Denise Dietrich descobriu por acaso, aos oito anos, o parentesco com a famosa atriz. Seu avô era primo da alemã.Denise tinha oito anos quando descobriu, por intermédio de uma tia, que era sobrinha-neta da diva alemã Marlene Dietrich . Volta e meia, Ema visitava a família na pequena Resplendor, cidadezinha a 444 quilômetros de Belo Horizonte (MG). Numa dessas visitas, a tia, que não falava português, tocou no assunto. Marlene era prima de Guilherme, o avô de Denise. Nascido Karl Wilhelm Dietrich em 1896, ele chegou ao Brasil por volta de 1923.

Denise não entendeu nada, mas um parente traduziu: os adultos conversavam, em tom de orgulho, sobre a prima famosa. Em casa, o máximo que o pai de Denise, Otomar, dizia era: “Marlene foi a mulher com as pernas mais bonitas do mundo”.

“Nessa época, meu pai falava que Marlene era uma estrela. Mas, como eu já dizia que queria ser atriz, e ele era totalmente contra a ideia, nunca se falou, em português, que Marlene era atriz. Só fui descobrir depois que o meu pai morreu, em 1995. Me senti traída, mas, hoje, entendo sua preocupação”, explica a atriz e dramaturga de 45 anos.

“A profissão de atriz demanda muita força, principalmente de quem não tem herança social ou sobrevivência financeira. Muitas vezes, pensei em desistir. Quero dizer: já desisti várias vezes. Mas, nenhuma delas vingou.”

Denise decidiu ser atriz antes de descobrir que era sobrinha-neta de uma estrela de Hollywood. Quando tinha cinco anos, assistiu, em companhia da mãe, Elena, a novela Roque Santeiro. Até hoje, não se esquece da cena em que João Ligeiro, personagem de Maurício Mattar, é morto a tiros: sentida, desabou no choro! Indignado, o pai proibiu a mãe de ver novela com a filha. Mais do que isso: repetia que ser atriz era “coisa de mulher da vida”.

“Quando via novela, queria estar lá, dentro daquela caixa colorida. Via as cenas e repetia as falas das vilãs – sempre preferi as vilãs! Meu pai me proibia de ver, mas eu achava um jeitinho de burlar. Talvez minha tia-avó já estivesse no meu inconsciente. É difícil fugir de uma vocação”, afirma Denise, que estudou Artes Cênicas na Casa de Artes de Laranjeira (CAL), no Rio de Janeiro, e acabou de lançar o livro Aquele Trem (Editora Patuá), uma autoficção que reúne alguns dos muitos “causos” vividos por ela na pequena e pacata cidade de Resplendor, no interior de Minas.

Trem doido

Na maioria das vezes, uma peça nasce de um livro. No caso de Aquele Trem, Denise primeiro montou o espetáculo e, depois, escreveu o livro. No palco, Denise vasculha lembranças doídas de sua infância: aos seis anos, viu a mãe, então com 32 anos e cinco filhos, ir embora de Resplendor no trem das onze. “Sua mãe viajou e não vai mais voltar”, resumiu o pai em poucas palavras.

Não bastasse a perda da mãe, ainda sofreu o primeiro assédio – um tio de uns 60 anos meteu a língua na boca de uma criança de seis. Daquele dia em diante, toda vez que via o tio, Denise fugia de casa. O pai, sem saber de nada, batia nela. “Preferia assim. Era menos doído vara de goiaba que cheiro de cachaça”, registrou no livro.

“Durante a temporada em São Paulo, recebi mensagens de muitas mulheres. Todas falavam do quanto o solo mexeu com elas. Senti a necessidade de transformar a dramaturgia em romance e atingir um número maior de pessoas. O teatro é potente, mas é efêmero”, observa Denise. “A escrita tem me curado. Escrevo num jorro: às vezes, caio no choro; outras, na gargalhada. Não bloqueio nada. Tem dor, tem catarse, mas, também, tem humor e alívio. Depois de escrever, trato tudo na psicanálise.”

