13/02/2025 - 9:21
Constituição “não pode dar proteção” a municípios para entrar com processos contra empresas brasileiras no exterior, diz advogado do Ibram à DW.O julgamento do rompimento da barragem de Mariana no Reino Unido, iniciado em outubro do ano passado e prestes a entrar em fase final no próximo mês, é um dos muitos casos recentes em que vítimas de desastres ambientais no Brasil recorrem à justiça no exterior em busca de reparação.
Além de Mariana, também procuraram cortes estrangeiras os afetados pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, pelas atividades de mineração de sal-gema em Maceió, pelo naufrágio do navio Haidar, no Pará, e outros.
Mas, enquanto se desdobram em terras estrangeiras, essas ações têm sido questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF). No centro do debate está a possibilidade ou não de municípios brasileiros afetados, como Mariana, participarem dessas causas como demandantes nas ações.
Em junho do ano passado, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) ajuizou uma ação no STF, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1178, contra esse tipo de processo. A entidade – que representa empresas da mineração como a Vale e a Samarco – alega que a conduta fere a soberania nacional e é inconstitucional.
Em outubro, mesmo mês em que teve início o julgamento do caso Mariana na corte britânica, o STF determinou que os municípios apresentassem os contratos com escritórios de advocacia em outros países. Por meio de liminar, impediu também os entes públicos municipais de pagarem honorários de contrato de risco nessas ações. Esses honorários também são chamados de honorários de êxito, já que o contrato é remunerado apenas se “entregar” os resultados previstos – como uma garantia dada ao contratante de que haverá sucesso.
De acordo com os advogados do Ibram, a lei brasileira diz que a pessoa jurídica de direito internacional é a União e, portanto, apenas ela pode representar o Brasil no exterior. Por isso, seria inconstitucional que os municípios entrem com as ações fora do país.
Em entrevista à DW, o advogado do Ibram e presidente do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), Walfrido Warde, explica o que motivou o instituto a entrar com a ação e faz críticas aos contratos celebrados entre as cidades e o escritório de advocacia britânico Pogust Goodhead, representante das vítimas brasileiras da tragédia de Mariana. Em entrevista à DW, o advogado galês responsável por levar o caso ao Reino Unido, Thomas Goodhead, defendeu a ação no exterior, além de acusar as mineradoras de agirem de maneira coordenada para minar o julgamento inglês.
Apesar de não se manifestar diretamente sobre o acordo realizado entre empresas e o governo brasileiro, Warde, do Ibram, ressalta a expressividade do valor (R$ 170 bilhões – deste montante, as mineradoras alegam já ter desembolsado R$ 38 bilhões por meio da Fundação Renova, fruto de um compromisso firmado em 2016 pelas próprias empresas).
Além disso, Warde diz que ações no exterior são uma afronta à Constituição Federal. “Isso viola, além da soberania nacional, as competências prerrogativas dos municípios, e afronta o sistema de justiça brasileiro. É um menoscabo a toda a tutela de direitos coletivos no Brasil, que é muito sofisticada e é muito eficaz”, alega Warde.
DW Brasil: Para vocês, por que a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão deveria ser decidida no Brasil?
Walfrido Warde: O Ibram, em nenhum momento, moveu uma ação para dizer que o acordo devia ser feito em um lugar ou em outro. O que para o Ibram sempre foi e sempre será causa de estupefação e de contrariedade, e que motivou o ajuizamento da ação constitucional, é o fato de municípios brasileiros, que são entes da administração, irem demandar fora do país. Eles não podem fazer isso. No contexto dessa ação constitucional, o Ibram pediu uma liminar para conhecer os contratos celebrados pelos municípios com o escritório inglês Pogust Goodhead.
E por quê? Porque o Ibram tinha informações de que havia indícios de irregularidades nesses contratos. Havia indícios de que esses municípios receberam adiantamentos de dinheiro do escritório. Pior do que isso, contrataram sem licitação o escritório. Pior do que isso, contrataram honorários variáveis em êxito. Pior do que isso, contrataram honorários que seriam recebidos não pelo escritório, mas por uma empresa offshore. Então, o que o Ibram pediu? Que esses contratos fossem apresentados.
