Um lote de células-tronco é retirado do congelador, em laboratório da Universidade de Wisconsin (Estados Unidos), para degelo a fim de ser aproveitado em pesquisa. O uso terapêutico de célulastronco deve abrir uma nova fronteira na medicina, mas ainda exige anos de estudo e a superação de barreiras éticas, religiosas e culturais.

“A expectativa hoje é tão grande que, se você diz que vai tratar um paciente com células-tronco, é capaz de ele se curar sozinho.” Embora dita em tom de brincadeira, a frase da bióloga e geneticista Nance Nardi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das maiores especialistas do Brasil em células-tronco (CTs), dá bem a medida da fama e das esperanças em torno dessa nova possibilidade terapêutica. Mas é preciso cautela. Para usar um velho clichê: devagar com o andor. O santo não é de barro, é verdade, mas ainda vai demorar a fazer milagres.

Até 1999, quando as CTs foram eleitas pela revista Science o avanço científico do ano, pouca gente sabia do que se tratava. Hoje, elas estão nas páginas dos jornais e, por causa de sua capacidade de se transformar em qualquer tecido do corpo humano, trazem esperanças de recuperação para vários males. Alguns cientistas chegam a dizer que sua descoberta é tão revolucionária quanto a da penicilina. Em sua maioria, no entanto, os pesquisadores são mais cautelosos. Embora reconheçam as possibilidades que essas células abrem para a medicina, fazem questão de lembrar que ainda serão necessários muitos anos de estudos e testes até que elas possam ser usadas em tratamentos rotineiros.

Nance, por exemplo, lembra que as únicas CTs usadas hoje na medicina são as da medula óssea, que desde os anos 1950 são empregadas no tratamento de doenças do sangue, como leucemias e anemias. “O uso de células-tronco para qualquer outro tipo de doença deve ser considerado ainda em experimentação”, explica. “A maioria dos estudos clínicos continua sendo realizada com pequeno número de pacientes e sem controles adequados. Apenas quando tivermos muitos desses estudos, controlados, realizados em vários centros de pesquisa, é que poderemos comprovar a real eficiência da terapia com células-tronco.”

A farmacêutica bioquímica Patrícia Pranke, professora de hematologia da Faculdade de Farmácia da UFRGS, também prefere guardar uma certa reserva. Ela realiza estudos na área de neurociência, mais especificamente na tentativa de reconexão de medula partida. Justamente o caminho para que paraplégicos possam levantar de suas cadeiras de rodas e voltar a andar. Não é de se estranhar, portanto, as esperanças em milagres que esse tipo de estudo gera.

Pacientes de várias doenças crônicas aguardam fora do prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, durante a sessão em que o órgão analisou a continuidade das pesquisas com célulastronco embrionárias no País, em março de 2008. O tema despertou fortes reações contrárias de católicos e outros grupos religiosos, para os quais essas pesquisas significam a interrupção de vidas.

 

As células-tronco totipotentes (alto, à esquerda) podem tomar a forma de células de várias partes do corpo, como músculo (baixo, à esquerda), tecido nervoso (baixo, à direita) e cartilagem (alto, à direita).

As Células-Tronco seriam, de certa forma, como o tronco de uma árvore, que pode gerar ramos, folhas e flores

OTIMISMO CAUTELOSO

Mas a própria pesquisadora não compartilha dessa crença. Ainda na fase de experiências com cobaias, ela já obteve bons resultados em ratos. Mesmo assim, mantém a calma e resume sua posição e a da maioria de seus pares: “Estamos cautelosamente otimistas. Não podia ser diferente diante do que estamos conseguindo. Há dez anos, dizia-se que a reconexão da medula era impossível. Hoje, sabemos que não. Mas também não devemos nos precipitar, porque não se trata de milagre. É ciência, e a ciência é lenta.”

As esperanças não são, porém, uma questão de fé. O potencial das CTs é de fato muito grande. Elas seriam como o tronco de uma árvore que pode gerar os ramos, as folhas, as flores, ou seja, são precursoras de outros tipos de células. Em outras palavras, são células primitivas, produzidas durante o desenvolvimento do organismo e que originam todos os tecidos do corpo, como a pele, os rins, o cérebro, o coração e os ossos. “Assim, teoricamente elas poderiam ser multiplicadas em laboratório e induzidas a formar tipos celulares específicos que, quando transplantados, regenerariam o órgão doente”, diz a física e doutora em genética molecular humana Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo (USP).

