19/01/2021 - 11:56
Falta de coordenação entre autoridades, reação lenta e incentivos à circulação de pessoas enquanto nova variante circulava fizeram o ar faltar em hospitais. Ministério Público apura responsabilidades pelas mortes.A falta de oxigênio medicinal em Manaus, que provocou a morte de vários pacientes de covid-19 e obrigou a remoção de dezenas para outros estados, chocou o Brasil e outros países ao mostrar pessoas morrendo por asfixia no meio da floresta que produz oxigênio em abundância.
A crise do gás chegou às manchetes na quinta-feira (14/01), mas já era do conhecimento dos governos federal e estadual e da empresa responsável pelo fornecimento ao estado dias antes de eclodir. O resultado trágico revelou falta de coordenação e decisões erradas de autoridades que menosprezaram o perigo da pandemia e de uma nova cepa do vírus, mais transmissível, em circulação na capital manauara, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.
Manaus foi a primeira capital brasileira fortemente afetada pelo coronavírus, em abril e maio de 2020, quando a cidade enfrentou explosão de casos, superlotação de hospitais, e cemitérios abrindo valas comuns para enterrar as vítimas da doença. A partir de junho, o número de casos caiu, mas voltou a subir em setembro e se acelerou em dezembro.
Com os dados em mãos que apontavam para um novo colapso, o governador do estado, Wilson Lima (PSC), editou em 23 de dezembro um decreto determinando o fechamento do comércio não essencial a partir do dia 26 de dezembro e proibindo eventos comemorativos. O presidente Jair Bolsonaro definiu a medida como absurda e, no dia que as restrições entrariam em vigor, protestos contra as novas regras bloquearam vias da cidade. Lima, que é próximo do presidente, voltou atrás em sua decisão e autorizou que o comércio seguisse funcionando.
Enquanto boa parte da população seguia se expondo a contatos sociais, uma nova cepa do vírus, com uma mutação na proteína usada para se conectar a células humanas que o torna mais transmissível, circulava por Manaus. Como previsto, a combinação de comércio funcionando, festas de final de ano e a nova cepa do vírus fez a situação explodir em janeiro.
A falta de oxigênio
Antes da pandemia, o consumo diário de oxigênio medicinal no Amazonas era de cerca de 14 mil metros cúbicos, plenamente atendido pela única fabricante do gás no estado, a White Martins, cuja planta, em condições normais, é capaz de produzir 25 mil metros cúbicos por dia. A capacidade local de produção é determinante porque a capital do Amazonas não é ligada ao resto do país por estradas pavimentadas, e suprimentos devem chegar por balsa ou avião.
Durante o primeiro pico de internações, no primeiro semestre de 2020, o consumo de oxigênio alcançou 30 mil metros cúbicos por dia, mas não houve escassez devido ao estoque do produto e a outras duas empresas menores que também distribuem o gás no estado, a Carbox e a Nitron. Após a emergência de abril e maio, o consumo de oxigênio no Amazonas voltou à casa dos 15 mil metros cúbicos por dia.
Em 23 de novembro do ano passado, a Secretaria de Saúde do Amazonas previu que a demanda pelo gás cresceria devido à alta dos casos de covid-19 e que o contrato do governo com a White Martins não seria suficiente para atendê-la, conforme afirma um projeto para compra adicional de oxigênio revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Apesar do ofício dos técnicos da pasta, o governo não buscou um novo contrato ou questionou a White Martins sobre sua capacidade de produção.
O alerta se confirmou. A rápida alta de casos e internações por covid-19 pressionou a demanda por oxigênio no estado, que em janeiro chegou a 76,5 mil metros cúbicos por dia, 51,5 mil metros cúbicos a mais do que a planta da White Martins era capaz de produzir.
Em nota ao Estado de S. Paulo, a White Martins informou que, até o dia 30 de dezembro, “não havia indícios de aumento exponencial do consumo de oxigênio em Manaus”, e que em 1º de janeiro a empresa tinha em estoque oxigênio para suprir os hospitais da capital por sete ou oito dias no nível de consumo verificado em dezembro.
