Ex-chanceler federal diz não se arrepender de ter aberto as portas da Alemanha para os que fugiam da guerra na Síria, mas admite que medida fortaleceu pauta anti-imigração da ultradireita.Dez anos após proferir a célebre frase “Wir schaffen das” (“Vamos conseguir”) e impor à Alemanha o desafio de acolher centenas de milhares de refugiados sírios, a ex-chanceler federal Angela Merkel sugeriu que não se arrepende de sua decisão e apontou que o país fez progressos significativos na integração desses migrantes.

E embora tenha admitido que a consequente entrada em massa de imigrantes contribuiu para o fortalecimento da ultradireita alemã, que fez da pauta anti-imigração sua bandeira,Merkel disse que não seguiria um caminho diferente diante das alternativas que tinha à época.

“Isso certamente tornou a AfD mais forte”, disse ela sobre o partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha, ponderando que isso não a impediria de tomar uma decisão que considerava “correta, razoável e humana”.

As declarações foram feitas em entrevista à emissora pública alemã ARD como parte de um documentário que foi ao ar nesta segunda-feira (25/08).

“É um processo. Mas, até agora, conquistamos muito”, afirmou Merkel sobre a integração desses refugiados à sociedade alemã. “E o que ainda precisa ser feito deve continuar sendo feito.”

Merkel transformou política migratória

Em agosto de 2015, as palavras de Merkel marcaram uma virada na política alemã em meio a uma das maiores crises migratórias vividas no continente. Seu governo permitiu a entrada de pessoas que fugiam principalmente do regime sírio de Bashar al-Assad, apesar do sistema comum europeu de asilo não obrigar a Alemanha a assumir tal responsabilidade de forma automática.

Segundo o procedimento de Dublin, que regula a política europeia de imigração, o Estado em que o refugiado entra pela primeira vez no território europeu é geralmente o responsável por processar seu pedido de permanência.

O alto fluxo migratório naquele ano levou milhares de pessoas que percorriam a Rota dos Bálcãs a enfrentarem condições desumanas na fronteira com a Hungria. A abertura de portas permitiu a meio milhão de pessoas contornarem o registro no país de entrada e solicitar refúgio na Alemanha em 2015.

“Convencida que Alemanha conseguiria lidar”

Em entrevista à ARD, Merkel afirmou ainda que sabia que a decisão seria desafiadora, mas se disse surpreendida com a frequência com que suas palavras foram usadas contra ela ao longo do tempo.

Segundo a conservadora, que chefiou o governo de 2005 a 2021, sua intenção era depositar suas esperanças no povo alemão. Ela não acredita que o país tenha sido sobrecarregado pela decisão.

“Não penso assim. A Alemanha é um país forte. No geral, eu estava convencida de que a Alemanha conseguiria lidar com isso”, afirmou.

Para ela, sua única alternativa diante da crise migratória seria impedir a entrada de refugiados à força. “Eu jamais teria estado disposta a fazer isso”, disse à ARD. Merkel assume que se recriminava por não ter feito mais quando a guerra civil na Síria eclodiu em 2011.

Entrada de refugiados alimentou pauta anti-imigração

Críticos alegam que o “vamos conseguir” da ex-chanceler federal colocou os municípios alemães sobre pressão excessiva, e que a entrada de imigrantes fez aumentar a criminalidade no país, apesar de estudos não indicarem tal correlação.

Mesmo membros do partido de Merkel, a União Democrata Cristã (CDU), passaram a liderar os ataques à política de abertura. Um de seus críticos mais vocais é o atual chanceler federal alemão, Friedrich Merz, eleito sob uma bandeira de endurecimento das leis de imigração.

A pauta anti-imigração também se tornou a principal agenda da AfD, que conquistou votação recorde na eleição parlamentar de fevereiro. Atentados atribuídos a imigrantes alimentaram ataques contra políticas de refúgio e centralizaram a campanha eleitoral da sigla.

Secretário-geral da CDU discorda de Merkel

O secretário-geral da CDU, Carsten Linnemann, fez uma avaliação crítica dez anos após a declaração de Merkel.

“Desde 2015, 6,5 milhões de pessoas vieram para cá, e menos da metade está atualmente empregada. Eu acho isso, para dizer o mínimo, insatisfatório”, disse Linnemann ao jornal Neue Osnabrücker Zeitung.

Reportagens publicadas na imprensa alemã com base em dados do próprio governo, porém, apontam que atualmente cerca de 69% dos imigrantes aptos a trabalhar que vieram em 2015 o fazem e têm renda própria – muito próximo da média nacional de 70% na Alemanha.

Linnemann enfatizou que o foco atual do governo deve ser interromper a migração irregular e promover apenas a que fomente o mercado de trabalho.

“Essa deve ser a política deste governo em 2025 – e é”, declarou.

gq/ra (dpa, ots)