E foi então que o relator, ministro Flávio Dino, deferiu esse pedido e levou a referendum do plenário da Suprema Corte. [Foi] referendado por sete votos a dois com uma abstenção por impedimento do ministro Cristiano Zanin. Portanto, por maioria esmagadora, a Suprema Corte determinou que municípios que contrataram o escritório apresentassem os contratos, que foram sendo apresentados, um a um.
O principal município, que é Mariana, recebeu um adiantamento de R$ 6 milhões. Isso é, no mínimo, estranho. Ou seja, um escritório estrangeiro que vem ao Brasil e paga para o município para advogar em seu favor, adianta honorários, adianta a indenização que futuramente poderá ser recebida para o município. E isso aconteceu com todos os municípios.
Aí nós verificamos também que todos os municípios contrataram sem licitação e que quase todos, ou todos, contrataram honorários de êxito. E quase todos aceitaram receber de uma empresa, caso a indenização seja paga lá na Inglaterra, sediada em um paraíso fiscal.
E, sim, é de interesse do Ibram que os assuntos brasileiros, que envolvem municípios brasileiros e empresas brasileiras, sejam resolvidos pelo sistema de justiça do Brasil, que não é um sistema de justiça qualquer.
A despeito das críticas que se fazem contra o sistema de justiça brasileiro, o fato é que ele é organizado, célebre, digitalizado. Ele levou à realização de um acordo de R$ 170 bilhões em favor das vítimas, que poderão certamente optar por aderir a esse acordo, aquelas que quiserem, ou tentar sua sorte na Inglaterra.
Uma das principais críticas aos processos no exterior contra empresas causadoras de danos ambientais no Brasil é de que eles estariam ferindo a soberania nacional. Por que julgamentos como o de Mariana na corte britânica estariam ferindo a soberania nacional?
Não é o processo em si que fere a soberania nacional. É óbvio que o alargamento da jurisdição de cortes estrangeiras para julgar fatos que aconteceram em outros países, o alargamento da competência de uma corte inglesa para julgar o fato que aconteceu no Brasil, desde logo mostra uma tendência quase que imperial desse sistema de justiça, de achar que julga melhor e que pode decidir questões de outros países. Mas o problema maior não é esse.
A afronta à soberania se dá quando o Estado brasileiro renuncia a todo o aparato de justiça que ele edificou, que ele exigiu e está construído e posto na Constituição Federal. A soberania é uma expressão da autodeterminação, os brasileiros determinarem o seu próprio destino. A autodeterminação é eleger representantes do povo que exerçam um poder que é do povo, pelo povo e para o povo. Bom, esses representantes criaram o sistema de justiça. Esse sistema foi feito para pacificação social e resolver conflitos entre brasileiros e no Brasil, sobretudo.
Quando o próprio Brasil despreza o sistema de justiça e diz que sistema de justiça bom é o inglês, o que se faz é uma afronta à soberania.
Em artigo de opinião publicado na Folha de S. Paulo em meados do ano passado, vocês dizem que o objetivo da ação no Reino Unido parece ser “tomar a Vale” do Brasil. Mas a Vale não é ré no processo britânico desde julho de 2024, quando assinou acordo para deixar a ação. Com base em que você acredita que o interesse do julgamento no exterior é esse?
O resultado dessa decisão fora do país atinge a companhia Vale. O pedido lá é um pedido cujo valor é maior do que o valor de mercado da Vale, ou pelo menos era maior na época em que nós escrevemos o artigo. BHP e Vale têm ajustamento de compartilhamento, até onde nós sabemos com informações da imprensa, de despesas com essas questões todas. Então, estando ou não estando [na ação], até onde nós sabemos, uma decisão lá tem impacto na Vale aqui.
E o que o artigo diz, ele diz mais, que nos causa estranheza a obscuridade, a falta de transparência no financiamento dessa ação. Quem é que deu esse dinheiro? Ah, foi um fundo. Sim, mas quem está por trás desse fundo? Quais são os interesses? Porque, de fato, essa ação, como disse o próprio advogado chefe do escritório inglês, tem como base o valor de mercado da Vale, e poderá render a zero o valor dessa companhia, que é uma companhia importantíssima no Brasil, porque detém a maior mina de ferro do mundo, que é Carajás.
