Disputa judicial teve início há cinco anos, quando o ex-presidente, hoje acusado de tentativa de golpe de Estado, passou a alegar fraude no sistema eleitoral. STF inicia o julgamento nesta terça-feira.Em abril de 2020, manifestantes tomaram as ruas de Brasília com clamores explícitos de intervenção militar. Defendiam o fechamento do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e a reedição do AI-5, o ato institucional mais duro da ditadura militar. O grupo carregava bandeiras do Brasil e entoava músicas a favor do então presidente Jair Bolsonaro.

Naquele momento, porém, não houve invasão a prédios públicos. A disputa girava em torno das medidas de isolamento social impostas pela pandemia da covid-19. Durante o ato, fogos de artifício foram disparados contra a sede do STF. O episódio levou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a solicitar a abertura de um inquérito para apurar se os atos seriam antidemocráticos, ou seja, incompatíveis com a Constituição.

O STF acatou o pedido. Na Corte, já corria um inquérito desde o ano anterior para investigar a disseminação de fake news e ameaças a magistrados do Supremo, que proliferavam nas redes sociais.

Estava inaugurada uma disputa judicial que ganhou tração com posteriores ataques bolsonaristas ao processo eleitoral, a disseminação de acampamentos na porta de quarteis com pedidos de golpe de Estado e, por fim, a divulgação da existência de uma trama golpista mais ampla, fomentada para manter Bolsonaro no poder.

Para a Polícia Federal, o Ministério Público e a PGR, essa trama coloca Bolsonaro no banco dos réus, como conhecedor e incentivador de uma tentativa de abolição violenta do Estado de direito que teria envolvido militares e integrantes do governo na articulação de uma tentativa de assassinato de autoridades. As ações do grupo inflamaram uma turba de apoiadores que depredou a Praça dos Três Poderes.

Nesta terça-feira (02/09), caberá à Primeira Turma do Supremo decidir se acata a tese do Ministério Público e condena, ou não, Bolsonaro e outros sete réus por cinco crimes imputados.

Relembre a cronologia da trama golpista, parte dela elencada na denúncia apresentada pelo MP, que levou ao primeiro julgamento de um ex-presidente brasileiro por tentativa de golpe de Estado.

Março de 2019: inquérito das fake news

O ministro do STF Dias Toffoli abre inquérito para apurar a divulgação de notícias falsas, ofensas e ameaças contra integrantes da Corte e seus familiares. . A decisão foi considerada controversa por ser incomum no direito brasileiro um juiz tomar a iniciativa de instaurar este procedimento sem que ele seja acionado pelo MP. Alexandre de Moraes é designado relator.

Abril de 2020: inquérito dos atos antidemocráticos

Bolsonaristas insatisfeitos com as medidas de isolamento social impostas por governadores e prefeitos, respaldadas pelo STF, foram às ruas em diversas cidades do país, sob pedidos de intervenção militar. Bolsonaro discursou em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília. Moraes acatou pedido da PGR para apurar os financiadores dos atos. Dois meses depois, a Polícia Federal realizou operação contra políticos e blogueiros bolsonaristas.

Julho 2021: Moraes abre inquérito das milícias digitais; Bolsonaro faz live contra urnas

Moraes encerrou a investigação sobre os atos antidemocráticos e abriu o inquérito das milícias digitais, destinado a apurar núcleos de produção, divulgação, financiamento e uso político da desinformação para atentar contra a democracia. Prorrogado diversas vezes, o dispositivo foi apelidado por críticos de “inquérito do fim do mundo” e acabou abrangendo casos como a investigação da venda de joias presenteadas ao ex-presidente. A apuração resultou na delação premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que o incriminou na trama golpista.

No mesmo mês, o ex-presidente realizou uma live de mais de duas horas em que exibiu uma série de cálculos equivocados e vídeos antigos como suposta evidência de fraude eleitoral. Dobrando a aposta no ataque às urnas eletrônicas que vinha fazendo há um ano, ecoou afirmações falsas de que seria possível hackear o código-fonte do equipamento e voltou a defender que a eleição de 2018, na qual foi eleito, foi fraudada. “Não se tratou de um desabafo eventual, mas da execução de estratégia”, afirma a PGR.

Agosto de 2021: Bolsonaro dá “último recado” ao STF

A apoiadores, Bolsonaro atacou o então presidente do STF, Luís Roberto Barroso, por se posicionar contra a PEC do voto impresso. “Se o ministro Barroso continuar sendo insensível, […] se o povo assim o desejar, porque devo lealdade ao povo brasileiro, uma concentração na Paulista para darmos um último recado para aqueles que ousam açoitar a democracia. Repito, o último recado para que eles entendam o que está acontecendo”, afirmou. Naquele mesmo mês, o ex-presidente foi incluso como investigado no inquérito das fake news.

Setembro de 2021: “Moraes se enquadra ou pede pra sair”

Após mirar Barroso, Bolsonaro subiu o tom contra o STF. “Ou esse ministro se enquadra, ou pede para sair. […] Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir, tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos”, afirmou a apoiadores que participavam de atos do 7 de setembro. “Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá. […] Ele, para nós, não existe mais”, continuou.

Após forte reação institucional, o ex-presidente posteriormente contemporizou seu discurso e disse que foi afetado “pelo calor do momento”.

Julho de 2022: reunião com clamores contra urnas

Bolsonaro, ainda presidente, se reuniu com seu gabinete de ministros em uma reunião a portas fechadas. Na ocasião, disse que era necessário agir antes das eleições para evitar um cenário caótico no país. O vídeo do encontro foi divulgado dois anos depois pelo STF.

