Em uma meia encosta perto do rio Piraí-Mirim, cerca de 180 quilômetros a noroeste de Curitiba, um paredão de arenito inclinado para a frente formou um conjunto de abrigos sob a rocha. Esse tipo de cavidade natural produz em sua base uma área semifechada, relativamente protegida das intempéries, onde usualmente são encontrados vestígios de ocupação humana do passado remoto.

Em um desses abrigos descobertos em 2021 na zona rural de Piraí do Sul, município cortado pelo curso d’água, um painel de menos de meio metro quadrado estampa uma cena que lembra um pequeno bosque de araucárias.

Segundo estudo publicado na revista Caderno de Geografia no início de fevereiro, essa pintura seria a primeira representação conhecida em arte rupestre no Brasil de árvores da espécie Araucaria angustifolia, a popular araucária, às vezes também denominada pinheiro-do-paraná ou pinheiro-brasileiro.

Descrita na literatura em 1820, A. angustifolia ocorre em terras altas, de clima temperado, sobretudo nos três estados do Sul. A região do novo sítio arqueológico no Paraná está a pouco mais de 1.100 metros (m) de altitude em relação ao nível do mar e abriga exemplares da espécie. A araucária também é encontrada em áreas montanhosas da divisa de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e, com menor frequência, em partes da Argentina e do Paraguai. A espécie, que está ameaçada de extinção, pode viver 200 anos e atingir 50 m de altura.

Infográfico: Alexandre Affonso | Foto: Rodrigo Junghans

Árvores escaladas

Esmaecidos ou parcialmente apagados pela ação da umidade, os traços da pintura rupestre retratam 13 araucárias, com seu típico caule retilíneo e copa em forma de guarda-chuva ou cone, e 20 figuras com formas antropomórficas, que lembram seres humanos. Algumas árvores parecem estar sendo escaladas por uma pessoa ou talvez um primata arborícola. O movimento de ascensão é facilmente justificável: as sementes (pinhões) ficam nas pinhas localizadas no topo das araucárias e fazem parte da dieta de povos indígenas, e também de animais.

“A pintura é contínua e mostra araucárias maiores e menores que parecem representar exemplares velhos e jovens”, diz o geógrafo Henrique Simão Pontes, do Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Gupe-UEPG), autor principal do trabalho. “Nossa hipótese é de que o painel tenha sido feito por membros antigos de povos indígenas do tronco linguístico jê.”

Além do desenho do pequeno bosque de pinheiros-do-paraná, outros 24 painéis com pinturas feitas com pigmentos avermelhados e pretos foram identificados ao longo de 16,4 m de superfície contínua do paredão que forma o Abrigo das Araucárias, nome dado ao sítio arqueológico. “A maior parte dos grafismos é de desenhos geométricos”, comenta o geógrafo e guia de turismo Alessandro Giulliano Chagas Silva, do Gupe, um dos autores da descoberta do sítio arqueológico. “Não encontramos nenhum outro desenho com araucárias.” As pinturas, cujo estado de conservação é muito variado, contêm impressões digitais, pontos, grafismos geométricos e desenhos similares a plantas.

Imagem da pintura das araucárias tratada com um programa que destaca os traços do desenho. Crédito: Rodrigo Junghans/Gupe

Caráter especial

Não há estimativa de quando os desenhos foram produzidos. Ainda não foram feitas escavações no sítio arqueológico, algo previsto para outro projeto de pesquisa. Hoje não há povos indígenas vivendo nos arredores do abrigo. Mas, antes da chegada dos europeus, no início do século 16, essa área do Paraná fazia parte de uma grande faixa de terra do Sul habitada por povos do tronco jê, dos quais descendem as atuais etnias kaingang e xokleng.

O arqueólogo Rafael Corteletti, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do Rio Grande do Sul, também considera provável que os jês tenham sido os autores da pintura com os pinheiros, um dos símbolos associados ao estado do Paraná. “Desconheço qualquer outro tipo de arte rupestre ou grafismo arqueológico relacionado às araucárias. Por isso, esse sítio tem um caráter especial”, comenta Corteletti, que não participou do estudo. “Diria que é possível que as pinturas tenham sido feitas pela etnia kaingang. Como o sítio não foi escavado pela equipe que fez o registro, não temos outros materiais associados, ou até mesmo uma cronologia estabelecida, para reforçar a hipótese da autoria atribuída aos jês. Para ter certeza, seria preciso verificar se há mais elementos da cultura material.”

O Abrigo das Araucárias foi um dos 29 sítios arqueológicos descobertos desde julho de 2021 pelo projeto EspeleoPiraí, coordenado por membros do Gupe. A iniciativa procurou por cavernas e abrigos que pudessem ser de interesse espeleológico ou arqueológico em uma área de 9 mil hectares, dentro dos chamados Campos Gerais do Paraná. Segundo Pontes, mais de uma centena de cavernas foram identificadas nessa região, das quais 36 apresentam pinturas rupestres, geralmente compostas por desenhos geométricos e representações de figuras humanas, de animais e, às vezes, de plantas, como o milho. Agora, os contornos das araucárias riscados na rocha se somam a esses registros.

ARTIGO CIENTÍFICO

PONTES, H. S. et al. First rupestrian representations of Araucaria angustifolia in Southern BrazilCaderno de Geografiav. 33, n. 72. jan.-mar. 2023.

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.