Nós, no Brasil, temos a teimosia de sermos ingênuos em relação às nossas próprias riquezas e em relação aos nossos próprios interesses.
Quais seriam, para você, os motivos pelos quais existem essas ações no exterior contra mineradoras e empresas que atuam na mineração no Brasil?
Seria uma opinião pessoal nossa que desborda os limites da nossa representação pelo Ibram. Eu acho que não é o caso de a gente elucubrar, nós não temos nem direito de elucubrar sobre as razões. As razões ditas pelo escritório inglês é de ajudar o povo, de ressarcir o máximo às pessoas.
Todavia, se fosse essa a intenção, estaríamos ao menos parcialmente felizes com a repactuação que montou a R$ 170 bilhões. Agora, qual é a finalidade específica? Seria impróprio que nós, advogados, elucubrássemos a finalidade específica que alenta o escritório inglês e o fundo internacional.
O Ibram recorreu ao STF para impedir que municípios brasileiros entrem com ações no exterior, alegando que isso seria inconstitucional. Por que esse tipo de movimento jurídico seria inconstitucional, do ponto de vista do Instituto?
A gente, às vezes, tem um pensamento, uma cabeça colonizada, e não acha tão absurdo quando o protagonista do absurdo é o Brasil. Esse é um absurdo. A Constituição brasileira não pode dar proteção, nem dar fundamento a que um ente da administração, que é o Estado brasileiro, entre com uma ação contra uma empresa brasileira, por um dano que essa empresa causou no Brasil, em outro país.
E o que é pior, a justiça brasileira e o sistema de proteção de direitos coletivos e difusos no Brasil são tão mais ou mais sofisticados do que os ingleses. O ponto é que o município brasileiro não pode, segundo a nossa Constituição, demandar empresas brasileiras, por danos que essas empresas brasileiras causaram a brasileiros, ao meio ambiente do Brasil, a empresas brasileiras e a municípios brasileiros, fora do Brasil.
Porque, se puderem, então nós temos que rasgar a Constituição, nós temos que deixar de nos chamar de brasileiros, deixar de chamar esta terra de Brasil, e nos submetermos a outros países, à administração de outros países. E tudo o que nós construímos nesses 500 anos tem que ser jogado no lixo, porque, enfim, não vale absolutamente nada.
O Ibram não tem nada a ver com o acordo, com danos, com a ação na Inglaterra. O que entendemos, na condição de entidade da sociedade civil, é que é muito ruim para a segurança jurídica no Brasil, muito ruim para o país, que a Constituição seja afrontada numa situação como essa.
O sistema de justiça brasileiro tem problemas como qualquer outro. Nós não vamos admitir, e aí enquanto advogados, enquanto brasileiros e governadores do direito, que digam que o sistema de justiça brasileiro não presta, que ele é enviesado, que ele é incapaz, porque é mentira. Isso realmente não dá para aceitar.
O início do julgamento do caso Mariana na Inglaterra influenciou, de alguma forma, essa ação no STF ou a repactuação, no Brasil, do acordo de reparação de danos causados pela tragédia?
O acordo que foi ultimado agora se arrastava por alguns anos e a administração atual, o presidente Lula, o advogado-geral da União, o ministro Jorge Messias, o presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro [Luís Roberto] Barroso, se esforçaram grandemente para que essa repactuação fosse ultimada. Se isso tem a ver ou não com a ação na Inglaterra, a DW precisa perguntar para eles. Nós não podemos responder por isso.
Com relação à ação do Ibram, tem tudo a ver.
A ADPF do Ibram só foi ajuizada porque municípios brasileiros ajuizaram a ação na Inglaterra. O Ibram só ajuizou a ADPF porque uma ação inconstitucional aconteceu na Inglaterra. Uma medida que viola a Constituição e a soberania do Brasil.
O começo de março é o prazo para adesão dos municípios ao acordo firmado no Brasil. O Ibram vem, de alguma forma, dialogando com representantes dessas cidades? Se sim, o que tem sido dito a eles?
Essa questão é indiferente [para o Ibram]. Para o Ibram, a única coisa que importa é a tese posta na ação constitucional que tramita no STF. Todo o resto é alheio ao interesse e à atuação do Ibram. E não, o Ibram não tem qualquer diálogo para fazer, para saber de acordo, claro que não.
