28/11/2025 - 18:44
Abrigos no país tentam reabilitar milhares de bichos capturados ilegalmente. Tráfico impacta também reintrodução de espécies em extinção, como a ararinha-azul, agora dispersa pelo mundo.Loura é uma senhora cuja idade seus cuidadores não sabem precisar. Desde 2021, ela vive sozinha em quarentena por causa do seu comportamento. É extremamente agitada e tem feridas numa área abaixo do peito que automutila por dor ou estresse. Tolera mulheres, mas fica agressiva se um homem tenta tocá-la. E canta quase o tempo todo.
“Eles não podem nos contar o que passaram. Mas às vezes podemos ter noção de como foram as suas vidas até aqui”, diz a veterinária Alice Soares, diante da voadeira onde mora o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS) do Parque Anhanguera, em São Paulo. “É uma ave toda traumatizada.”
Ao invés de vocalizar os sons típicos da sua espécie, que não têm ritmo nem imitam sílabas humanas, a papagaia foi treinada para imitar, incessantemente, o hino do São Paulo Futebol Clube. Este é um clássico sintoma de que foi retirada da natureza e caiu na rede ilegal que contrabandeia as coloridas aves brasileiras até as mãos de curiosos ou colecionadores.
Num corredor de quarentena do CeMaCAS, perfumado pelas várias frutas que alimentam uma orquestra de aves, Loura é a única que ganhou nome. Ela é uma dentre dezenas de milhares de animais silvestres que, apreendidos em situações de tráfico ou posse irregular, estão em instalações especializadas ao redor do Brasil para reabilitação. A maioria dos pacientes costuma ser de aves, e entre eles há, inclusive, espécies hoje sob risco de extinção.
Para a papagaia e os vizinhos – periquitos, maracanãs, jandaias-de-testa-vermelha, araras-canindé e tantos outros –, o desafio é reaprender a ser bicho. Muitos deles não sabem mais parar de bater o próprio bico contra as grades por estresse. Ou têm medo de voar porque esqueceram como abrir as asas.
Papagaios a cem reais
Apenas em 2024, outros 60 mil animais silvestres foram levados a 25 Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), mantidos ao redor do Brasil pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Para estas instalações, assim como outras públicas ou privadas, também são encaminhados animais resgatados de áreas urbanas e estradas ou entregues voluntariamente.
No CeMaCAS, da Prefeitura de São Paulo, 1.237 animais encontraram refúgio, de janeiro a julho deste ano, depois de serem apreendidos. O volume de animais retirados do tráfico ou da posse irregular e para lá encaminhados aumentou 34% entre 2021 e 2024.
Papagaios-verdadeiros, como Loura, são tradicionalmente uma das espécies sob maior ameaça pelo contrabando de animais silvestres voltado ao consumo doméstico, por serem conhecidos como os mais habilidosos “faladores” da fauna nacional.
Eles podem ser vendidos até mesmo a cerca de 100 reais na ponta inicial da rede do contrabando, em geral nas regiões Centro-Oeste ou Nordeste. Ou dez vezes mais caro aos últimos compradores da cadeia nos centros urbanos do Sul e Sudeste.
De 1988 a 2024, estimados 12,5 mil filhotes foram apreendidos por autoridades das mãos de traficantes só no Mato Grosso do Sul (MS), segundo cálculo da ecóloga Gláucia Seixas.
“Isso não dá 10% do que saiu da natureza de verdade, porque a polícia não consegue interceptar todos os bichos,” explica. Ela é fundadora do Projeto Papagaio-Verdadeiro, que já construiu 450 ninhos artificiais no MS, em contrapartida à destruição de ninhos naturais pelos contrabandistas.
“Enxugar gelo”
Os bichos desafortunados não chegam ao fim da jornada da reabilitação, que é o retorno ao habitat natural – ou, pelo menos, à área mais provável da sua captura.
Três a cada quatro de todos os 330 mil animais – traficados ou não – recebidos pelos Cetas nos últimos cinco anos foram devolvidos à natureza, segundo o Ibama. Quase dois a cada dez vêm a óbito.
De janeiro a junho deste ano, foram 13 mil bichos soltos, o equivalente a pouco menos da metade dos que entraram no sistema de triagem no mesmo período. Dentre os repatriados, 48% haviam sido apreendidos em operações contra o tráfico.
Mesmo com resultados, o trabalho de quem cuida só dos animais traficados, os mais difíceis de reabilitar, às vezes se parece com “enxugar gelo”. “Muitos dos filhotes traficados nem mesmo sobrevivem ao transporte insalubre. É muito triste”, prossegue a veterinária Alice.
No caso de aves recém-capturadas, ela explica, são comuns lesões profundas, hemorragias e fraturas provocadas por pisoteamento em espaços minúsculos e superpopulados. Algumas chegam ainda cegas em decorrência de úlceras de córnea ou desnutridas por falta de água e alimento. Outras morrem por estresse ou falta de oxigênio no caminho.
