04/10/2013 - 16:37
Semanalmente, Esther Perel escuta os segredos vividos entre quatro paredes por casais de 15 países. Especializada em terapia de casais e sexualidade, a psicóloga belga vive na cosmopolita Nova York, nos Estados Unidos, fala nove idiomas e entende, como poucos, a linguagem do corpo.
Quando o assunto é intimidade e desejo sexual, Perel destaca-se por falar uma língua bem diferente da maioria dos seus colegas de profissão. Para ela, a insatisfação sexual no casamento não é um reflexo da falta de amor, como pensa a maioria dos psicólogos. Ela vê muitas provas disso chegarem ao seu consultório: casais que se dão muito bem, obrigado, mas que já não fazem sexo.
Na era moderna, o desejo sexual, segundo a psicóloga, sofre de um dilema: no novo modelo de união amorosa baseado no livre-arbítrio, em que o parceiro ou a parceira é o melhor amigo e confidente, é possível manter acesa a chama do erotismo? Para sempre?
Nesta conversa franca com a PLANETA, Esther Perel fala sobre a flexibilização do casamento, a monogamia, a fidelidade e sobre o seu best-seller internacional, que porta, desde o título, uma definição do problema vivido, desde sempre, nos relacionamentos: Sexo no Cativeiro (Editora Objetiva, 2007). Como terapeuta da intimidade dos casais, ela não está disposta a aceitar tabus históricos.
Por que as pessoas estão se divorciando mais do que nunca?
Porque a mulher pode ir embora. O aumento da taxa de divórcio corresponde ao aumento da independência econômica da mulher e às mudanças nas leis. Nos últimos 40 anos, a mulher deixou de ser possessão do homem, assim como os filhos. Elas passaram a ficar protegidas depois do divórcio, passaram a poder ter a guarda dos filhos, surgiu o divórcio consensual e deixou de existir a lei do adultério, por exemplo. Ao mesmo tempo, o divórcio prolifera porque nunca tínhamos posto tantas expectativas no parceiro como fazemos hoje. Nunca tínhamos investido tanto no amor e no sexo como hoje. E nunca tínhamos nos divorciado tanto por falta de amor e de sexo, como hoje.
Quando o amor e o sexo ganharam tanta importância no casamento?
O casamento era um arranjo econômico. Não tinha muito a ver com amor. O amor podia se desenvolver, ou não, mas não era condição para se casar. Primeiro, introduzimos o amor no matrimônio criando o modelo romântico do amor ideal no fim do século XIX. Com isso veio a ideia de que o casamento é fruto do livre-arbítrio: devemos casar com a pessoa que amamos e isso é uma decisão individual. O sexo para elas entrou depois, por três portas. A primeira foi a democratização da contracepção: pela primeira vez, separou-se o sexo da reprodução. Antes disso, não se podia falar da sexualidade da mulher. O sexo era só um dever e não um prazer, não estava ancorado num desejo. A segunda porta foi aberta pelos gays, que, pela primeira vez na história, definiram um conceito de identidade sexual. Nesse conceito, o sexo não é apenas orientação sexual nem condição biológica, mas um projeto de autodefinição de si mesmo que integra nosso desejo de ser feliz. A terceira porta foi a conexão entre felicidade matrimonial e satisfação sexual: o sexo agora é parte da satisfação matrimonial. Todas essas mudanças aconteceram ao mesmo tempo, nos últimos 30 anos, no Ocidente, é claro.
O que mudou na dinâmica dos relacionamentos?
Hoje queremos do nosso parceiro, ou parceira, o que sempre quisemos: estabelecer família, ter filhos, apoio econômico, status e respeito social. E também queremos que seja um eterno apaixonado, amante, confidente e amigo. Tudo. Quero poder confiar no outro, ser sua melhor amiga e também quero fazer amor com ele. Quero tudo de uma única pessoa. Quero me sentir especial para você, ser a única, indispensável e insubstituível – e sempre! Isso me dá sentido e ajuda a transcender a solidão. Não é pouca coisa. Ainda por cima, vivemos duas vezes mais tempo do que antes. Hoje é comum buscarmos em uma pessoa o que antes uma comunidade inteira proporcionava: o sentimento de ter apoio, pertencimento, continuidade e identidade.
Homens e mulheres buscam tudo isso?
Sim. Eu vejo também em casais homossexuais. Tem a ver com os papéis assumidos e não com o gênero. Mas as mulheres têm mais permissão para ter medo do que os homens. Os homens se escondem atrás do medo das mulheres. A maioria dos homens casa de novo e de novo, o tempo todo. Eles, em geral, são muito mais felizes casados do que sozinhos. A qualidade de vida de um homem aumenta quando casado – ela cuida da comida, da casa, o leva ao médico, etc. O casamento convém muito mais ao homem do que à mulher.
Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre as expectativas que depositamos nos parceiros?
