10/07/2013 - 19:39
Mostar é uma cidade da Bósnia-Herzegovina, nos Bálcãs, com 100 mil habitantes, situada em um vale bucólico da Herzegovina. Seu cartãopostal é uma ponte em arco construída em 1566 sobre o Rio Neretva, que corta a cidade. O Neretva nasce nos Alpes Dináricos e percorre 200 quilômetros em território bósnio. Na rua principal, as lojas típicas vendem artesanato, lenços coloridos e sapatos de bico torcido, que remetem às Mil e Uma Noites. Há cafeterias turcas, fumadores de narguilé e elementos da cultura muçulmana. Do alto de um minarete, os clérigos entoam cânticos religiosos.
A Guerra da Bósnia, de 1992 a 1995, assumiu feições perversas na cidade. Nas colinas dos dois lados do rio, forças sérvias e croatas mantiveram um intenso combate de artilharia. Ambas se dedicavam à eliminação dos bósnios muçulmanos da cidade. Para além dos disparos de artilharia e do fogo cruzado, havia atiradores de elite, invisíveis, que espalhavam o pânico, executando indiscriminadamente, com tiros de longa distância, civis, crianças, velhos e adultos.
A ponte permaneceu de pé por 427 anos, mas em 1993 sucumbiu aos disparos de um tanque croata e veio abaixo. Em 2001, depois do fim do conflito, a sua reconstrução foi bancada por investimentos de vários países europeus, capitaneados por um consórcio suíço. As obras duraram três anos. Trata-se de um símbolo impregnado de história. Seria mais rápido e barato erguer outra ponte, mas a reconstrução teimosa da original reveste-se de significados históricos e culturais especiais para os bósnios.
O Rio Neretva tem três metros de profundidade no trecho que passa sob a ponte. Não foi difícil resgatar os blocos arrancados à bala que despencaram no rio. Uma vez recolhidos, um por um, começou a montagem de um grande quebracabeça. Em 23 de julho de 2004, a ponte foi reinaugurada, representando, para todos os países envolvidos no conflito e para aqueles da União Europeia que ajudaram a debelá-lo, a reafirmação da paz nos Bálcãs. Em 2005, a Unesco declarou Mostar um Patrimônio Histórico da Humanidade.
O ex-agricultor Vladko Tadik, dono de uma pequena loja de artesanato na rua principal da cidade velha, conhece bem essa teimosia arquitetônica. Em 1993, ele trabalhava em uma lavoura próxima a uma floresta de pinheiros, nos arredores de Mostar. Numa tarde, voltava para casa cautelosamente, escondendo-se das tropas adversárias, quando caiu um morteiro ao seu lado. Teria sido feito em pedaços, mas o artefato não explodiu. “Escapei por um milagre, mas 100 metros à frente outros morteiros caíram ao meu redor. Um explodiu a menos de dez metros de mim. Arrancou parte da perna esquerda e me crivou de estilhaços de metal.” Tadik perdeu parte da audição, devido a um impacto que perfurou seu tímpano esquerdo. Mesmo assim, considera-se um afortunado, por ter sobrevivido à guerra que custou 200 mil mortos e 1,8 milhao de desterrados. Hoje, procura nos jornais notícias dos desaparecidos no conflito.
História traumática
A guerra na Bósnia-Herzegovina começou a ser urdida na desintegração da antiga Iugoslávia, depois do colapso do comunismo, em 1989, e da dissolução da União Soviética, em 1991. O país unificado pelo marechal Josip Broz Tito era formado por uma intrincada composição de seis repúblicas – Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia, Sérvia e Montenegro – e duas províncias autônomas (Kosovo e Vojvodina), subordinadas à Sérvia. Sua capital era a capital sérvia, Belgrado.
Dificilmente poderia dar certo sem um governo forte. Era um país com sete fronteiras, seis repúblicas, cinco nacionalidades, quatro idiomas, três religiões, dois alfabetos e um ditador carismático, que desapareceu em 1980. Tito era croata, militar, comunista e hábil político, líder guerrilheiro da resistência antinazista na Segunda Guerra Mundial, os chamados partisans. Governou com mão de ferro e manteve a artificial unidade nacional intacta.