Segundo a empresa, a situação começou a ficar dramática em 2 de janeiro. Nesse dia, a White Martins percebeu “um crescimento anormal” do consumo de oxigênio e iniciou uma operação para trazer o gás de suas plantas em outros estados. Em 4 de janeiro, a companhia começou a deslocar estoques de oxigênio para Manaus por balsa, a partir de Belém.
Em 7 de janeiro, a empresa informou o governo do Amazonas sobre a impossibilidade de seu fornecimento acompanhar o aumento da demanda dos hospitais. A DW Brasil questionou a White Martins se houve alguma comunicação anterior a essa data, mas não houve resposta até a publicação deste texto.
Ritmo da reação
Após a eclosão da crise, a Secretaria de Saúde do Amazonas informou que, antes do dia 7 de janeiro, desconhecia que a capacidade máxima produtiva da planta de Manaus da White Martins era de 25 mil metros cúbicos por dia. E o governador disse que o consumo de oxigênio do estado saltou de 15 mil para 75 mil metros cúbicos em menos de 15 dias.
Em 8 de janeiro, o Ministério da Saúde foi informado que a produção de oxigênio em Manaus não daria conta de suprir a demanda dos hospitais. Ou seja, o governo federal soube com seis dias de antecedência que a crise eclodiria. A informação consta de um ofício enviado pela Advocacia-Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) começaram a transportar cilindros de oxigênio em gás para Manaus no dia 8, em quantidade muito inferior à demanda diária. A forma mais eficaz de transporte de oxigênio é na forma líquida, que demanda mais requisitos de segurança para o transporte aéreo, iniciada apenas no dia 13. Segundo a FAB, cada litro de oxigênio líquido corresponde a cerca 860 litros de oxigênio gasoso, após ser convertido nos hospitais.
Entre os dias 11 e 13 de janeiro, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, esteve em Manaus para, entre outros pontos, promover o tratamento precoce contra a covid-19 com remédios como a cloroquina e a ivermectina, que não têm eficácia comprovada. No dia 11, em evento em Manaus, Pazuello afirmou que tinha conhecimento da crise do oxigênio da cidade naquele momento: “Estamos vivendo crise de oxigênio? Sim”, disse.
Naquele momento, o estado seguia recebendo quantidades de oxigênio muito inferiores à demanda diária. No dia 11, chegaram a Manaus 50 mil metros cúbicos de oxigênio em gás de Belém por balsa, e no dia 13, 22 mil metros cúbicos em gás por via aérea.
A crise eclodiu no dia 14, quando o estoque de oxigênio acabou em diversos hospitais de Manaus, e pacientes internados por covid-19 morreram. Um médico local disse à imprensa que pelo 41 pessoas haviam morrido devido à falta do gás, mas o número não foi confirmado pela Secretaria de Saúde estadual. O Ministério Público do Estado apura a quantidade de mortes.
A pressão nacional para levar mais oxigênio a Manaus cresceu. A White Martins conseguiu elevar sua produção diária na cidade para 28 mil metros cúbicos; no domingo (17/01) a FAB centralizou o transporte de oxigênio líquido a partir de Brasília para ganhar agilidade; e uma carreta com 107 mil metros cúbicos de oxigênio doados pela Venezuela chega à capital manauara nesta terça-feira (19/01).
Responsabilidades envolvidas
A gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) é compartilhada entre prefeituras, estados e governo federal, e o envolvimento de cada nível de governo nos leitos para pacientes de covid-19 varia de acordo com o país.
Em Manaus, a prefeitura tem um papel minoritário no atendimento desses pacientes, segundo João Otacilio Libardoni dos Santos, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e conselheiro do Conselho Estadual de Saúde do Amazonas. O poder municipal não gerencia leitos de internação da doença, e os hospitais públicos que atendem aos infectados pelo coronavírus são administrados pelo estado e pelo governo federal.
Na avaliação de Santos, houve falta de planejamento do governo estadual e do governo federal, que reagiram de forma “lenta e desorganizada” à crise. Ele afirma que o estado não fiscalizou de forma efetiva o cumprimento das regras que disciplinam o funcionamento do comércio na pandemia e relaxou as medidas de distanciamento social no momento errado.
