01/03/2008 - 0:00
A partir da década de 1930, migrantes japoneses trouxeram para terras amazônicas seus conhecimentos de agricultura e construção civil e suas tradições, como a da cerimônia do chá.
Foi num mês de maio, no Japão, que Zennoshin Shoji conseguiu dar um dos maiores passos de sua vida: encontrou uma noiva. Uma proeza para quem pretendia partir para a Amazônia. Que pais aceitariam deixar a filha se casar e se mudar para tão longe? Para Zennoshin, este era um sonho que o acompanhava desde a infância e que era compartilhado por outros jovens dispostos a enfrentar o desafio de atravessar o oceano para criar raízes no outro lado do mundo, no coração da mítica floresta brasileira.
Curiosamente, a história da imigração japonesa no Amazonas não começa nesse Estado, e sim no Pará. Um acordo firmado entre o governo paraense e o governo japonês previa a concessão de alguns hectares de terras para imigrantes. Efigênio Salles, então governador do Estado vizinho, preocupado com a falta de perspectivas com a decadência da borracha, aproveitou a idéia e também ofereceu sua parte: um milhão de hectares amazonenses foram destinados a quem se comprometesse a trazer novas opções agrícolas à região.
Em sentido horário: menina na janela do ônibus escolar chega à Escola Nipônica de Manaus, onde as crianças aprendem a língua japonesa – um modo de preservar a cultura dos antepassados; da mesma forma, a ikebana (senhora com flores) e os trajes típicos (chinelos com meias brancas) são valorizados pelos descendentes como uma homenagem aos pioneiros que ali chegaram.
Utilizada na FABRICAÇÃO DE SACOS para a armazenagem de produtos agrícolas,
a JUTA representava grande demanda e produção anual
O acordo era bom para ambos os lados. No Japão, a escassez de terra e o alto crescimento demográfico obrigavam os governantes a estimular o fluxo migratório, comum para os Estados Unidos e o Peru. Mas esses dois países começaram a ter problemas com o excesso de estrangeiros. O Brasil tornou-se então o principal destino. Para a Amazônia, que via o comércio da borracha entrar em decadência sem outras opções de renda que o substituíssem, os japoneses representavam uma salvação. O acordo previa um bem elaborado projeto agrícola, que estudasse cuidadosamente boas alternativas de produtos e formas de manejo.
Linha de montagem da fábrica Honda, no distrito industrial de Manaus. Os descendentes japoneses ocupam cargos de supervisão e inspeção na linha de montagem da CG 125, uma das motos mais vendidas no Norte do País. A Honda está instalada em Manaus desde 1976.
Mas, se em muitos lugares os imigrantes são homens maduros em busca de novos trabalhos, esses japoneses que vieram ao Amazonas tinham uma característica diferente: eram estudantes. Os koutakuseis, como se chamavam, eram jovens com 19 ou 20 anos que participavam da Kokushikan Koutou Takushoko Gakko, a Escola Superior de Imigração, criada especialmente para esse projeto, com aulas de técnicas agrícolas, construção civil e língua portuguesa. Seus objetivos eram bastante claros: cultivar as terras amazônicas com tecnologia e profissionalismo, como bem manda a tradição nipônica.
EM 1930, o responsável pelo projeto, Tsukasa Uyetsuka (ver box à pág. 73), e 20 técnicos – como meteorologistas e agrônomos – fizeram sua avaliação. Escolheram as terras da Vila Batista, batizada por eles como Vila Amazônia, no município de Parintins (a 390 quilômetros da capital), pela facilidade de escoamento da produção tanto para Manaus como para Belém e pelo solo indicado para a cultura da juticultura. Pois foi isso o que os japoneses escolheram plantar em solo brasileiro: a juta.
Utilizada na fabricação de sacos para a armazenagem de produtos agrícolas, como café, a juta representava grande demanda e produção anual, sem a necessidade de se esperar muito tempo pelos primeiros resultados. No dia 20 de junho de 1931, depois de meses atravessando oceanos, chegaram em Manaus os primeiros 35 koutakuseis e três formandos da Faculdade de Agronomia de Tóquio, acompanhados pelo professor Sakae Oti.