“Nós sabemos que se a gente reagir depois das eleições, vai ter um caos no Brasil. Vai virar uma grande guerrilha, uma fogueira”, afirmou.

“Ao longo da reunião, o então presidente pressionou seus auxiliares a reforçarem, em manifestações públicas, a retórica de desconfiança em relação ao sistema eletrônico de votação e a lisura do processo conduzido pela Justiça Eleitoral”, afirma a PGR. “Os subordinados ficaram encarregados de produzir provas de que a garantia de lisura das eleições era impossível de ser atingida.”

Dez dias depois, Bolsonaro convocou embaixadores ao Palácio do Alvorada. Na ocasião, fez novos ataques a ministros do Supremo, criticou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), exaltou as Forças Armadas e repetiu teorias de que hackers teriam sido capazes de alterar o código-fonte das urnas, com base em uma investigação que, segundo a Corte eleitoral, revelou não haver “qualquer risco à integridade das eleições de 2018”.

Outubro de 2022: uso eleitoral da PRF

Durante o segundo turno das eleições, o então diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e apoiador de Bolsonaro, Silvinei Vasques, comandou operações de fiscalização do transporte público, estabelecendo blitzes nas vias e atrasando o transporte de eleitores em redutos eleitorais do PT. Posteriormente ele foi preso e é investigado por tentar interferir no resultado das urnas.

Novembro e dezembro de 2022: acampamentos nas portas dos quarteis

Milhares de apoiadores de Bolsonaro começam a se posicionar na porta de quarteis em diversas cidades brasileiras. Aos gritos de “intervenção armada”, os manifestantes rejeitavam o resultado da eleição presidencial, que deu vitória a Luiz Inácio Lula da Silva. Caminhoneiros também passaram a bloquear rodovias federais por todo o país.

Mais tarde, a investigação da PF revelou que o mês foi decisivo para os desdobramentos da operação batizada de Punhal Verde e Amarelo, quando núcleos foram formados para desacreditar a eleição, entre eles, o dos “kids pretos”. Em ação coordenada, o grupo fomentou a “resistência” na frente de quarteis, planejou o assassinato de autoridades como Lula e Moraes e rascunhou a minuta de um decreto golpista. A PGR acusa Bolsonaro de estar ciente e de ter endossado tais documentos, inclusive fazendo correções, o que ele nega.

Em dezembro, o plano de assassinar Moraes foi abortado, e Bolsonaro deixou o país com destino aos Estados Unidos.

Janeiro de 2023: Ataque à Praça dos Três Poderes

Em 8 de janeiro, cerca de 4 mil golpistas que estavam acampados em frente ao quartel-general do Exército migraram rumo à Praça dos Três Poderes, em Brasília. A turba avançou sobre as dependências do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto e provocaram uma destruição generalizada. O STF responsabilizou quase 900 pessoas pelos atos, 225 com ações classificadas como graves.

Junho de 2023: Bolsonaro é declarado inelegível

O inquérito que apurou tentativa de golpe de Estado por parte de manifestantes e autoridades foi instaurado. A Corte passou a investigar o papel que autoridades tiveram ao inflamar seus apoiadores a rejeitarem o resultado eleitoral. Em Brasília, o Tribunal Superior Eleitoral determinou a inelegibilidade de Jair Bolsonaro por abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação ao reunir embaixadores para atacar o processo eleitoral com mentiras sobre as urnas eletrônicas.

Fevereiro de 2024: STF apreende passaporte de Bolsonaro

A Polícia Federal deflagra a Operação Tempus Veritatis como parte de uma investigação sobre uma suposta organização criminosa que teria atuado no planejamento de uma tentativa de golpe de Estado. Bolsonaro foi um dos alvos, tendo sido proibido de deixar o país e de entrar em contato com outros alvos da mesma operação. Moraes também determinou a apreensão do passaporte do ex-presidente. Achados em operações anteriores e a delação de Cid fomentaram a operação.

Março de 2024: Bolsonaro se torna réu

A Primeira Turma do STF tornou Bolsonaro e outros sete aliados réus pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de direito e golpe de Estado.

A denúncia, apresentada no mês anterior pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, também os acusa de integrar uma organização criminosa armada, dano qualificado pelo emprego de violência e grave ameaça contra o patrimônio público, e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas podem passar de 40 anos de cadeia.

Julho e agosto de 2025: imposição de medidas cautelares

STF determina medidas cautelares contra Bolsonaro, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica. As ordens foram motivadas pela possibilidade de o ex-presidente fugir do país e pedir asilo ao governo dos Estados Unidos. O STF passou a considerar Bolsonaro suspeito de obstrução da Justiça, por tentar dificultar seu julgamento por meio da pressão imposta pela Casa Branca. O réu também ficou proibido de utilizar as redes sociais.

Dias depois, Moraes entendeu que Bolsonaro violou a proibição de utilizar redes sociais ao ter mensagens divulgadas nos perfis de aliados durante ato de apoiadores e determinou sua prisão domiciliar.

Setembro de 2025: começa o julgamento

O julgamento dos acusados de integrarem o núcleo central da trama para dar um golpe de Estado após as eleições de 2022 se inicia nesta terça-feira, com previsão de durar ao menos cinco dias. Ministros podem pedir vistas e atrasar a decisão final em até 90 dias.

gq/cn (OTS, DW)