Há um nicho de ódio às mulheres lucrativo na internet e pronto para receber os perturbados e os rejeitados, que representam uma grande fatia dos adolescentes do mundo.”Oitenta por cento das mulheres se interessam por 20% dos homens. E eu acho que eles [red pills que propagam essa alegação] têm razão.” Essa frase é dita por Jamie Miller, protagonista da série Adolescência, número um na Netflix no mundo todo e foco de discussão de milhares de adultos preocupados (com razão).

Na série britânica, criada por Stephen Graham, que também atua como pai do protagonista, um adolescente de 13 anos é acusado de matar uma colega da escola a facadas. O culpado é Jamie, um garoto com aparência frágil. E esse não é exatamente um spoiler, já que desde o início da série fica claro que aquele menino é um assassino.

A série não foi feita para causar suspense (apesar de criar esse efeito, sim), mas para causar uma espécie de choque que leva todo mundo a refletir. Cada episódio é gravado em um grande plano sequência, e a sensação que sentimos é que estamos dentro de um filme de terror que poderia ser real e ter acontecido na casa ao lado (ou pior, na nossa).

Masculinidade tóxica

Deu certo. A série, além de número um global no streaming, é o assunto do momento, o que é ótimo. Precisamos mesmo falar sobre como a masculinidade tóxica afeta meninos e meninas e sobre todos os conteúdos de ódio disponíveis a um clique no telefone de crianças e jovens.

No início da série, Jamie parece apenas uma criança assustada que faz xixi na cama. Aos poucos, a gente vai vendo quanto ódio e misoginia cabem dentro do corpo franzino do menino. Jamie não se sente atraente o suficiente para conquistar meninas (um sentimento comum em sua idade), sofre bullying e é chamado de “red pill”(ideologia que defende que os homens são superiores às mulheres em inteligência, liderança e sociabilidade e que o feminismo e a luta por igualdade querem oprimir os homens) e incel (uma abreviação de “celibatários involuntários”, odiadores de mulheres que se descrevem como incapazes de ter um relacionamento). Ele nega fazer parte dos grupos, apesar de já ter lido conteúdos deles nas redes. Mas Jamie odeia tanto as mulheres que mata uma colega de classe como se isso não fosse nada.

A família de Jamie é comum. Seu pai, uma figura importante na trama, é um trabalhador, que, como a maioria dos homens da sua geração (de cerca de 50 anos), tem dificuldades de exprimir sentimentos e, de vez em quando, tem acessos de raiva, mas se preocupa de verdade com o filho. Sua mãe e sua irmã são amorosas. Ou seja, ele é amado e ninguém tinha percebido ainda que havia algo de muito errado com ele – o que tem deixado pais de meninos em pânico.

Violência nas escolas

Eu entendo o receio. Adolescentes são vulneráveis e iscas perfeitas para radicais. No caso dos meninos, vivemos tempos em que existe um nicho de ódio às mulheres lucrativo na internet e pronto para receber os perturbados e os rejeitados, que representam uma grande fatia dos adolescentes do mundo. Sim, essa é uma fase difícil, onde todos nós ficamos confusos (em maior ou menor grau).

Apesar da série ser de ficção, ela toca em uma problemática real e atual. Parte dos autores de ataques em escolas do Brasil, de acordo com relatório publicado pela Unicamp, consumiam conteúdos de ódio na internet. “São meninos que se identificam como red pills e incels. Eles acreditam que mulheres são más”, diz trecho do relatório. Parte deles, assim como Jamie da série, era vítima de bullying.

Esse ódio a mulheres é propagado por “coachs de masculinidade” e outros influenciadores do ódio. Esses discursos, que já eram perigosos quando habitavam os subterrâneos da internet, agora estão na superfície. Qualquer adolescente pode encontrar conteúdo sobre esses grupos sem grandes dificuldades. E, claro, existem vários homens famosos e com poder que também usam um discurso contra mulheres.

A sociedade precisa, sim, discutir e prestar atenção a esse fenômeno, inclusive porque ele não está diminuindo, pelo contrário. Os bilionários donos das redes sociais, como Elon Musk e Mark Zuckerberg, estão fechados com Donald Trump (um homem misógino) e já avisaram que diminuíram a moderação de conteúdos de ódio em nome da “liberdade de expressão” (no caso, a liberdade de atacar e promover bullying). E agora?

No Brasil, muitos argumentam que a saída para o problema seria a regulação das redes sociais. Acredito, sim, que as redes devem ser reguladas. Mas não acho que só isso seja a solução. As redes são regulamentadas na Europa e na Alemanha, mas isso não é suficiente para que conteúdos de ódios desapareçam delas.

Com o sucesso da série, vi também muitas pessoas falando o quanto é importante saber que tipo de conteúdo seu filho consome nas redes sociais. Concordo também. Mas não acho que exista uma solução fácil. Discutir o tema com seriedade é um bom começo. E a série Adolescência cumpre seu papel ao nos levar a fazer isso.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.