Com sua tribo dizimada, menina da etnia xokleng foi acolhida por família alemã em Blumenau. Preocupado em “civilizar” indígenas ao invés de matá-los, novo pai da garota a instruiu para se tornar uma europeia.Korikrã era uma menina de 12 ou 13 anos quando viu sua mãe ser degolada, seu irmão completamente retalhado e, conduzida pelo pai – que possivelmente também seria morto –, fugiu pela mata. Ela acabaria sendo adotada por uma família de imigrantes alemães que morava em Blumenau, Santa Catarina, e ganharia o novo nome de Maria Gensch.

Seu caso se tornou emblemático na série de conflitos entre povos indígenas que habitavam o sul do país e os colonos, sobretudo germanófilos, que chegaram à região a partir de 200 anos atrás. Isto porque diante de uma mentalidade que costumava defender – e muitas vezes praticar – o genocídio de populações nativas, os imigrantes que a adotaram tinham uma outra ideia: em vez de exterminar, educar.

O pai adotivo de Korikrã, Hugo Gensch, era um médico alemão nascido em 1861 que havia emigrado para o Brasil aos 35 anos – morreria em Blumenau, em 1922. Humanista, ele foi uma influente voz contrária às sistemáticas contratações de profissionais, chamados de “bugreiros”, para caçar e executar os indígenas da região.

Em 1905, quando soube que um grupo de crianças indígenas órfãs – depois que seus pais foram massacrados por bugreiros – estava abrigado no colégio das freiras da Divina Providência, em Blumenau, decidiu adotar uma delas. Mais do que ganhar uma família, Korikrã fez parte de um experimento social, conduzido pelo médico.

Em 1908 Gensch publicou, na Alemanha, um livro relatando o sucesso de sua empreitada. A educação de uma criança índia acaba de ser disponibilizado em português – a edição bilíngue, em português e alemão, foi lançada este ano. No fim do mês, essa história foi tema de uma palestra do Seminário Internacional Brasil-Alemanha, promovido no Rio de Janeiro pela Fundação Oswaldo Cruz, proferida pelos historiadores alemães Stefan Rinke e Karina Kriegesmann, ambos da Universidade Livre de Berlim.

Conflitos e uma visão diferenciada

Embora com a ótica contemporânea esse experimento social possa ser interpretado com estranheza e crítica, é preciso destacar que o pensamento de Gensch destoava do vigente naquele início do século 20. “Seu projeto diferia claramente das visões de outros, que viam a violência e o extermínio dos indígenas como solução”, pontua Kriegesmann.

A historiadora ressalta que o alemão também estava preocupado em “civilizar” os indígenas, considerando-os “selvagens”. “Mas por vias diferentes daquelas que tinham sido predominantemente utilizadas até então.”

“Naquele momento, grande parte da sociedade brasileira parecia ter aceitado a violência contra os indígenas como algo inevitável para se alcançar o progresso”, contextualiza Rinke.

Quando a família de Gensch chegou ao Brasil, o conflito de imigrantes alemães com indígenas estava consolidado no sul do país. O historiador explica que ali os principais povos eram os xokleng, também chamados de botocudos, e os kainkang, conhecido como coroados. Os nativos resistiam à expansão das fronteiras da colonização. “A agressividade se tornou crescente devido ao contato com os colonos, que invadiram seus ambientes de vida”, ressalta.

De acordo com Rinke, havia naquela época cerca de 1,5 mil xokleng e 10 mil kaingang. Os alemães e seus descendentes já beiravam os 400 mil nos primeiros anos do século 20. “Essa coexistência nunca foi harmônica”, diz ele, enfatizando que a situação era especialmente tensa no Vale do Itajaí. “Foram numerosos enfrentamentos, num claro fracasso de intercâmbio e respeito mútuo.”

Os colonos costumavam contratar os chamados “bugreiros” – bugre é um termo pejorativo que era utilizado para se referir aos indígenas – com o objetivo de dizimar os nativos que estivessem atravancando o que viam como “caminho do progresso”. Esses mercenários costumavam agir em grupos de oito a 15 pessoas.

“Desenvolveu-se no sul do Brasil uma situação típica do imperialismo colonizador, que pode ser considerada genocídio”, argumenta o historiador.

Na imprensa regional de língua alemã, havia debates sobre como resolver a questão indígena. E Gensch costumava defender seus pontos de vista mais humanistas. Segundo Rinke, tais debates “comoveram não somente indígenas e colonos do sul do Brasil, mas também políticos e pessoas interessadas, especialmente dos círculos científicos”. A questão era: como tratar adequadamente os povos nativos.

Era a “cultura” dos colonos versus a “selvageria” dos indígenas – para usar a definição vigente na época. O historiador lembra que havia teóricos que diziam “que não havia alternativa ao extermínio”. Gensch acreditava no contrário.

Educação

Conforme conta o livro do médico, a menina Kokikrã perdeu a família de forma trágica em uma dessas caçadas. Assim como outras crianças, ela foi enviada aos cuidados de religiosas católicas. Sabe-se que pelo menos oito crianças indígenas estiveram abrigadas pelas freiras da Divina Providência de Blumenau em 1905.

