21/06/2018 - 8:14
Muito se fala hoje sobre “criptomoedas”, mas pouco se entende a respeito disso. Olhares curiosos, confusos e desconfiados tentam entender as flutuações dessas moedas digitais e as oportunidades que oferecem. Fato é que elas representam um conceito completamente revolucionário em relação ao que se conheceu como dinheiro até agora. Durante décadas, os governos dos países produziram papel-moeda com base no ouro que possuíam, enquanto bancos centrais e instituições financeiras cuidavam da regulação e administração desses instrumentos. Depois, as moedas nacionais passaram a ser cotadas na base da oferta e da demanda. As criptomoedas chegaram para bagunçar todo esse esquema mental.
Tudo começou há cerca de dez anos, em meio à crise mundial de 2008, quando a elite da tecnologia decidiu buscar alternativas ao atual – e falho – sistema financeiro. A primeira criptomoeda a surgir foi o bitcoin, definida por seu criador, Satoshi Nakamoto – pseudônimo que ninguém sabe se designa uma pessoa ou um grupo –, simplesmente como o dinheiro eletrônico peer-to-peer (ponta a ponta). Nasceu assim uma forma de fazer transferências financeiras entre duas partes sem que uma conheça a outra e sem instituições intermediárias. Tudo é feito por meio de uma tecnologia invulnerável, o “blockchain” (em inglês, “cadeia de blocos”), com ajuda da criptografia, que reforça a segurança e garante sigilo aos envolvidos. (Conheça detalhes dos conceitos disruptivos das criptomoedas no texto “Inovação disruptiva” abaixo)
“O bitcoin surgiu de um momento de experimentação. É o maior exemplo de como nasceria um dinheiro espontâneo”, reflete Leandro Lima, sócio fundador da 300 Traders, empresa de cursos online de investimentos em criptomoedas. “Não existe cunho forçado no bitcoin, só usa quem quer.” Embora constantemente rotulado como fraude ou esquema de pirâmide, o bitcoin não foi criado para enriquecer seu dono. Nakamoto não registrou patentes do seu modelo, deixando-o totalmente livre para ser trabalhado pela comunidade (o que é conhecido na área de tecnologia como “sistema de código aberto” ou “opensource”), e preferiu ficar anônimo – “diferentemente de algumas criptomoedas surgidas posteriormente”, lembra Lima.
Hoje existem mais de mil opções de criptomoedas, cada qual com uma variação de propósito. Entre as mais conhecidas e estáveis estão: ethereum (ETH), litecoin (LTC), ripple (RTX) e bitcoin cash (BCC), uma derivação do bitcoin (BTC). “Muitas delas já são aceitas em lojas físicas e virtuais mundo afora”, diz Lima, “especialmente em países asiáticos onde governos menos controladores e que sempre avançaram dentro da tecnologia, como Japão e Coreia do Sul, não veem a novidade como ameaça, mas sim como oportunidade”.
Montanha-russa
No início deste ano, entretanto, o valor de mercado de 1 bitcoin despencou de US$ 20 mil para US$ 6 mil e reacendeu velhas suspeitas. O motivo principal dessa variação foi a venda maciça da moeda por uma exchange (casa de câmbio das criptomoedas) japonesa, que aproveitou o momento de alta para bancar as custas de um processo judicial. Essa queda, entretanto, não chegou a arranhar o investimento de quem comprou a moeda até o início de 2017, quando um bitcoin valia US$ 700, e muito menos de quem a adquiriu lá no início, quando não chegava a custar US$ 1.
Segundo Ricardo Andrade (arquivista, programador e voluntário da Litecoin Foundation), essa flutuação, em vez de abalar a crença nas criptomoedas, veio comprovar a resiliência do bitcoin, visto como o “dólar” dessas unidades monetárias. “É um movimento natural de mercado volátil, diferentemente do caso de outra criptomoeda, que se valorizou 5.000% em três dias, logo após seu lançamento, e depois caiu a zero”, afirma. Essa montanha-russa que assusta é a mesma que atrai muitos investidores. Em fevereiro, o número de brasileiros que compram criptomoedas atingiu quase 1,4 milhão e já era mais do que o dobro de cadastrados na Bolsa de Valores. Seguindo o atual ritmo de adoção, deverá logo alcançar os 1,8 milhão de investidores no Tesouro Direto.