Ah… mas quem vem do outro lado do mundo tem de enfrentar as voltas que o mundo dá! A história que parecia tão bem planejada não se mostrou tão eficaz na prática. As sementes de juta, trazidas de São Paulo, não se desenvolveram como o previsto. Por mais que tudo tenha sido cuidadosamente planejado, algo deu errado e as plantas não atingiam a altura mínima para o corte. Os imigrantes, que continuavam a chegar anualmente, começaram a desanimar e Tsukasa Uyetsuka veio pessoalmente falar com eles.
Depois de uma palestra em que tentou convencê-los a continuar no empreendimento, um homem o procurou. Chamava-se Riota Oyama e trazia uma novidade: em suas terras, duas mudas de juta eram diferentes das outras. Tentou transplantá-las para um local mais adequado e apenas uma sobreviveu. Desta, ele tirou as sementes que mudariam os rumos dessa história. Riota Oyama encontrara uma espécie capaz de alta produtividade em terras amazônicas.
No extenso relatório que escreveu anos mais tarde, Uyetsuka assim se expressou: “Pensei que seria sem dúvida uma graça de Deus, e dei ordem para semear as sementes.” Em 1937, nove toneladas de juta foram produzidas na Vila Amazônia. Iniciava-se, enfim, a juticultura no Brasil, que em pouco tempo ocuparia o sétimo lugar na produção mundial.
Foi nesse ano que Zennoshin Shoji enfrentou com bom ânimo os três meses de viagem, ao lado da esposa, Tomoyo, na sétima e última leva de koutakuseis. Hoje com 92 anos, pisca muito os olhos e diz com seu bom humor característico: “Sabe, né? Casado novo, todo cheio de esperança, eu vim no navio namorando. Era feliz demais, apesar de ser imigrante!” Na província de Miagi-Ken, em Sendai, onde nasceu, a falta de recursos provavelmente o condenaria a uma vida de privações ou à emigração forçada para a Manchúria. Mas quem disse que ele estava de fato preparado para a lida na roça? Disposto a realizar seus sonhos, Shoji teve de aprender a carpir, plantar e colher.
A infra-estrutura na Vila Amazônia era precária. Não havia energia elétrica nem água encanada e a maioria das casas era de palha. Mesmo assim, o crescimento econômico repentino – entre 1938 e 1942, 5.573 toneladas de juta foram produzidas – começou a trazer melhorias.
Havia escola, um templo, armazéns e até um hospital, com médicos vindos do Japão, que atendia inclusive pessoas que vinham de Belém. Um plano de imigração como nenhum outro começava a se tornar realidade, dando início a uma história de amor tão bonita quanto o casamento de Shoji e Tomoyo entre o Brasil e o Japão.
EM FEVEREIRO DE 1941, a publicação no Diário Oficial de um decreto presidencial que visava padronizar a produção de “juta indiana cultivada no Brasil” explicitava a importância que esta cultura começava a assumir. Em dezembro desse mesmo ano, do outro lado do mundo, o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor colocava um ponto final na luade- mel: ao envolver-se na Segunda Guerra Mundial, os dois países escolheram lados opostos.
Não que a produção tenha sido interrompida. Durante o período em que durou o conflito, mais e mais toneladas de juta continuaram a ser produzidas. Mas os japoneses perderam o direito à posse da terra, estavam proibidos de fazer reuniões públicas e passaram a ser vistos como inimigos nacionais. O fluxo imigratório foi interrompido.
Muitos dos colonos conseguiram se esconder na mata quando o 27º Batalhão do Exército Brasileiro chegou à Vila Amazônia. Os que não conseguiram foram levados a Tomé- Açu, no Pará, como prisioneiros.
O desastre que veio com a guerra
No cartaz, o desenho de um jovem japonês aponta o dedo indicador para o interlocutor enquanto os ideogramas avisam: emigrar para o Brasil é uma ótima opção para quem tem iniciativa e boa disposição. Isso era parte da maciça campanha que o governo japonês fazia em prol da emigração a partir de 1908.
A guerra, apesar de ter interrompido o caminho promissor que a Vila Amazônia seguia, não foi o suficiente para refrear o impulso migratório japonês para o Amazonas. Nos difíceis tempos pós-guerra, quando mais ainda se tornavam escassas as opções no Japão, muitos imigrantes chegaram.
