Não mais banhos de purificação no Ganges

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não mais batismos no Jordão

 

 

 

 

 

 

 

Na página ao lado, mulheres hinduístas se lavam no Ganges em Varanasi. Nessa cidade, mais de 189 milhões de litros de esgoto não tratado chegam diariamente ao rio.

Ganges, a deusa ferida

Diariamente, mais de um milhão de pessoas vão se banhar nas águas do Rio Ganges em Varanasi, a principal cidade sagrada da Índia. A afluência maciça tem um motivo forte: de acordo com a religião majoritária do país, o hinduísmo, lavar-se no rio significa livrar-se de todos os pecados, passo indispensável para superar o ciclo de mortes e reencarnações. Mas os esgotos e resíduos industriais e agrícolas sem tratamento despejados incessantemente no Ganges podem converter as bênçãos desse banho em pesadelo. Os problemas do rio, liderados pela altíssima poluição, chegaram a tal ponto que o governo indiano resolveu contra-atacar em fevereiro com um superinvestimento: US$ 4 bilhões (25% dos quais bancados pelo Banco Mundial) para que, até 2020, a poluição originária de esgotos domésticos e indústrias não chegue mais ao Ganges.

 

 

 

 

Acima, vista de Varanasi, a cidade mais sagrada da Índia. Em alguns trechos de sua passagem por ali, o Ganges já apresenta uma profundidade bem menor do que em décadas passadas.

À primeira vista, a dinheirama parece mais do que suficiente, mas uma imensa dose de cautela é recomendável no caso. Em primeiro lugar, a bacia desse rio de 2.510 quilômetros de extensão abriga cerca de 400 milhões de pessoas, e a atividade econômica da área se intensificou muito nas últimas décadas. Além disso, trata-se de uma divindade – o Ganges, na mitologia hinduísta, é a deusa Ganga, que veio dos céus para limpar as almas e facilitar seu acesso ao além. Portanto, erros na condução do salvamento do rio podem ter um impacto seriíssimo não apenas na saúde da região e de seus habitantes, mas também nesse milenar sistema de crença.

Poluição na Índia não é privilégio do Ganges, deve-se salientar. Segundo uma agência governamental ligada ao tema, apenas 31% do esgoto municipal do país passa por tratamento; o restante é lançado nos rios, lagos, terras e mares, contaminando as águas superficiais e subterrâneas. Mais de 500 mil dos 10,3 milhões de mortes na Índia em 2004 resultaram de doenças propagadas pela água, de acordo com dados sobre a mortalidade global reunidos pela Organização Mundial da Saúde. Mas o caso do Ganges ganha importância especial pela relação religiosa do rio com a população – muitos indianos simplesmente se recusam a aceitar que aquelas águas tragam doenças.

A análise de amostras coletadas no último inverno no Ganges mostrou, contudo, que nem uma deusa consegue resistir à capacidade destrutiva do homem. Para as autoridades sanitárias da Índia, é seguro banhar-se no rio se o índice de coliformes fecais (microrganismos associados a doenças como tifo, cólera e disenteria amebiana) chega, no máximo, a 500 por 100 mililitros de água, mas uma amostra revelou 29 mil coliformes fecais por 100 mililitros. Outra amostra, retirada do Ganges após seu encontro com o afluente Yamuna (carregado de uma espessa massa preta formada por efluentes industriais), exibiu espantosos 10 milhões de bactérias – principalmente a Escherichia coli

por 100 mililitros de água. O técnico de laboratório Gopal Pandey, responsável pelas análises, concluiu, sombrio: “A poluição está em um nível muito, muito perigoso.”

Uma viagem pela bacia do Ganges, como as feitas pelos repórteres Joshua Hammer (para a Smithsonian Magazine, em 2007) e Jyoti Thottam (para a Time, em 2010), é reveladora de como visões míopes de progresso misturadas à desinformação podem levar o caos à natureza e aos humanos que dependem dela. Os problemas do rio começam ainda antes de seu início, com o represamento de seu principal formador, o Bhaghirati, para preencher o reservatório do complexo de Tehri, aos pés do Himalaia.

Acima, em Allahabad, cidade onde o Ganges recebe as águas de seu principal afluente, o Yamuna, sadhus (homens santos do hinduísmo) participam de uma cerimônia no famoso festival de Ardh Kumbh Mela, em 2007. Atualmente, o nível do Ganges é tão baixo em Allahabad que o rio quase desaparece.

O Ganges em números

400 milhões

vivem na bacia do rio, o equivalente a mais do que o dobro da população brasileira.

10 milhões

de bactérias foram encontradas em

100 mililitros

de água após a confluência do Ganges com seu tributário Yamuna.

10 metros

é a profundidade atual do rio em certos trechos nos arredores de Varanasi; antes, ela era

6 vezes

maior.

