04/11/2021 - 8:46
Entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), Machado de Assis (1839-1908) e Joaquim Nabuco (1849-1910) tinham argumentos diferentes na hora de colocar critérios sobre quem deveriam ser os ocupantes das 40 cadeiras da instituição.
O primeiro defendia um recorte exclusivamente literário. “[Por outro lado,] Nabuco compreendia que diversas áreas, claro, com qualidade literária [deveriam ter espaço]. A Academia deveria abrir suas portas para todos que se destacassem em áreas específicas desde que tivessem a publicação de [ao menos] um livro e todo um percurso reconhecido no campo intelectual”, explica o poeta, escritor, tradutor e professor universitário Marco Lucchesi, atual presidente da ABL.
Machado perdeu a queda de braço, e o estatuto publicado na fundação da casa, em 28 de janeiro de 1897, – vigente até hoje – exige que os chamados imortais “tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”.
É por isso que a ABL, ao longo de sua história, reuniu entre seus confrades pessoas que, mesmo autores de um ou mais livros, não são e nem foram necessariamente reconhecidos como escritores. O cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1926-2016) ocupou a cadeira 22 e o inventor Santos Dumont (1873-1932) foi eleito para a 38. Também se tornaram acadêmicos os empresários da comunicação Assis Chateaubriand (1892-1968) e Roberto Marinho (1904-2003), e o ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954). No rol de políticos, aliás, fulguram na casa hoje os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.
Neste mês de novembro, duas figuras de renome cultural no Brasil devem ser eleitas para as cobiçadas vagas da ABL, no estilo defendido por Nabuco: reconhecidos no campo intelectual, não são essencialmente escritores. Nesta quinta-feira (04/11), a atriz Fernanda Montenegro, candidata única, deve ser confirmada para a cadeira 17. Na semana seguinte, o músico Gilberto Gil é favorito a vencer a eleição para a cadeira 20.
Fama entre os imortais
Nos bastidores da instituição, o período eleitoral é dominado por conversas ao pé do ouvido. Quando há candidaturas tão famosas, esses burburinhos tendem a ser ainda maiores – embora na frente dos holofotes ninguém goste de comentar nada. “É claro que figuras populares têm um poder midiático [para a ABL], isso é inegável. Ao mesmo tempo, não podemos perder o foco: somos escritores em um país que pouco lê”, comenta um dos acadêmicos, que pede para não ter seu nome identificado.
Lucchesi enfatiza que não comenta sobre nomes de candidatos. Mas lembra que a entidade não precisa emprestar prestígio de ninguém. “A Academia tem uma larga tradição. Foi casa de Machado, de Guimarães Rosa, de Manuel Bandeira, de Darcy Ribeiro… Tem um lastro importante e inquestionável”, afirma.
Pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina, a historiadora Cristiane Garcia Teixeira contextualiza que o “ideal estritamente literário” da ABL se perdeu em 1912. “[Na ocasião] a eleição do engenheiro militar Lauro Miller abriu possibilidades para que esses ‘notáveis de outras áreas’ fizessem parte da instituição”, conta ela.
Por outro lado, o critério do livro publicado foi quebrado já na primeira formação da confraria. “É curioso: o estatuto interno da ABL foi contrariado a partir da sua fundação”, aponta o publicitário Felipe Rissato, pesquisador independente que já descobriu vários textos então desconhecidos de Machado de Assis.
O pesquisador frisa que Graça Aranha (1868-1931) integrou a casa antes de publicar seu primeiro livro, Canaã, de 1902. “Ele chegou a declinar do convite [para fazer parte do grupo] justamente por isso, mas foi convencido por Machado de Assis e Lúcio de Mendonça a aceitar”, explica Rissato.
Funções da ABL
“A princípio, a criação da ABL tinha como objetivo o reconhecimento da criação literária, a defesa da atividade do escritor e da literatura, a busca por respeito e pelo lugar deles na sociedade, por serem representantes da cultura nacional e, segundo Machado de Assis, manter a tradição literária para que ela perdurasse e fosse contada e transmitida nas páginas da “vida brasileira”, explica a historiadora Teixeira.
Em seu discurso inaugural, Machado de Assis declarou que a Academia nascia com a função de “conservar, no meio da federação política, a unidade literária”. Organização privada sem fins lucrativos, a instituição teve papel importante nos acordos ortográficos de 1945 e 1990 e constantemente dialoga com academias de outros países de língua portuguesa. Lucchesi destaca ainda uma série de eventos realizados, de conferências e palestras a veiculação de podcasts.
A ABL publica o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, ferramenta que serve para sistematizar e dirimir dúvidas a respeito de grafias, prosódias e outras características do idioma – a sexta edição, disponível on-line, soma 382 mil entradas.
Ao longo da pandemia, a instituição articulou para que livros fossem incluídos em campanhas de doação de cestas básicas e utilizou seu site para postar informações de conscientização acerca da gravidade da covid-19. “A Academia sempre se manifestou contra o negacionismo”, diz o presidente dela.
Falta de diversidade
Se a instituição parece preocupada em abrir as portas para nomes mais pop, é visível a falta de diversidade entre os imortais: a ABL é, basicamente, um grupo formado por homens brancos – atualmente, há apenas cinco mulheres.
Em 2006, quando foi eleito, o professor e ensaísta Domício Proença Filho foi questionado por uma repórter se ele seria o símbolo atual da etnia negra na instituição. Respondeu que não, alegando que não era “representante e sim representativo”, cobrou que essa representatividade seja ampliada e, na mesma ocasião, afirmou que não era “um negro escritor e sim um escritor negro”.
Proprietário da Editora Patuá, que já publicou livros de Marco Lucchesi e prepara uma obra do também acadêmico Carlos Nejar, o editor Eduardo Lacerda reconhece a importância da ABL, mas também cobra uma maior representatividade.
“A ABL, neste momento, não representa o país, sua diversidade, a diversidade de escritas etc.”, enumera. “Mas seus membros, de forma individual, são muito importantes para a literatura e para o país. Além disso, há muitas atividades ali, eventos, conferências, cursos, palestras, oficinas, bate-papos, discussões que são muito importantes.”
Ao mesmo tempo, Lacerda lembra que a ABL é uma instituição pública, portanto, “apesar do distanciamento da sociedade, ela não se vê na obrigação de representar nada”.
“E nada impede que uma outra academia, mais democrática e mais diversa, possa surgir. Espanta-me que nunca tenha surgido uma dissidência, grupos organizados de escritores e escritoras que pudessem mostrar um outro caminho, uma outra forma de conduzir uma academia. O que os impedia, o que nos impede?”
Lucchesi recorda que o que une os acadêmicos é o “sonho de Machado de Assis”, dos demais fundadores e “das gerações que se colocaram na Academia”. Para ele, a ABL sintetiza “uma forma profunda de realizar o diálogo com o respeito da própria alteridade”. “As instituições culturais trabalham pelo desejo de se manifestarem, promoverem o diálogo, a cultura do encontro”, afirma.