Tampouco é garantia de sucesso a emocionante imagem da ave que, depois de um árduo e bem-sucedido tratamento, abre as asas e voa em direção ao horizonte.
“O animal precisa não só sobreviver, mas também interagir com outros e estabelecer uma população. Temos ainda que pensar que ele pode ensinar os seus comportamentos alterados a outros indivíduos, como buscar comida no lixo ou se aproximar de humanos”, diz Seixas.
Uma espécie presa pelo mundo
Quando cruza fronteiras, o tráfico de animais provoca um problema adicional: manejar populações espalhadas mundo afora, o que torna a reintrodução à natureza ainda mais desafiadora.
As ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) sabem bem disso. Nativo de uma pequena região da caatinga baiana, este raro psitacídeo chegou à extinção na natureza no ano 2000 em consequência da perda do habitat e captura para o comércio internacional. Virou símbolo de status entre colecionadores, por ser considerada uma ave exótica dos trópicos, e passou a valer alegadamente até centenas de milhares de reais no mercado ilegal.
Assim, o Estado brasileiro perdeu parcialmente o controle direto sobre a conservação das mais de 300 ararinhas-azuis hoje restantes. Retiradas da natureza ou geradas em cativeiro, elas se tornaram dependentes de cuidados humanos em diversos países.
Na Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), o Brasil pediu em 2001 que qualquer transferência de ararinhas-azuis obtenha a sua anuência, em coordenação com os esforços nacionais de manejo populacional.
“Esse plano busca tratar todos os animais – estejam no Brasil ou no exterior – como parte de uma única população, com foco exclusivo na conservação da espécie. O objetivo é evitar ações isoladas que possam comprometer o esforço coletivo”, explicou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) à DW.
Ameaça de vírus letal
Depois dos primeiros retornos ao Brasil, onze ararinhas-azuis voavam desde 2022 livres no céu da Bahia – até este mês. A soltura resultara de um programa de reintrodução em Curuçá, iniciado há seis anos em cooperação com uma organização alemã, que, à época, detinha pelo menos 146 ararinhas-azuis na sua sede nos arredores de Berlim, de 160 então existentes no mundo. Mas, recentemente, foi constatado que a reintrodução passou longe de ser um sucesso.
Recapturadas para testagem no início de novembro, todas as aves soltas acabaram acusando a presença do letal circovírus, patógeno causador da Doença do Bico e das Penas dos Psitacídeos.
O surto do vírus ainda afetaria o criadouro abrigando outras 92 ararinhas-azuis na Bahia, o que o ICMBio atribuiu a descumprimento de normas de biossegurança pela empresa que gerencia o local.
O Criadouro Ararinha-Azul (antigo BlueSky), responsável pelas instalações, foi multado em R$1,8 milhão pelo ICMBio. A empresa diz que não teve acesso aos laudos sobre a contaminação das ararinhas, mas que adota “as melhores medidas observado o bem-estar das aves e as limitações operacionais do criadouro”.
Mas, depois do episódio, acabou, por ora, a experiência em liberdade das onze ararinhas pioneiras. Também foi suspensa a soltura de um novo grupo que estava prevista para julho passado. Outros 27 exemplares da espécie estão no Zoológico de São Paulo.
Resposta pela educação
Observadores do nicho lamentam a falta de uma base de dados para mapear as apreensões de animais traficados a nível nacional ou de uma estimativa atualizada do volume de bichos retirados ilegalmente da natureza.
Para Juliana Machado Ferreira, diretora-executiva da Freeland Brasil, o país precisa de uma estratégia nacional de combate ao tráfico de fauna silvestre, tal como já fizeram outros nas Américas. Em 2014, os Estados Unidos sob o governo de Barack Obama, por exemplo, inauguraram uma abordagem que prevê um tripé entre reforço da aplicação da lei, redução da demanda por animais traficados e expansão da cooperação internacional.
“O Brasil faz um esforço muito grande. Mas ainda é muito aquém do mínimo necessário. A gente precisa de muito mais Cetas, recursos e gente, porque a demanda é enorme,” afirma Ferreira. “Estamos falando de um aparato caro, e nós, como sociedade, estamos pagando a conta de quem fomenta o tráfico. Porque só tem quem vende porque tem quem consome.”
Já a ecóloga Gláucia Seixas defende uma mudança de rota na estratégia brasileira, com mais foco em fiscalização na natureza e conscientização de potenciais consumidores. “Reabilitar é caro, difícil e nem sempre dá certo. É necessário monitoramento de médio e longo prazo, o que poucas instituições têm condições de fazer.”
Atualmente, são reconhecidas como ameaçadas de extinção 1.254 espécies e subespécies da fauna brasileira, incluindo 257 aves. Outras 337 espécies animais são consideradas quase ameaçadas, ou seja, podem estar oficialmente sob ameaça no futuro próximo.