O colapso do comunismo abalou o Partido Comunista da Iugoslávia, que perdeu terreno rapidamente para ideologias nacionalistas e separatistas, principalmente na Sérvia e na Croácia. Na esteira da agitação política, em 1989 ascendeu à presidência da Sérvia o líder Slobodan Milosevic (1941-2006), um político populista e nacionalista, aliado à cultura cristã-ortodoxa e à influência russa. Seus objetivos eram consolidar o poder na mais forte das repúblicas e estendê-lo até onde fosse possível na complicadíssima colcha de retalhos da Federação Iugoslava.
A derrocada do comunismo fez ressurgir nas repúblicas e nos territórios o sonho da independência contra o poder central, concentrado no nacionalismo e na supremacia sérvia. Quando a Bósnia-Herzegovina decidiu-se pela independência, os sérvios bósnios não a aceitaram e os confrontos recrudesceram.
Em abril de 1992, o conflito foi oficialmente reconhecido como uma guerra civil. No início, as forças sérvio-bósnias atacaram brutalmente a população civil do leste da Bósnia. Com as cidades e aldeias rapidamente dominadas, as forças sérvias – militares, policiais, paramilitares e até bandos civis – dedicaram-se a expulsar os moradores das suas casas, promovendo uma limpeza étnica, mitas vezes matando sumariamente. Milosevic partiu para a guerra tanto contra croatas católicos romanos quanto contra bósnios muçulmanos pela manutenção da Federação Iugoslava, aproveitando o conflito para acertar velhas contas e levar adiante o delírio suprematista da “Grande Sérvia”, à custa de bósnios, croatas, kosovares (habitantes do Kosovo) e outras minorias. Assim, a Europa, que se acreditava livre de guerras, viu-se às voltas com uma estarrecedora faxina étnica, em pleno século XX.
Crimes para todos
Além da artilharia e dos atiradores de elite, houve pilhagens, incêndios, tortura, estupros e execuções. Líderes bósnios e pessoas comuns foram caçados, espancados, mortos ou mandados a campos de concentração. Muitas mulheres foram mantidas em cárcere, onde sofriam maus-tratos e estupros. Soldados e policiais iam aos centros de detenção escolher mulheres para uso sexual e depois as devolviam. Situações semelhantes aconteceram no Kosovo e na Macedônia. Desde o encerramento do conflito, em 1995, numerosas valas coletivas repletas de corpos executados a tiros continuam a ser descobertas na Bósnia e no Kosovo.
As forças sérvias praticaram grandes atrocidades, mas não foram as únicas. Croatas, sérvio-bósnios e bósnios muçulmanos também se envolveram em represálias sangrentas, vinganças e brutalidades, que resultaram em uma complicada teia de genocídios e crimes contra os direitos humanos, praticados por líderes políticos e militares de várias patentes e nacionalidades. Para complicar ainda mais a situação, diversas vezes forças oponentes mudaram de lado e se uniram aos inimigos em prol de objetivos comuns imediatos.
Na Sérvia, o presidente Slobodan Milosevic foi preso, acusado de crimes contra a humanidade e genocídio, e morreu condenado pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra, em 2006, em Haia, na Holanda. Os generais Radovan Karadzic e Ratko Mladic foram acusados de uma série de atrocidades, entre elas o cerco e massacre de Srebrenica e o bombardeio à capital Bósnia, Sarajevo. Karadzic foi detido em 2008 e Mladic foi preso em 2011, ambos em Haia.
O general croata Ante Gotovina foi acusado de limpeza étnica quando se lançou à retomada de territórios conquistados pelos sérvios, em 1995. Capturado na Espanha, está sendo julgado pelo moroso Tribunal de Haia. Ramush Haradinaj, exprimeiro-ministro do Kosovo, é acusado de tortura, estupro e assassinato de sérvios enquanto comandava o Exército de Libertação do Kosovo. Biljana Plavsic, a única ex-iugoslava acusada pelo Tribunal Internacional, sucedeu Karadzic como presidente sérvio-bósnia. Declarou-se culpada diante do tribunal em 2003, foi sentenciada a 11 anos de prisão, mas, após cumprir dois terços da pena, foi libertada em 2009. Goran Hadzic, líder político dos rebeldes sérvios da Croácia, é acusado de crime contra a humanidade, perseguições, tortura, tratamento desumano, assassinato e deportação. Indiciado em 2004, é um dos mais procurados criminosos de guerra da atualidade.