Sempre se acreditou em problemas sexuais como consequências de problemas de relacionamento. O que vejo são muitos casais que se dão muito bem, que têm um bom relacionamento, boa comunicação, cumplicidade e intimidade, mas sofrem de falta de desejo. Então me interessei pela crise de desejo nos casais. O que significa essa falta de desejo e o que se pode fazer em relação a isso? Escrever sobre gente que não se dá bem e não quer ter relação sexual não é tão interessante. Quero entender por que tanta gente que se ama não se deseja, às vezes. Qual é a diferença entre amar e desejar? Podemos desejar o que já temos? Por que alimentar o amor e a intimidade não propicia desejo sexual? É essa dialética perturbadora que me interessa. Reconciliar a dupla necessidade que levamos aos parceiros: necessidade de encontrar uma relação comprometida, segura e estável e, ao mesmo tempo, buscar a novidade, o desconhecido, o mistério, a aventura e o arrebatamento. Que a mesma pessoa seja familiar e desconhecida, previsível e surpreendente, que me estabilize e me perturbe. Como reconciliar essas demandas humanas diferentes e, às vezes, opostas? Esse não é um problema que se resolve com técnicas ou com brinquedinhos. É um paradoxo que temos de administrar.
Dessa negociação complexa surgem novas formas de união?
Todas as formas novas de união são negociações para lidar com esse paradoxo. Estamos todos tentando manter um relacionamento estável, comprometido e de longo prazo, e procurando a realização pessoal, a felicidade e a satisfação sexual. Todos os modelos procuram dar às pessoas segurança e proteção sem ser enfadonhos e previsíveis. É algo que se cultiva e se explora juntos. Como desenvolver ao mesmo tempo um espaço erótico? Como entender que as leis da cozinha não sejam as mesmas da cama? Como entender que as regras da democracia não funcionam sempre tão bem no campo erótico? Trata-se de uma exploração, realmente, mais do que uma negociação.
As pessoas ainda buscam uma relação de longo prazo?
Acho que o ideal romântico ainda tem muito poder. As pessoas podem até saber que quando se casam não é para toda a vida, mas ainda esperam que seja. A realidade é outra coisa. Continua-se a buscar um ideal. A realidade mudou, mas as aspirações não. O modelo mágico sempre existiu, toda a literatura está escrita em volta desse modelo, mas ele não era parte do matrimônio. O romantismo sempre existiu. O casamento é que virou uma expressão romântica, baseada na confiança, na lealdade, na fidelidade e na intimidade. Isso é que é novo.
As pessoas negociam conceitos de fidelidade e monogamia?
A monogamia mudou de sentido. Antes, monogamia era ter uma pessoa na vida; agora, é ter uma pessoa de cada vez. Monogamia não tinha nada a ver com amor, tinha a ver com patrimônio e sucessão. Em toda a história, ela sempre foi imposta às mulheres – para saber de quem eram os filhos e para onde ia a herança. Os homens nunca foram monógamos. A monogamia mudou de sentido quando o casamento mudou de sentido. O casamento passou a ser um arranjo amoroso e a monogamia passou a ser parte disso. Agora que chegamos ao casamento não monógamo, a fidelidade por sexualidade exclusiva virou a melhor maneira de dizer “eu paro por aqui” ou “com você vou ter uma relação de exclusividade”. A exclusividade é algo que escolho por escolher você em um momento da minha vida.
O conceito de fidelidade mudou?
Sim, está mudando. Estamos desenvolvendo novas concepções de monogamia que os homossexuais já conheciam desde o princípio, a ideia de lealdade e de compromisso emocional a uma relação primária de respeito e de amor, mas que não são necessariamente inclui fidelidade ou exclusividade sexual. Até então, a ideia principal era a de que a monogamia se manifestava pela exclusividade sexual. O interessante é que para muita gente a fidelidade sexual é mais fácil de se manter. Fidelidade e monogamia não eram negociáveis. Só se negociava nos momentos de crise, depois de uma infidelidade. Ainda é um tema muito delicado, um tabu, porque é como negociar o modelo romântico. Mas isso está mudando diante de nós, pelo mesmo motivo que antes não era possível ter relações sexuais pré-matrimoniais ou depois do divórcio. Temos novas fronteiras. Não é a primeira vez que renegociamos fronteiras.
Estamos vivendo um momento de mudanças?
Sempre é assim. Quando passamos a ter métodos contraceptivos, não sabíamos aonde íamos parar. Quando começaram as fertilizações in vitro, também não sabíamos. Quando surgiu a possibilidade de receber óvulos de outras mulheres, idem. Acho que temos mudanças de momentos, mas elas não mais revolucionárias do que as mudanças anteriores. A questão da virgindade antes do matrimônio não era uma mudança menos fundamental do que as de hoje. Basta lembrar a enorme quantidade de filhos ilegítimos que existia.
Que tipo de matrimônio tem maior possibilidade de sobreviver?
Depende das pessoas. O modelo que temos agora está fracassando, não? Nos EUA, por exemplo, 50% das pessoas se divorciam dos primeiros casamentos e 65% dos segundos. O modelo está lutando para sobreviver. A questão não é qual é o melhor, mas sim que necessitamos ter vários modelos. As pessoas vão viver mais de um modelo em suas vidas. Algumas vão ter modelos diferentes inclusive com o mesmo parceiro. A flexibilidade não é do modelo, mas de a sociedade ter vários modelos.
Você está casada há 30 anos com o mesmo marido, tem dois filhos e uma carreira. Você é um caso de casamento bem-sucedido?
A única relação duradoura é com a morte, diz um ditado um tanto amargo. Durar é ótimo e estou muito contente por ter uma relação duradoura, mas acredito que não devemos tomar a duração como símbolo de sucesso. Muita gente vem ao consultório dizendo que teria sido melhor se seus pais tivessem se divorciado, porque ficaram juntos de uma forma miserável. Durar não é um sucesso em si mesmo. É a qualidade da relação entre as pessoas que importa. Não o tempo.