Não foi fácil para os Gensch adotarem a menina Kokikrã. De acordo com a historiadora Silvia Fávero Arend, professora na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e autora de artigo acadêmico sobre o caso, os fatos de o médico ser cidadão estrangeiro e não professar nenhuma religião complicaram os trâmites. Tanto que, oficialmente, um amigo brasileiro da família se tornou o tutor da menina.

Gensch acreditava que se seu método de “educação” desse certo, ele conseguiria provar que as perseguições aos indígenas não eram necessárias. Imbuído dessa meta, ele passou a implementar seu projeto na sua filha adotiva.

Segundo Kriegesmann, o processo durou 16 meses. Arend conta que no início houve resistência da menina, que gritava e chorava muito. Depois, ela entrou em um estágio de melancolia, ficando em profundo silêncio.

Ela voltou a interagir com a família adotiva depois de uma noite em que dramatizou, depois do jantar, o ataque que havia matado sua família. Foi quando Gensch, enfim, conseguiu começar o processo que tinha em mente.

Consistia no seguinte método: ele fazia com que a menina observasse práticas que eram inerentes à sua cultura. E depois, quando ela era instada a repeti-los, aprovava ou reprovava a ação conforme o desempenho. Sua pedagogia surtia efeito mas, ao mesmo tempo, desqualificava a cultura xokleng e valorizava a cultura alemã.

Em seu livro, ele destaca que também se surpreendia com a menina. Considerava-a inteligente e elogiava seus hábitos de “asseio corporal”. Aos poucos, a menina aprendeu a usar talheres, a falar alemão e a querer se vestir como os europeus.

Segundo o livro do médico, a menina passou a gostar da nova vida. “Mais tarde, quando ela já falava alemão, ela costumava dizer à minha esposa: ‘mamãe, não pensem que eu vim de bom grado para cá, não! Mas vocês são tão bondosos comigo'”, escreveu. A garota teria acrescentado que tinha visões de sua mãe “com o pescoço cortado” e de seu irmãozinho “todo cortado em pedaços”. E completado que não tinha “mais nada além de vocês”.

“A garota reconheceu rapidamente as vantagens da vida aculturada em relação à vida inculta e nômade”, argumentou Gensch.

Pouco se sabe sobre a vida adulta de Kokikrã. A versão mais aceita é a de que ela tenha morrido de tuberculose em 1936, com cerca de 43 anos. Ela teria permanecido solteira e ainda vivendo no círculo familiar que a adotara. Com seus pais adotivos sabe-se que ela esteve por duas vezes na Alemanha. Na vida adulta, ela chegou a visitar seus parentes indígenas remanescentes.

Pensamento da época

Tanto o método quanto a obra de Gensch precisam ser analisados com cuidado, para evitar anacronismos. “[Ele] é para ser entendido no contexto do debate dos prós e contra o extermínio da população indígena”, salienta Kriegesmann. “O médico foi um dos cidadãos mais respeitados de Blumenau e estava convencido de que teria sucesso, mesmo se fosse ridicularizado por seus planos.”

“Diferentes ideários estavam em disputa em relação às populações consideradas não civilizadas”, comenta a professora Arend. “A filiação adotiva estava sendo utilizada em diferentes partes do globo no intuito de civilizar os considerados não civilizados.”

A historiadora lembra que no caso brasileiro até então “a regra era o etnocídio”. Em geral, ao contrário do caso de Gensch, as adoções que aconteciam eram motivadas pelo plano de ter uma mão de obra dentro de casa – a criança adotada se tornava uma espécie de serviçal.

Ela reconhece que faltam informações sobre o que ocorreu com outros indígenas adotados, mas que o caso Kokikrã “foi uma exceção”.

No livro, o médico comentou que o que fez era uma “pesquisa laboratorial” e observou que os resultados “poderão ser interessantes para outros meios científicos”. Argumentou que faltavam estudos sobre os indígenas brasileiros, dizendo que se encontrava “em meio a uma selva científica”.

Ele ainda lamentou “a perda dos tesouros intelectuais adormecidos dentro desse seres” e “a perda sofrida pela ciência e pela cultura em decorrência desses extermínios”.

Kriegesmann diz que o médico “estava orgulhoso de sua pesquisa” e que via “como sucesso” a educação da menina “seguindo os princípios básicos do evolucionismo”.

“Ele mencionou que era dever humano […] acabar com os ataques aos povos indígenas e que era necessário conviver com eles em vez de matá-los”, observa a historiadora.

Não há como mensurar o impacto dos estudos e da publicação de Hugo Gensch para a sociedade brasileira daquela época, mas especialistas reconhecem alguns de seus princípios no modus operandi do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, órgão criado pelo governo federal em 1910.

“Deem a essas pessoas o direito a um lar dentro de suas próprias terras, reservas, deixem-nas viver ali e, gradualmente, entrarem em contato com a civilização”, escreveu Gensch.

O médico ainda pontuou que via “o resultado extraordinário que alcancei diante da crítica pública da educação prática de uma índia, que me foi entregue” e que ficava “cheio de grande satisfação também devido ao fato de que através de minha argumentação o assassinato de indígenas finalmente teve um fim aqui em Blumenau”.