Além da promessa de rendimentos, conta o apelo da novidade. “Ao comprar criptomoedas, você as guarda no celular ou no computador, pode mandá-las para qualquer pessoa do outro lado do mundo ou fazer compras em outro país sem precisar de câmbio e sem dar satisfação a governos. As pessoas querem experimentar isso”, diz Marcelo Miranda, economista que atuou por anos no mercado financeiro tradicional e em 2015 abriu a exchange Flow BTC. A casa deve chegar ao fim do ano com 150 mil clientes. Para Miranda, este novo mundo oferece mais vantagens: é acessível e rápido. Em poucas horas é possível abrir uma conta em uma exchange e começar a fazer negócios (trades) com qualquer valor, mesmo de centavos. Já o mercado tradicional demanda valores acima de R$ 5 mil para dar retorno e é bastante burocratizado e moroso.
Apesar do interesse crescente, ainda restam muitas dúvidas sobre o valor dessa nova proposta monetária. “O que traz valor às criptomoedas é a tecnologia que há por trás delas – seria um lastro, se é que pode ser chamado assim”, diz Miranda. Ele lembra que mesmo entre as moedas em uso hoje contam mais as dívidas internacionais do que as reservas em metal nobre. E, embora os governos sejam formas de garantia, não faltam casos como o do Zimbábue, que chegou a emitir notas de trilhão, e mesmo do Brasil, que tantas vezes precisou trocar sua moeda.
Recompensas
A tecnologia das criptomoedas se fortalece com a rede de pessoas que voluntariamente oferecem seu poder computacional para processar as transações, os chamados mineradores. O primeiro a validar uma transferência ganha, em troca, uma recompensa na própria moeda. Assim, novas unidades ou frações delas passam a circular. Esses milhares de computadores distribuídos pelo mundo garantem transparência e criam um poder descentralizado e coletivo que impossibilita seu controle por empresas ou governos.
Quem assiste de longe parece estar sempre aguardando uma bolha estourar. Para quem acompanha de perto, esse risco não existe. Fausto Vanin, especialista em transformação digital e inovação, explica que uma estrutura de mercado robusta, bem construída e distribuída globalmente foi formada a partir das criptomoedas: mineradoras, exchanges e interesse de mercado. “Falar em bolha é tentar resumir a discussão numa palavra que não se encaixa. Acham que um rótulo vai gerar um entendimento rápido e permitirá partir para outro assunto. Mas esse assunto não vai passar.”
Goste-se ou não, as criptomoedas vieram para ficar, principalmente por trazerem embutida uma forte provocação: é possível ter um modelo de circulação de valor muito mais eficiente que o atual. “É muito caro gerar, circular e manter papel-moeda. A partir do blockchain, novas visões estão surgindo e isso quebra a característica de bolha”, afirma Vanin. Assim, as criptomoedas avançam por cima de governos e instituições financeiras, espalham-se pelo mundo e prometem se tornar uma tecnologia que fará parte do dia a dia, como o celular, o computador e a internet.
Governantes de países se unem para discutir moedas digitais porque não sabem o que são nem como tirar delas sua parte em impostos. “Eles não conseguem destruir nem regulamentar as criptomoedas, porque elas não são de ninguém, mas são de todos ao mesmo tempo”, afirma Andrade. “Eles estão perdendo o poder sobre o sistema financeiro.” Como bem define o programador, o fenômeno das criptomoedas é uma força imparável na economia, assim como a internet foi na comunicação e na informação.
Inovação disruptiva
Conheça as características mais importantes do modelo monetário proposto pelas criptomoedas e entenda por que elas estão abalando o mercado financeiro mundial e atraindo tantos adeptos
• DESCENTRALIZADA – As moedas digitais mais fortes e sérias não têm dono. Elas não são de ninguém e são de cada um que as utiliza. Estão acima de qualquer Estado e de todos os Estados ao mesmo tempo. Por isso, nenhum governo ou lei consegue destruí-las ou regulamentá-las.