Há dois grupos de CTs: embrionárias e adultas. As primeiras, encontradas nos embriões, eram tidas até recentemente como as únicas capazes de desenvolver todos os tecidos humanos – por isso são chamadas de totipotentes. Mas, em 2007, duas equipes de pesquisadores, uma do Japão e outra dos Estados Unidos, anunciaram que conseguiram fazer com que células humanas adultas da pele passassem a ter as mesmas características das versáteis célulastronco embrionárias (CTEs), como a capacidade de dar origem a outros tecidos do corpo.

É essa característica natural delas que permite a um embrião se tornar um corpo completamente constituído. O feito dos cientistas norte-americanos e japoneses poderia fazer supor que as pesquisas com CTEs seriam de agora em diante dispensáveis. Não é o que pensa Lygia. “Ainda há muito a aprender com as CTEs e elas serão necessárias às análises e aos aperfeiçoamentos requeridos pelas recentes descobertas”, diz.

No caso das células-tronco adultas, em estado natural elas são mais especializadas, e delas derivam tipos específicos de células. Elas podem ser oligopotentes (capazes de formar mais de um tipo de tecido) e unipotentes (geram um único tipo). Presentes ainda em muitos tecidos adultos, como músculos, pele, fígado e sistema nervoso, as células-tronco adultas atuam na manutenção desses tecidos, repondo células mortas.

 

O processo de reprodução humana está na raiz da terapia com células-tronco. O maior potencial de cura vem das células totipotentes, originárias de embriões humanos e capazes de se transformar em qualquer tecido, bem como um novo indivíduo, se inseridas em útero. As pluripotentes também podem se tornar qualquer tecido, mas não uma nova pessoa. Já as unipotentes só têm o potencial de formar um único tecido.

 

Em razão da sua maior capacidade natural de diferenciação, as embrionárias seriam as ideais para uso terapêutico. “Em modelos animais, elas se mostraram capazes de regenerar praticamente todos os tecidos e, portanto, poderiam ser utilizadas para tratar muitas doenças”, revela a médica Rosalia Otero, membro do Programa de Terapias Celulares da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Mas ainda não são em pregadas em nenhum estudo clínico no mundo com seres humanos.”

tório de Neurobiologia Celular e Molecular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ, coordenou um estudo clínico que avalia a segurança da terapia celular com células-tronco de medula óssea em pacientes com acidente vascular cerebral (AVC) na fase aguda. “O resultado é que essas células são seguras”, diz. “Agora teremos de fazer um estudo para testar se elas são eficazes, isto é, se trazem benefício aos pacientes com AVC.”

O problema no uso de células-tronco embrionárias é que ele esbarra em questões éticas, religiosas e culturais. Há duas maneiras de obtêlas: a partir de embriões excedentes, nas clínicas de reprodução assistida (fertilização in vitro ou, popularmente, “bebê de proveta”), ou daqueles produzidos, por clonagem, especificamente para fins terapêuticos. “O processo envolve obrigatoriamente a destruição do embrião”, explica Lygia. “No entanto, certas culturas e religiões atribuem ao embrião humano, desde o momento da fecundação, o status de ser vivo, com todos os direitos de uma pessoa já nascida – por isso sua destruição seria inaceitável, e as CTEs têm sido tema de grande polêmica no mundo todo.”

Mesmo que as questões éticas fossem superadas, porém, ainda haveria barreiras técnicas a vencer. A primeira delas se refere à segurança dessas células. A mesma capacidade que elas têm de se transformar em qualquer tipo de tecido para transplante também as torna um perigo. “Quando injetadas em seu estado nativo em camundongos imunodeficientes, as CTEs podem formar tumores compostos de vários tecidos diferentes, chamados teratomas”, explica Lygia. “Assim, antes de injetá-las no paciente (seja ele um camundongo ou uma pessoa), temos de, primeiro, induzi-las no laboratório a se transformar no tipo celular que nos interessa.”