Foi movido pelo desejo de ver de perto as águas do rio Negro que o pai de Mieko Otani emigrou rumo à desconhecida Amazônia. Era o ano de 1953 quando ele aportou em Manaus, ao lado de mais 102 famílias. Há 36 anos, o trabalho com a criação de galinhas foi o que trouxe estabilidade, depois de várias tentativas, para sua família. Orgulhosa de sua própria trajetória, Mieko mostra o livro comemorativo dos 70 anos de imigração japonesa no Amazonas.
Anos mais tarde, foi a Zona Franca de Manaus que trouxe em sua esteira outra grande leva de imigrantes: 24 empresas japonesas estão estabelecidas na cidade, gerando cerca de dez mil empregos.
Hoje, esses imigrantes e seus descendentes se espalham por Manaus, Iranduba, Colônia Bela Vista, Colônia Efigênio Sales… As crianças freqüentam escolas onde é necessário ser bilíngüe, os adultos praticam o golfe nos finais de semana e os adolescentes jogam beisebol.
Segundo dados do consulado japonês em Manaus, existem hoje cerca de cinco mil pessoas entre japoneses e descendentes em todo o Estado, além dos que se mudaram para o Pará e São Paulo.
No sentido horário, a partir da esquerda, alto: aos 92 anos, o koutakusei Zennoshin Shoji, que chegou ao Brasil em 1937, diz que a Amazônia é sua verdadeira terra; em Iranduba (AM), Hashimoto investe na avicultura; quimono matrimonial de seda bordada (tecido vermelho). E por fim, praticantes de kenjutsu (kendô) – a arte da espada samurai -, em Manaus.
Em setembro de 1942, a Companhia Industrial Amazonense, criada especialmente para comercializar a produção da Vila Amazônia e das colônias agregadas, foi desapropriada pelo governo brasileiro. Desses tempos, Shoji se lembra do dia em que apanhou de um policial com uma tira de couro de peixeboi. “Eu não entendia por que os soldados não gostavam de japonês, né?”
Uyetsuka, o visionário
Entre os anos de 1927, quando assumiu a “Concessão de Terras”, e 1978, quando faleceu, Tsukasa Uyetsuka foi o nome mais citado quando se tratava de emigração japonesa na Amazônia. Nesse período, ele assumiu cargos como o de deputado e o de viceministro da Fazenda. Considerado um visionário, tinha como seu grande projeto instalar uma colônia no Amazonas com dez mil famílias.
Veio ao País várias vezes participar da escolha das terras e acompanhar de perto o desenvolvimento de todo o processo. Foi ele também quem criou a Escola Superior de Emigração e a Companhia Industrial Amazonense para gerenciar e comercializar os produtos do projeto.
No período pós-guerra, Tsukasa Uyetsuka veio pessoalmente conversar com o então presidente, Getúlio Vargas, sobre a retomada do projeto de imigração e a construção de uma fábrica para a fiação da juta, a Tecejuta. Seu ideal era transformar a relação entre japoneses e a Amazônia em um empreendimento de sucesso internacional, fazendo do Brasil um dos maiores produtores mundiais de juta.
Apesar de décadas de dedicação pessoal, a história escolheu rumos diferentes de seus planos. Mesmo assim, Uyetsuka é até hoje reverenciado como o grande incentivador do desenvolvimento do Amazonas.
Muitos desses imigrantes perderam seus bens. Outros se separaram da família. Da Vila Amazônia, cujos bens foram leiloados em 1946 como espólio de guerra, restam hoje algumas ruínas e o cemitério, onde muitos koutakuseis estão enterrados. Tsukasa Uyetsuka ainda tentou, durante a década de 50, retomar os planos e entrou em acordo com o então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, para a construção de uma fábrica de fiação de juta. No entanto, a morte de Vargas, em 1954, pôs fim a mais essa tentativa. Aos 250 estudantes que vieram ao Amazonas pelo projeto, restou deixar para trás os planos estabelecidos e aprender a trilhar sozinhos os seus caminhos.
Como se fizesse um balanço de sua própria vida, Shoji conclui que, apesar de todas as dificuldades, estava correto quando decidiu onde seus olhos rasgados veriam seus filhos crescer. Sentado em uma cadeira de trançado azul, enquanto dois cães brincam atrás da grade que nos deixa ver um quintal com palmeiras, Shoji mira o céu e busca palavras já prontas. Porque já sabe o que quer dizer, já sabe o que sente: “Eu sempre achei que a Amazônia fosse mesmo a minha terra.”