29/12/2025 - 18:12
Companhia aérea alemã é uma das muitas marcas de renome que colaboraram com o regime de Adolf Hitler. Enquanto a empresa celebra seu centenário, sua ligação com o nazismo no passado continua sendo ignorada.A companhia aérea Lufthansa, uma empresa símbolo da Alemanha, se orgulha de sua herança aeronáutica que se estende por quase um século. Imagens das décadas de 1920 e 1930 – incluindo as aeronaves Junkers Ju 52 usadas pela Luftwaffe, a Força Aérea alemã – são destaque no marketing da empresa, aludindo ao “espírito pioneiro” da marca e ao seu lugar na história da aviação.
Mas a história do papel da Lufthansa na máquina de guerra do Terceiro Reich, que inclui o uso em larga escala de trabalhos forçados realizados por prisioneiros, permanece amplamente desconhecida. Na verdade, a Lufthansa é apenas uma das muitas empresas que colaboraram com o regime nazista.
Marcas de renome e dinastias empresariais continuam a “se esconder à vista de todos”, afirma o jornalista David de Jong, autor do livro de 2022 Bilionários nazistas: a tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha.
A obra descreve como a maioria dos líderes empresariais que cooperaram com o regime de Adolf Hitler nunca foram realmente responsabilizados, ao contrário dos políticos e líderes militares nazistas julgados em Nurembergue após a Segunda Guerra Mundial.
O livro inclui as histórias de Günther Quandt e seu filho Herbert, patriarcas da dinastia que hoje controla a BMW, e do industrial Friedrich Flick, que foi condenado em Nuremberg por usar trabalho forçado e escravo. Após sua libertação antecipada da prisão em 1950, Flick tornou-se o maior acionista da Daimler-Benz.
“Não havia incentivo por parte das autoridades da Alemanha Ocidental para julgar seus compatriotas por crimes que eles mesmos haviam cometido ou pelos quais eram responsáveis, ou por simpatias que eles tinham ou ainda têm”, disse De Jong à DW. “A desnazificação é um mito em todos os níveis da sociedade alemã.”
Reintegração de nazistas na sociedade
Após a derrota da Alemanha, o foco rapidamente se voltou para a emergente Guerra Fria, para o combate ao comunismo e à União Soviética. A Alemanha Ocidental era vista como um baluarte capitalista e os empresários alemães tinham permissão para manter seus bens, fossem eles legitimamente seus ou tivessem sido confiscados de empresas judaicas.
Isso não se limitava à indústria alemã, disse o historiador Peter Hayes. Ele lembra como o primeiro chanceler da Alemanha Ocidental no pós-guerra, Konrad Adenauer, exigiu o fim dos processos de desnazificação, sob o argumento de que o país precisava de funcionários públicos e profissionais experientes. Seu governo promulgou leis de anistia no início da década de 1950, reintegrando centenas de milhares de ex-nazistas à sociedade alemã, incluindo no funcionalismo público e no Judiciário.
“Eles se safavam porque isso era útil para os Aliados e para os próprios alemães”, disse Hayes à DW. “Havia uma amnésia deliberada que os alemães ocidentais achavam conveniente. Isso se encaixava em uma maneira de compartimentalizar o nazismo, ou seja, ‘todas as coisas ruins foram feitas por essa minoria de fanáticos, o resto de nós foi enganado, fomos ludibriados, e os verdadeiros criminosos eram as pessoas da SS e da liderança do partido’.”
Em seu livro de 2025, Profits and Persecution: German Big Business in the Economy and the Holocaust (“Lucros e perseguição: as grandes empresas alemãs na economia e no Holocausto”, em tradução livre) Hayes examina como grandes empresas foram cúmplices de algumas das piores atrocidades do período, desde o fornecimento do gás Zyklon B [usado para matar prisioneiros em câmaras de gás] pela IG Farben, cujas empresas sucessoras hoje incluem a Basf e a Bayer, até o processamento de obturações dentárias de ouro arrancadas das bocas das vítimas nos campos de concentração nazistas.
“Eles não apenas sabiam do que estavam participando, como também tentavam lucrar com isso”, disse Hayes.
Lufthansa: fachada para o rearmamento nazista
A Deutsche Luft Hansa – renomeada como Lufthansa a partir de 1933 – foi fundada em 1926, quando apenas uma pequena elite podia se dar ao luxo de voar. No início da década de 1930, a empresa lutava para sobreviver. Os nazistas “salvaram a Lufthansa”, segundo o historiador alemão Lutz Budrass, especialista em história da aviação alemã.
Em 1933, o líder nazista Hermann Göring nomeou o diretor da Lufthansa, Erhard Milch, para o cargo de secretário de Estado do que viria a ser o Ministério da Aviação do Reich.
Pelo Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, a Alemanha estava proibida de ter uma Força Aérea. Budrass, no entanto, afirmou que, com apenas algumas poucas restrições à aviação civil, a Lufthansa se tornou uma fachada para o rearmamemto nacional-socialista.
Após 1941, a Lufthansa teve um papel proeminente nas oficinas de reparo de aeronaves atrás das linhas de frente e, diferentemente de outras empresas, conseguiu contratar diretamente mão de obra de prisioneiros que realizavam trabalhos forçados, incluindo muitas crianças sequestradas de territórios ocupados pelos nazistas em toda a Europa.