• DISTRIBUÍDA – Por trás de cada criptomoeda existe uma rede de computadores que colabora para processar suas operações. Cada um desses pontos, ou nós (no termo técnico), pertence a pessoas e/ou empresas diferentes de distintos lugares do mundo e trabalha para verificar as operações realizadas.
• COLETIVA – Essa rede colaborativa representa poder e segurança para a própria moeda. É formada por quem voluntariamente oferece seu poder computacional para operar essa unidade monetária, os chamados mineradores. Quem consegue validar primeiro um bloco de transações – ao resolver um problema matemático altamente complexo apresentado à rede – é recompensado na moeda minerada.
• AUTOSSUSTENTÁVEL – Uma peculiaridade do modelo que o torna autossustentável é que a recompensa pelo processamento das operações é dada na própria moeda. É assim que novas unidades e frações de unidades das criptomoedas entram em circulação (ou seja, são emitidas).
• CONFIÁVEL – Utilizada em muitas redes descentralizadas, a tecnologia peer-to-peer (P2P ou ponta a ponta) elimina intermediários e dá mais agilidade e eficiência às trocas. Nesse caso, ela permite fazer transações financeiras entre partes que não se conhecem.
• IMUTÁVEL – O maior avanço tecnológico das criptomoedas está
na tecnologia blockchain (“cadeia de blocos” em português), considerada o sistema mais seguro do mundo. Todas as transações feitas dentro de um intervalo de tempo regular ficam registradas no interior de um bloco, como se fossem páginas de um livro-caixa. A grande sacada é que cada bloco fechado está associado ao anterior e, para mudar um deles, seria preciso alterar todos os seguintes. Além disso, todos os elos da rede têm uma cópia igual desses registros, e qualquer alteração unilateral gera exclusão da rede.
• TRANSPARENTE – O livro-caixa gerado pela blockchain fica aberto online para todos os nós da rede.
• SIGILOSA – A criptografia deixa ilegíveis as informações pessoais das partes envolvidas em uma transação, garantindo o anonimato do dono dessas moedas. Somente a chave decodificadora de cada usuário consegue assinar suas transações e acessar as criptomoedas que ele tem.
• DEFLACIONÁRIA – Algumas criptomoedas definiram um teto de emissão. Somente 21 milhões de bitcoins (BTC) e 84 milhões de litecoins (LTC) poderão existir. Inicialmente, para cada bloco processado de bitcoins a recompensa dada era de 50 unidades da moeda, mas a cada quatro anos esse valor cai pela metade – atualmente, está em 12,5. Portanto, a partir de 2040 não haverá mais emissão. Isso confere uma característica de escassez
à moeda e lhe dá a qualidade de deflacionária, ao contrário do que ocorre com as moedas emitidas por governos.
O custo ambiental da segurança
Na competição por validar as transações das criptomoedas, uma quantidade impressionante de energia elétrica é gasta diariamente. Segundo o site Digieconomist, em janeiro de 2018 a rede do bitcoin já consumia mais de 50 terawatts/hora (TWh) de eletricidade por ano, superando países como Singapura (49,5 TWh) e Portugal (49,8 TWh). Isso representa muitas megatoneladas de emissões de CO2 e uma questão ambiental relevante. A conta de luz já faz com que boa parte das “fazendas de mineração” – empresas que dedicam centenas de máquinas ao processo – busque países com energia mais barata, como o Paraguai, e locais onde as baixas temperaturas possam ser aproveitadas para refrigerar as máquinas e reduzir o emprego do ar-condicionado, como montanhas chinesas e a Finlândia.
O gasto com energia, entretanto, tem seu papel: é o preço que se paga pela segurança do sistema. “Para se ter uma chance de fazer qualquer modificação na tecnologia blockchain – que gera o livro-caixa das criptomoedas – seria preciso juntar mais energia do que a consumida por todos os mineradores somados e fazer um ataque de criptografia praticamente impossível atualmente”, explica Ricardo Andrade, programador e voluntário da Litecoin Foundation. Por isso, hoje, o bitcoin, a primeira e mais estabelecida das criptomoedas, é considerado o sistema mais seguro do mundo de guarda de valor.