 

Erguido entre 1978 e 2006, o complexo nasceu para fornecer água destinada à irrigação e ao abastecimento da região metropolitana de Délhi (a cerca de 200 quilômetros dali, na qual fica a capital do país, Nova Délhi) e de municípios vizinhos, além de gerar eletricidade. Trata-se de um dos maiores feitos da engenharia indiana – mas, além de forçar 100 mil habitantes a deixarem suas casas, desorganizou os suprimentos de água subterrânea da região, a ponto de cerca de 100 vilarejos ao redor da represa dependerem de caminhões-pipa para o abastecimento. Afora isso, os anos têm mostrado que a construção de Tehri baixou o fluxo do Ganges, em alguns pontos de forma drástica.

Graças ao reforço oriundo da represa himalaiana, a região metropolitana de Délhi, às margens do Rio Yamuna (o principal afluente do Ganges), com mais de 22 milhões de habitantes, desfrutaria em tese de 250 litros de água diários por morador – um índice comparável ao de países europeus desenvolvidos. Mas 50% desse volume se perde, por vazamentos nas tubulações e furtos. Como as áreas nobres têm fornecimento garantido, resta à periferia ficar com a média de 30 litros por dia – e também depender de caminhões-tanque e estações de bombeamento.

Com um crescimento populacional de 60% desde 1995, Délhi está muito longe de possuir uma rede de esgoto capaz de atender todos os moradores. Como resultado, o esgoto doméstico de cerca de 6 milhões de pessoas chega sem nenhum tratamento ao Yamuna e “mata” o rio: nenhum organismo vivo consegue sobreviver em suas águas ali.

Continuamente sangrado em seu percurso por canais de irrigação, o Ganges tem uma passagem importante por Kanpur, antiga guarnição britânica que havia prosperado com a fabricação de artigos de couro. Depois de décadas de letargia, a cidade reconquistou sua força industrial a partir dos anos 1990 e, tal como Délhi, viu sua população aumentar 60% nesse período, aproximando-se dos 5 milhões de habitantes. Com isso, Kanpur tornou-se outra formidável produtora de problemas para o rio. A maioria dos 400 curtumes locais, por exemplo, despeja seus resíduos tóxicos ali, sem tratamento. A explosão populacional da cidade não foi acompanhada pela devida rede de esgoto, com as consequências inevitáveis. E há uma agravante: o Ganges passa tão debilitado por Kanpur que um terço dos habitantes do município tem de viver com menos de 50 litros de água diários per capita.

Em Allahabad (mais de 1,3 milhão de habitantes), ao receber as águas do Yamuna – cuja poluição, nesse trecho, foi diluída com a ajuda de diversos afluentes -, o Ganges exibe um volume tão baixo que quase desaparece. O reforço de outros tributários lhe dá alguma força, e em Varanasi (mais de 3 milhões de habitantes) ele se apresenta com um fluxo ao menos condigno – embora sua profundidade, em certos trechos, tenha caído de 60 metros para 10 metros. O problema mais grave do rio na cidade sagrada, porém, é o esgoto doméstico: a diferença entre o volume tratado e o não tratado já passa da casa de 189 milhões de litros por dia, uma diferença que chega quase toda ao rio por meio de valas a céu aberto.

O governo indiano já havia tentado outros planos para devolver a saúde ao Ganges, mas todos eles redundaram em fracasso – em geral, as estações de tratamento montadas só deram conta de uma fração do esgoto disponível, isso quando não estavam paralisadas por falta de energia. Desta vez, porém, parece haver uma vontade maior para fazer a iniciativa dar certo, em especial do poder público, habitualmente apático nessas questões. A limpeza do Ganges foi considerada prioridade nacional pelo primeiro-ministro Manmohan Singh e o governo, além de aumentar o repasse de recursos para operar e manter as instalações de tratamento já prontas, passou a financiar outras opções na área ainda inexistentes na Índia. É o caso da proposta do ambientalista Veer Bhadra Mishra, de 72 anos, professor de engenharia hidráulica e principal sacerdote de um importante templo hinduísta de Varanasi. Mishra desenvolveu com uma empresa norte-americana um sistema no qual o esgoto doméstico interceptado no rio é desviado para uma vila perto da cidade sagrada, onde passa por uma série de lagoas nas quais a luz solar, a gravidade, bactérias e microalgas atuam para limpá-lo.

Como sacerdote, Mishra tem mexido com a mente de muitas pessoas para quem o Ganges seria impoluível. Ver suas sugestões postas em prática, depois de vários anos de luta contra as agressões ao rio, é uma vitória e tanto para ele. Mas o trabalho está apenas começando, lembra o professor, com um alerta contundente: “Dizemos que, se o rio não tem água, então ele morre. E, com isso, a história do Ganges acabará.”

Só mais um ano para o Jordão

Peregrinos cristãos ucranianos preparam-se para ser imersos nas águas do Jordão em Yardenit, no norte de Israel. Cerca de 100 mil turistas vão anualmente à Terra Santa para renovar suas promessas sacramentais, mas a poluição do rio ameaça esse turismo.