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, os Aliados declararam a Lufthansa como parte da Força Aérea alemã e liquidaram a empresa em 1951. A Deutsche Lufthansa, hoje a quarta maior companhia aérea do mundo em receita, foi fundada como Aktiengesellschaft für Luftverkehrsbedarf (“Sociedade Anônima para a demanda de transporte aéreo”), ou Luftag, em 1953, adquirindo os direitos sobre o nome Lufthansa e o famoso logotipo com o pássaro grou em 1954.
Mas não se tratava apenas do mesmo nome e logotipo. Seu conselho administrativo era formado pelos mesmos membros do passado não muito distante, incluindo Kurt Weigelt, que liderou o departamento econômico do Escritório de Política Colonial do Partido Nacional-Socialista.
Após a guerra, ele foi incluído em uma lista de criminosos de guerra procurados e acabou sendo condenado a dois anos de prisão e uma multa. Mas, em 1953, ele era o presidente do conselho de supervisão da Lufthansa e, na aposentadoria, se tornou o único membro honorário do conselho.
“Lufthansa sempre tentou lucrar com sua história”
No final da década de 1990, a Lufthansa contratou Budrass para pesquisar o uso de trabalhos forçados durante o período nazista. O estudo foi concluído em 2001, mas a Lufthansa só o publicou em 2016, e mesmo assim apenas como um suplemento ao final de uma história ilustrada da empresa. Em resposta, Budrass publicou seu próprio livro de 700 páginas contra a vontade da Lufthansa Adler und Kranich: Die Lufthansa und ihre Geschichte 1926-1955 (“A Águia e o grou: a história da Lufthansa 1926-1955”).
Em nota à DW, a empresa afirmou que não é a sucessora legal da empresa fundada em 1926, e que “a base legal da Lufthansa de hoje foi estabelecida em 1953”.
A companhia aérea reconheceu que a era nacional-socialista faz parte de sua história e afirmou que “usará seu centenário como uma oportunidade para reexaminar criticamente sua responsabilidade durante a era nazista e para investigá-la mais a fundo com base em pesquisas históricas”.
“A Lufthansa sempre tentou lucrar com sua longa história, mas quando confrontada com o fato de que o nacional-socialismo faz parte dessa história, sempre diz: ‘não, isso não tem nada a ver conosco'”, disse Budrass à DW. “Para mim, esse sempre foi o problema da Lufthansa.”
Justiça tardia para vítimas de trabalhos forçados
A questão das operações da Lufthansa durante o Terceiro Reich ressurgiu na década de 1990, quando uma série de ações coletivas nos Estados Unidos, movidas por ex-trabalhadores forçados contra empresas alemãs, trouxe o assunto à atenção do público.
O governo alemão e os gigantes da indústria – incluindo Lufthansa, Kühne + Nagel e Volkswagen – finalmente cederam à pressão internacional e criaram em 2000 a chamada Fundação para a Memória, Responsabilidade e Futuro (EVZ) para fornecer indenizações.
Mas, como a maioria dos mais de 20 milhões de ex-trabalhadores forçados no Reich alemão e nos territórios ocupados já havia falecido, apenas 1,7 milhão recebeu apoio financeiro da EVZ.
Atualmente, se tornou uma prática quase padrão das grandes empresas alemãs a contratação de historiadores para pesquisar suas relações comerciais durante o Terceiro Reich. Já adotaram essa prática empresas como Allianz, BMW, Dr. Oetker, Deutsche Bank e Volkswagen.
No entanto, segundo De Jong, esses estudos geralmente ficam fadados a acumular poeira nos arquivos das empresas e, em alguns casos, nunca são divulgados ao público. “Como consumidor, você pode dizer que tudo está resolvido, está aqui na estante. Mas os detalhes nunca são realmente mostrados ao público”, disse.
Segundo De Jong, o homem mais rico da Alemanha, Klaus-Michael Kühne, é o “principal exemplo da recusa em lidar” com o passado sombrio. Com um patrimônio estimado em 38,7 bilhões de euros (R$ 254 bilhões), Kühne é herdeiro do império global de transporte e logística Kühne + Nagel e o maior acionista individual da Lufthansa.
A Kühne + Nagel foi cofundada por seu avô, August Kühne, em 1890 e foi administrada pela família e por um sócio judeu, Adolf Maass, até 1933. Foi quando os filhos de August, ambos membros do partido nazista, assumiram o controle.
“Capítulo encerrado”, diz herdeiro da Kühne + Nagel
Pesquisadores do Holocausto apontam que a Kühne + Nagel tinha um monopólio virtual no transporte de bens judaicos saqueados, principalmente móveis e obras de arte, com os quais lucrou significativamente durante o Holocausto. Maass foi assassinado em Auschwitz em 1944.
Klaus-Michael Kühne não gosta de discutir esses assuntos. “Para mim, esse capítulo está encerrado e não vou reabri-lo”, disse o bilionário à revista alemã Der Spiegel em março de 2025. A controvérsia reacendeu depois que foi revelado que ele era o financiador de uma nova casa de ópera em Hamburgo, o que gerou acusações de “encobrimento” do passado sombrio da empresa.
“Os empresários sobre os quais escrevi lutaram com unhas e dentes para manter os bens e as empresas que haviam roubado e, com frequência, saíram vitoriosos”, disse De Jong. “Acho que o mínimo que se pode pedir neste momento não é restituição monetária, mas sim, assumir a responsabilidade moral pela história.”