Morto há exatos 100 anos, escritor teve a obra traduzida tardiamente para o Brasil, mas caiu no gosto de autores como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.Em certo momento do século 20, a influência de Franz Kafka (1883-1924) sobre a literatura produzida no Brasil era tão grande que o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) declarou, em tom de ironia, que o tcheco seria um “imitador de certos escritores brasileiros”.

Graciliano Ramos (1892-1953) também brincava com isso. Dizia que estava se produzindo uma espécie de “literatura espírita” no país, com autores incorporando o estilo kafkiano.

Especialistas em literatura concordam que o impacto do autor de A metamorfose e O processo na produção nacional foi tamanho que toda uma geração assumiu o seu jeito desesperançoso e absurdo de escrever e a maneira de colocar a burocracia como um instrumento opressor.

Entre os autores brasileiros que mais incorporaram o estilo kafkiano costumam ser mencionados Clarice Lispector (1920-1977), Murilo Rubião (1916-1991), José J. Veiga (1915-1999), Lygia Fagundes Telles (1918-2022) e Moacyr Scliar (1937-2011). Mas é inegável que também os citados Drummond de Andrade e Ramos, além do poeta Haroldo de Campos (1929-2003), tiveram muito contato com a obra de Kafka.

Tardiamente e em tradução anônima

Mas a obra kafkiana chegou tardiamente ao Brasil. De acordo com levantamento realizado pela pesquisadora, historiadora e tradutora Denise Bottmann, publicado na revista TradTerm em 2014, somente em 1946 foi publicada “aquela que parece ser a primeira tradução de Kafka entre nós”.

Trata-se do conto Um artista do trapézio, que saiu na Revista da Semana, em tradução anônima. Nascido em Praga, hoje capital da República Tcheca, quando a cidade era parte do Império Austro-Húngaro, o autor escrevia originalmente em alemão, embora também fosse fluente em tcheco.

No ano seguinte, o mesmo conto foi publicado pelo jornal Diário de Notícias, em nova tradução, desta vez assinada por Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989).

Mas, segundo Bottmann, “a primeira grande alavancada na difusão das obras de Kafka no Brasil” só ocorreria nos anos 1960, quando a Livraria Exposição do Livro passou a publicar suas obras no país, inclusive textos fundamentais como A metamorfose e Um artista da fome. De 1964 a 1979, praticamente toda a obra de Kafka foi traduzida e lançada no Brasil.

Traduções do alemão

Mas nessa época ainda eram comuns traduções de traduções, ou seja, nem todos os faziam diretamente do alemão. O professor Emerson Calil Rossetti, criador do canal no YouTube Elite da Língua, avalia que as versões brasileiras de Kafka só ficaram boas a partir dos anos 1980, quando a obra do tcheco “ganhou novo vigor entre nós, sobretudo em virtude do reconhecido trabalho de traduções e apreciações críticas de Modesto Carone [(1937-1919)]”.

Em obituário publicado pela Folha de S. Paulo, o jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto afirmou que Carone “mudou o jeito como lemos Kafka”.

Evidentemente que alguns tinham acesso aos livros do tcheco por meio de outros idiomas. “A obra […] chegou ao brasil de modo tardio por não estar acessível em português aos leitores brasileiros. Apesar dessa barreira linguística, na década de 1930 muitos escritores tiveram acesso aos livros O processo e A metamorfose por meio de traduções para o inglês, o francês e o espanhol”, comenta o pesquisador Vicente de Paula da Silva Martins, da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA).

Um exemplo desse fenômeno é o fato de que O processo — que somente em 1948 teve a parte inicial traduzida para o português influenciou, aponta Martins, Graciliano Ramos em seu romance Angústia, de 1936. “O que nos leva a especular que o escritor alagoano o tenha lido em francês ou inglês, duas línguas que aprendeu de forma autodidata”, afirma.

Influenciados

Para o filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a influência kafkiana nas obras brasileiras está em como o escritor trabalhava “a questão do estranhamento diante do mundo moderno, extremamente racionalizado mas que, de tanta racionalidade, acaba perdendo seu significado”.

“Essa racionalização que se dá através da burocratização da vida acaba perdendo o próprio sentido. E esses métodos de organização da vida são métodos de controle social, de repressão da criatividade”, analisa.

“Entendo que a literatura brasileira, embora não indiferente às temáticas do autor de A metamorfose, orientou-se maios por uma tendência realista e social, vez por outra acresdida de questões propriamente mais reflexivas ou existenciais. Desse modo, ecos de Kafka podem ser identificados de forma mais ostensiva certamente em Murilo Rubião e, mais discretamente, em alguns poemas de Drummond”, diz Rossetti.

Um exemplo é o poema Áporo, uma preciosidade em que o poeta descreve um inseto que “cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape”.

Autor dos livros As escolhas léxico-estilísticas (culturemas) na obra de Lygia Fagundes Telles e As escolhas estilísticas de J.J. Veiga, o professor Martins argumenta que ambos os escritores são exemplos de quem foi “profundamente influenciado pela obra de Kafka”. “Fiz levantamento minucioso do léxico de suas obras e posso atestar a influência kafkiana por meio fraseologias e expressões fixas das mais diversas”, pontua.

Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o escritor e professor Miguel Sanches Neto ressalta que a ditadura brasileira fez de Kafka uma espécie de “tradutor da realidade absurda instaurada pelos militares”. “Naquele período [entre os anos 1960 e 1970], ele entrou na veia da literatura brasileira”, contextualiza. “Todos os escritores do período que trabalharam com o elemento fantástico ou com a alegoria beberam em Kafka”.

Essa influência kafkiana segue presente até a contemporaneidade. O próprio Sanches Neto é um exemplo. Kafka está presente no cartaz e na pequena escultura que adornam seu escritório. E inspira alguns de seus textos, como o conto Ao lado de Kafka, ainda inédito em livro — texto ficcional sobre a morte do tcheco, com elementos tirados de depoimentos reais.

Autor de 27 livros, o professor de literatura e escritor Gildemar Pontes também se considera um seguidor do estilo de Kafka. “Falar sobre ele é quase uma catarse. É uma figura que tem influência direta sobre meu olhar a vida e meu prazer estético”, comenta ele, que diz que tenta “kafkiar” sua literatura.