Proibidos os batismos em virtude da poluição”, advertem os cartazes colocados pela vigilância sanitária israelense. Quem diria: o Rio Jordão, sagrado para metade da humanidade (somando cristãos, judeus e muçulmanos), tornou-se objeto de interdição balneária, como se fosse uma simples poça de água malcheirosa. Mas é verdade: dois milênios após o batismo de Jesus, aquelas águas puras, antes sombreadas por salgueiros, tamareiras, choupos e caniços, movimentadas em corredeiras, piscinas e cascatas, se tornaram um fluxo venenoso de esgotos e detritos industriais. Em muitos pontos, cartazes advertem: “Banhos a seu risco e perigo.”

O decreto foi emitido pelo Ministério da Saúde israelense, que, ao dar as razões do impedimento, citou “graves perigos para a saúde no contato humano com a água altamente poluída”. Supõe-se que, na outra margem, que pertence à Jordânia, quem quiser jogar-se às águas poderá fazê-lo, mas terá de tapar a boca e o nariz.

Assim, não mais sacramentos batismais. Os mais de 100 mil peregrinos que, a cada ano, se reúnem nas duas margens do Baixo Jordão para renovar as promessas sacramentais, incrementando ao mesmo tempo em muitos milhões de dólares as finanças de Israel e da Jordânia, estão devidamente avisados. Esse hoje pequeno rio malcheiroso, esverdeado, infestado por algas, de águas quase sempre paradas, não é mais alimentado pela água doce do Lago Tiberíades (também conhecido como Mar da Galileia). É, muito mais, um lamaçal dentro do qual se misturam os restos humanos das populações ribeirinhas, os corrimentos tóxicos de irrigação das terras agrícolas, as descargas dos criadouros de peixes e as águas salobras de variadas procedências.

Em suma, um rio de excrementos. A tal ponto que os ecologistas que visitam o Jordão, antes de chegarem a ele, usam os banheiros de postos de gasolina mais distantes para “não acrescentar mais água poluída àquelas jogadas no rio pelas comunidades locais”.

 

 

E dizer que, no passado, o Jordão era chamado de “Porta do Paraíso”, a tal ponto sua paisagem era verdejante e amena. Sobretudo, rio sagrado.

A terra que ele corta é três vezes santificada: pela Torá, pelos Evangelhos, pelo Alcorão. Todos os que dele se aproximam passam em meio a exércitos de personagens proféticos do passado. Aqui chegou, entre os primeiros, o profeta Abrão. Aqui Jacó e Esaú se reconciliaram. Josué atravessou essas águas para chegar a Canaã. Elias, ultrapassada a margem, se elevou aos céus num carro de fogo. Eliseu curou ali os leprosos.

E ainda, exatamente nessas águas, João Batista exortou os judeus à piedade diante de Deus, imprecou contra Herodes, obtendo um sucesso tal que levou o tetrarca a cortar-lhe a cabeça. Veio Jesus e, de João Batista, recebeu o “batismo com o fogo”. Mais tarde, o profeta Maomé sobrevoou o vale na sua viagem noturna de Meca para Jerusalém.

Em outras palavras, décadas de incúria, 60 anos de guerras com o rio bloqueado por redes militares, as margens semeadas de minas explosivas e, por fim, a corrida para se apoderar das fontes aquíferas regionais desencadearam uma catástrofe ecológica cujas proporções a tornam capaz de desferir um golpe mortal nesse âmago das três grandes religiões de Abrão.

Não por acaso, uma organização não governamental, a Friends of the Earth Middle East (FoEME), dirigida por israelenses, palestinos e jordanianos, e que conta entre seus membros com judeus, cristãos e muçulmanos, apela aos respectivos governos para que socorram o Jordão. “Israel, Síria e Jordânia já desviaram 98% das suas águas”, denunciam. E advertem: “No decorrer de 2011, o Rio Jordão simplesmente irá desaparecer.”

O tom esverdeado domina a água em Qasr al Yahud, o lugar do Jordão onde João Batista batizou Jesus.

O Jordão em números

340 mil

moradores habitam a bacia do Jordão, cujas terras irrigadas estão entre as mais férteis da região. Desses habitantes,

250 mil

são jordanianos;

60 mil,

palestinos; e

30 mil,

israelenses.

100 mil

pessoas fazem, anualmente, uma peregrinação às margens do rio. Entre elas, muitos cristãos, para renovar a promessa batismal.

98% da água do rio bíblico é desviada por quatro povos, sobretudo para viabilizar seus projetos de irrigação agrícola. Com isso, apenas

2% do fluxo original atinge a foz. Israel desvia

45,6% dele; a Síria, 24,7%; a Jordânia,

22,8%; e a Autoridade Palestina, 4,9%.