Denise ainda não sabe se vai encenar Aquele Trem em Resplendor. “Tenho receio. Não sei se alguém da ‘cidade pequena demais’ já leu o livro”, diz. Apesar do abandono e do assédio, guarda boas recordações da infância. Principalmente da casa onde morou. Casa essa que, por causa da construção de uma usina hidrelétrica, não existe mais.

“A única coisa que restou foi o pé de jaca”, recorda. Mas, sua juventude em Resplendor, avisa, é tema do próximo livro, ainda sem previsão de lançamento: “Vou aprofundar a vida na roça depois que o meu pai morreu”.

À frente de seu tempo

Dos incontáveis filmes estrelados pela tia-avó, Denise elege Testemunha de Acusação (1957), adaptado por Billy Wilder a partir da obra homônima de Agatha Christie, como o seu favorito. Mas, “a mulher com as pernas mais bonitas do mundo”, como dizia seu pai, trabalhou com outros cineastas famosos, como Alfred Hitchcock, em Pavor nos Bastidores (1950); Fritz Lang, em O Diabo Feito Mulher (1952); e Orson Welles, em A Marca da Maldade (1958). Em Marrocos (1930), apareceu vestida de smoking e deu um selinho em outra mulher.

“Em 1936, Marlene Dietrich enfrentou o regime nazista. Nessa época, recusou convites para voltar para a Alemanha e ser a garota-propaganda do Terceiro Reich. Ali, se colocou como um exemplo de mulher, e um exemplo de como os artistas são importantes para combater o ódio em tempos difíceis”, derrama-se. “Marlene era comprometida com a liberdade em tudo que fazia. A liberdade de ser autêntica e de permitir que os outros também fossem.”

Marlene Dietrich visitou o Brasil uma única vez: entre julho e setembro de 1959, a diva se apresentou no Rio e em São Paulo. Foram, ao todo, dez apresentações: cinco no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, e cinco no Teatro Record, em São Paulo. Acompanhada do pianista Burt Bacharach, cantou em quatro idiomas: inglês, francês, alemão e português. Ainda em Nova York, decidiu incluir Luar do Sertão no repertório.

No livro Bastidores (2001), o jornalista Rodrigo Faour relata que foi Cauby Peixoto, então com 28 anos, quem ajudou Marlene a ensaiar a canção. “Fui com um violonista e comecei. Conforme eu cantava, ela ia decorando a melodia”, lembra o cantor no livro.

Toalete improvisado

Para cantar no Brasil, Marlene fez algumas exigências. Em primeiro lugar, nenhuma bailarina poderia levantar a perna mais alto do que ela. Além disso, não queria ser fotografada a menos de três metros de distância. No livro Memórias de Um Maître de Hotel (1983), Fery Wünsch conta que, antes de subir ao palco do Golden Room do Copacabana Palace, a cantora o chamou em seu camarim e solicitou um balde de gelo com areia. Como a diva usava um vestido apertado, que a impedia de ir ao banheiro, ela usaria o balde, em caso de necessidade, para fazer xixi.

Até onde se sabe, Marlene não fez coletiva de imprensa no Brasil. Mas isso não a impediu de matar a curiosidade de alguns repórteres. Na chegada ao Rio, no dia 24 de julho de 1959, um jornalista quis saber: “Quais as suas primeiras impressões do país?”. Marlene devolveu a pergunta: “O senhor já encontrou alguém que lhe dissesse não estar feliz ao chegar ao Brasil?”. No aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, um repórter perguntou: “Qual é o segredo de sua juventude?”. “Trabalhar, trabalhar, trabalhar”, respondeu ela, antes de seguir para Buenos Aires.

Em 1975, durante uma apresentação em Sydney, na Austrália, Marlene sofreu uma queda, fraturou o fêmur e se aposentou dos palcos. Três anos depois, faria seu último filme: Apenas Um Gigolô (1978), de David Hemmings. No longa, Marlene Dietrich e David Bowie não chegaram a contracenar. Ela rodou suas cenas em Paris, onde morava, e ele, em Berlim, como o restante do elenco. A tia-avó de Denise morreu no dia 6 de maio de 1992, aos 90 anos, em Paris.