Diante desse quadro, os cientistas têm desenvolvido há algum tempo pesquisas com célulastronco adultas. Uma delas, da Universidade de Düsseldorf, na Alemanha, é uma das primeiras experiências de transplante de CTs retiradas de medula óssea em seres humanos com problemas cardíacos, feita em 40 pacientes que haviam sofrido enfarte agudo. Desses, 20 receberam o transplante e 20 serviram de grupo de controle. Três meses depois, os transplantados mostraram uma melhora do desempenho do coração e uma redução da parte do tecido lesado do órgão.

 

PESQUISAS BRASILEIRAS

No Brasil, o médico Júlio Voltarelli, coordenador da unidade de transplante de medula óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, também tem bons motivos para otimismo. Desde 2001, ele pesquisa transplantes de CTs para tratar doenças autoimunes, como lúpus, esclerose múltipla e diabetes do tipo 1. “De modo geral, tivemos bons resultados em 50% a 70% dos casos, em doenças reumáticas e neurológicas”, conta. “Quanto ao diabetes, conseguimos tirar e manter suspensa a insulina em 11 dos 14 pacientes pesquisados.”

Além disso, o Brasil está fazendo a maior pesquisa do mundo sobre o uso de células-tronco no tratamento de doenças cardíacas. Financiada pelo Ministério da Saúde, é um teste clínico em larga escala, que envolve cerca de 50 instituições do País. Estão sendo tratados com células mononucleares, entre as quais as células-tronco, 1.200 pacientes – 300 com cardiopatia oriunda da doença de Chagas, 300 com coração dilatado, 300 com doença isquêmica crônica e 300 que sofreram infarto. Metade de cada grupo recebe o tratamento e a outra metade serve como controle, tomando apenas placebo.

Segundo o médico e coordenador do estudo, Antonio Carlos Campos de Carvalho, da UFRJ, o trabalho busca avaliar a segurança e a eficácia dessa opção terapêutica para pô-la à disposição das pessoas como alternativa ao transplante de coração. “Queremos saber se o tratamento melhora ou não a função cardíaca”, diz Carvalho, que também é coordenador de Ensino e Pesquisa do Instituto Nacional de Cardiologia, ligado ao Ministério da Saúde. “Os primeiros resultados serão divulgados em breve.”

Mesmo que essa e outras experiências deem certo, ainda vai se passar algum tempo até as CTs se tornarem uma opção terapêutica. As estimativas variam de cinco a dez anos – mas pode demorar muito mais. Quando a Aids surgiu, há mais de 20 anos, também se dizia que seria possível desenvolver uma vacina em pouco tempo, mas a doença ainda é incurável. No caso das moléstias do coração, Carvalho é moderadamente otimista. “Se descobrirmos o tipo ideal de célula-tronco a usar, a melhor via de introduzi-la no paciente e quando isso deve ser feito, poderemos chegar a um tratamento de rotina com CTs dentro de uns cinco anos”, acredita.

Por sua vez, Patrícia chama a atenção para o excesso de otimismo e as promessas milagrosas. “Os pesquisadores sérios devem tomar cuidado para não criar expectativas exageradas nos pacientes”, diz. No caso dos pacientes, ela faz recomendações sobre como evitar cair nas mãos de impostores. “Primeiro, é preciso saber que ainda não existe tratamento e que por enquanto tudo se resume a estudos”, alerta.

Isso não deve, porém, paralisar os cientistas. Mesmo que não venham a se destinar a tratamentos rotineiros, as CTs podem trazer vários benefícios para a humanidade. “As pesquisas com células-tronco não devem apenas ter como objetivo seu uso como agente terapêutico, mas também servir como um modelo em que possamos estudar os mecanismos por trás da diferenciação celular, do desenvolvimento embrionário e do câncer, entre outros”, diz Lygia. “Esses conhecimentos de biologia básica poderão, por sua vez, levar a uma real melhora da qualidade de vida humana.”

Pesquisadora de Cingapura separa o plasma do sangue do cordão umbilical, a fim de armazenar células-tronco e células vermelhas do sangue do bebê para eventual uso no futuro. O método é uma alternativa viável na discussão ético-religiosa sobre o uso terapêutico de células-tronco.

Estima-se que as Células-Tronco se tornem uma opção terapêutica entre cinco e dez anos – mas pode demorar mais