Pergunto isso porque, no começo da entrevista, você falou que havia indícios de que os contratos [com o escritório britânico] teriam cláusulas que ferem a Constituição…
São coisas diferentes, que aconteceram em momentos diferentes. O ajuizamento da ação se dá por conhecimento do fato de que municípios brasileiros estavam demandando empresa brasileira, por fato acontecido no Brasil, na Inglaterra. No curso dessa ADPF, depois que ela começa a tramitar, a imprensa brasileira deu notícias de que esses municípios teriam recebido adiantamento em dinheiro e que teriam contratado fora do regime de licitação o escritório. Então, nós formulamos um pedido liminar de tutela incidental [mecanismo jurídico que pode usado com o processo já em andamento, para que não haja decisões intermediárias antes do fim definitivo do processo]. Nós só lidamos com fatos públicos.
Mesmo com a atualização dos valores no acordo, o Movimento dos Atingidos por Barragens considera que o montante final [do acordo] insuficiente para alcançar a reparação integral dos danos. Vocês acreditam que o acordo é suficiente para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão? O que seria uma reparação justa?
Nós não podemos dizer nada sobre isso. O que nós conhecemos dos danos? O que nós conhecemos da magnitude dos danos? Nós sabemos que vidas foram perdidas, que o meio ambiente sofreu danos.
Nós sabemos que R$ 170 bilhões é muito dinheiro. Mas nós não sabemos nada além disso. Eu tenho 30 anos de advocacia e nunca soube de um acordo dessa magnitude. Por outro lado, acompanhei os eventos trágicos pela televisão, pelo noticiário e sei que eles também são de grande magnitude. Com perda inestimável de vida humana, que não pode se transformar em objeto num mercado que explora a vitimização humana.
Um dos receios dos atingidos é que o acordo, apesar de firmado, não seja executado como está estabelecido. A Fundação Renova, por exemplo, sempre recebeu críticas por não cumprir os pontos estabelecidos em Termos de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). O sistema jurídico brasileiro tem ferramentas que permitam garantir que esse acordo será cumprido?
Me permita responder como um operador jurídico e não como advogado do Ibram. Eu não tenho dúvida nenhuma. Aliás, muito mais do que o sistema de justiça inglês em relação a empresas do Brasil. Foi um acordo conduzido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente da República. Ainda que eles tivessem feito isso sem um firme propósito, nós temos Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Tribunal, Superior Tribunal de Justiça, Suprema Corte no Brasil.
Nós precisamos parar, no Brasil, de olhar para esses monumentos que nós erguemos para e pela Justiça como se eles fossem inúteis. Administrar um sistema de justiça como o nosso não é brincadeira.
As vítimas dizem que o objetivo de levar os casos ao exterior não é apenas a indenização, mas condenar as empresas, o que ainda não ocorreu no Brasil. Para vocês, as empresas não precisam ser condenadas pelo ocorrido?
Em primeiro lugar, nós não temos conhecimento do trânsito de processos penais. Segundo, pessoa jurídica não é ré em ação penal. No sistema de justiça brasileira, não.
Eu tenho conhecimento, por notícias de jornal, que administradores das companhias são demandados em processos penais. É o máximo que eu sei. E em nenhum momento o Ibram se institui contra isso. Ao contrário.
O Ibram acredita veementemente que a lei brasileira tem de ser cumprida e os rigores da lei brasileira têm de ser observados. Ah, o Ibram não quer que as empresas sejam punidas? Não é verdade. Ah, o Ibram quer preservar as empresas? Não. O Ibram quer que as leis do Brasil, o sistema de justiça brasileiro e a soberania sejam respeitados, e que isso aqui não vire uma bagunça. […] Não podemos ser criticados por exigir o cumprimento da lei.
Para você, o que seria um fim justo para essa tragédia?
Nós não podemos te dar essa resposta. Nós não temos interesse nenhum, a não ser como cidadãos. O nosso interesse com cidadãos é que as pessoas sejam reparadas, que o meio ambiente seja preservado, que as empresas que sofreram sejam reparadas. Como advogados do Ibram, o nosso interesse é ganhar a ADPF.