejam esquecidas, que elas sejam passadas para a próxima geração. Temos a responsabilidade de fazer tudo o que pudermos para que algo assim nunca volte a acontecer.”
Batalion destaca a importância de se evidenciar histórias que foram por tanto tempo ignoradas. “A primeira é a história da resistência judaica em geral, em particular na Polônia, de que se fala tão pouco, e a segunda é a experiência das mulheres no Holocausto, que tem sido abordada cada vez mais nos últimos anos, mas certamente não antes disso.”
Um novo capítulo do feminismo ocidental
A historiadora vê um grande interesse por histórias como essas no momento atual. “É o lugar onde estamos em nossa trajetória feminista, na história do feminismo.” Ao conversar com amigos e colegas, sua impressão é de que “estamos muito entusiasmados em aprender sobre esses legados, de onde procedemos. É profundamente emocionante para as mulheres saber o que nossas antepassadas fizeram. As mulheres estão conquistando muito neste momento”.
O fato de ela ser mulher se reflete bem na gênese do livro: “Sou historiadora, sou mulher. Minha editora é mulher, quem encomendou esse projeto, que pagou por ele, é mulher, minha agente é mulher. Sou capaz de fazer esse trabalho por causa de outras mulheres que me pagaram e me apoiaram profissionalmente para realizar este trabalho. Vinte e cinco anos atrás, talvez fosse diferente.”
O trabalho árduo de tantas mulheres valeu a pena: o livro já é um bestseller, segundo o New York Times, Steven Spielberg adquiriu os direitos do filme, e há interesse de cineastas de documentários e dramaturgos. Apesar do sucesso, Batalion se mantém humilde: “Só espero que essa história seja contada ao maior número possível de pessoas.”
O que significa para ela ter escrito o livro? Batalion faz uma pausa para responder. “Simplesmente parece algo que eu tinha que fazer”, diz, após um momento de silêncio. Fica uma clara sensação do que ela está pensando: não se trata dela mesma. “Sinto-me grata a Renia por ter deixado um relato tão detalhado que me permitiu contar a história. Eu simplesmente fiz o que senti que tinha que fazer.”