Outro aspecto que contribuiu para o colapso, afirma, foi o “negacionismo” sobre a gravidade da pandemia e da necessidade de medidas de distanciamento, tanto no nível estadual como no federal. “A proposta de lockdown [em dezembro] tinha que ter sido mantida. Já havia dados indicando que o caos iria se instaurar, temos um vírus agora que demonstra contaminar mais”, diz.
Santos diz que o risco de desabastecimento de oxigênio em Manaus ainda existe, e que na segunda-feira (18/01) familiares dos pacientes ainda enfrentavam filas “de 6 a 10 horas” para conseguir encher cilindros para pacientes sob cuidados domésticos. “Todo o oxigênio que está chegando está suprindo a demanda imediata. Não temos um quadro tranquilo nem estável, a quantidade de internações continua aumentando”, diz.
Vanja dos Santos, conselheira do Conselho Nacional de Saúde e moradora de Manaus, afirma que a falta de coordenação entre os níveis municipal, estadual e federal contribuiu para o caos e que têm faltado recursos para o sistema de saúde local.
Ela também culpa autoridades estaduais e federais pela desinformação a respeito da covid-19, o que teria incentivado a população a circular como se não houvesse pandemia. E diz que a redução do valor do auxílio emergencial a partir de outubro e seu fim, em janeiro, estimula as pessoas a saírem de casa para buscar renda.
O Ministério Público do Estado do Amazonas está apurando as responsabilidades pelas mortes por falta de oxigênio nos hospitais. No sábado (16/12), os promotores solicitaram informações sobre o caso à White Martins e ao governo do Amazonas, bem como a identificação das pessoas que morreram devido ao colapso no fornecimento do gás nos hospitais.
Em outra ação cautelar, ajuizada no dia 14 pelo Ministério Público do Estado em conjunto com o Ministério Público Federal, o Ministério Público de Contas, a Defensoria Pública do Estado e a Defensoria Pública da União, os autores afirmam que cabe à União coordenar as atividades do SUS, e que os três níveis de governo respondem conjuntamente pela assistência à saúde.
Jogo de empurra das autoridades
No dia 12, dois dias antes da eclosão da crise e ciente dos problemas no fornecimento do gás, Bolsonaro responsabilizou o governo do Amazonas e a prefeitura de Manaus por “deixar acabar” o oxigênio que seria destinado aos pacientes de covid-19, ao conversar com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada.
O presidente também afirmou que Pazuello tinha ido à cidade para “interferir” na gestão da crise e que a situação de saúde na capital manauara estava “um caos”. E disse que a cidade não estava aplicando o “tratamento precoce” contra a covid-19, que não tem comprovação científica, o que segundo ele teria contribuído para a situação dramática.
Em transmissão ao vivo em redes sociais no dia 14, ao lado do presidente, Pazuello afirmou que o governo federal estava contribuindo com soluções para a falta de oxigênio, mas que a responsabilidade pela ação em Manaus era do governo e da prefeitura. E voltou a recomendar o tratamento precoce para combater a covid-19. Na segunda-feira (18/01), em entrevista coletiva em Brasília, Pazuello isentou o governo federal de responsabilidade pela crise em Manaus. “Fizemos tudo o que tinha de fazer”, disse.
O governador do estado, Wilson Lima, tem afirmado que não sabia das limitações de produção de oxigênio antes do dia 7, e que sua gestão tem feito o possível para contornar a falta do gás. Nesta segunda-feira, ele participou da entrevista ao lado de Pazuello e agradeceu, “em nome do povo do Amazonas”, o “empenho” do ministro e de sua equipe para tentar solucionar a falta de oxigênio no estado.
No dia 14, o recém-empossado prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), afirmou que a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus era decorrência do isolamento geográfico da cidade e da falta de estradas pavimentadas que a conectassem ao resto do país. No dia seguinte, à rede CNN, afirmou também que a rede pública manauara seria “refém do monopólio” da White Martins no estado.