09/10/2015 - 19:17
Em volta da fogueira acesa, Mauricio Calfuqueo reúne os visitantes para falar sobre a cosmovisão dos mapuches (pronuncia-se maputches), o mais famoso povo nativo do Chile. “Todos os conhecimentos e tradições mapuches são transmitidos oralmente, de geração a geração. Nada foi escrito nem lido.” O espaço em que acontece essa conversa lembra uma oca. Não está equipada como uma legítima ruka, palavra em mapudungun (língua mapuche) para casa. Tem apenas uma divisória baixa, alguns bancos e uma estante. Foi construída há cerca de 15 anos, quando famílias da comunidade Lewfu Budi começaram a se dedicar ao turismo.
“Há pouco mais de 30 anos, o governo chileno passou a oferecer subsídio para os povos tradicionais construírem casas convencionais. Assim as rukas ficaram de lado, quase extintas”, lembra Calfuqueo. A atividade turística, então, se transformou no impulso para recuperar a própria cultura. “Nós queríamos compartilhar dentro da ruka os nossos conhecimentos com as pessoas que viessem nos visitar. Temos grandes valores para entregar como cultura, como povo.”
Outras rukas se misturam ali com casas de madeira. Algumas delas receberam camas e armários para hospedar quem deseja passar mais de um dia na comunidade Lewfu Budi, instalada às margens do Lago Budi, no centro do Chile, na região de Araucanía. Em 240 hectares em torno do lago – que tem comunicação com o mar e é de água salgada – vivem outras 118 comunidades (ou grupos familiares) de origem 100% mapuche, somando cerca de 13 mil pessoas. Mas, em toda a região, somente a Lewfu Budi ousou se abrir para o turismo.
A começar pelo resgate das rukas, a comunidade encontrou um caminho para fortalecer suas tradições, contrariando a tendência em processos como esse, de sofrer com a perda de identidade. O turismo já foi aclamado pela ONU como solução para a miséria de populações de áreas ricas em belezas naturais e culturais, mas teve a credibilidade abalada por causar, em vários casos, mais empobrecimento do que prosperidade. Sobretudo quando grandes companhias do setor, como redes internacionais de hotel e entretenimento, se instalam na região e expatriam todos os lucros gerados ali, sem dar ao menos oportunidade de trabalho para os moradores da área.
“No caso de culturas nativas, é muito frequente que se tornem vulneráveis à afluência dos visitantes, sofrendo mudança de hábito e de cultura. Aqui, consideramos tal desafio antes de começar essa atividade”, explica Pablo Calfuqueo, mapuche especializado em turismo e consultor da empreitada. Desde o início, quando se discutiu a possibilidade de desenvolver o turismo na comunidade, foram decididos quais aspectos culturais seriam incorporados à oferta. Todas as práticas espirituais foram preservadas. Os visitantes apenas ouvem relatos ou conhecem lugares especiais, mas não participam dessas atividades. “Para quem é de fora, isso nunca terá o mesmo valor que tem para nós”, justifica.
Orgulho resgatado
Segundo Calfuqueo, com a introdução do turismo, as famílias passaram a pesquisar mais sobre a própria cultura e estão mais dispostas a se fazer conhecer. “Antes, as pessoas não davam tanto valor, algumas tinham até vergonha de ser mapuches. Hoje, quem oferta os serviços tem orgulho de divulgar suas tradições e as valoriza mais”, garante. As maiores dificuldades têm sido enfrentadas na área de negócios: consolidar o produto e se adaptar a regras de mercado e legislações do “homem branco”.
Das 85 famílias que formam a comunidade, apenas três aderiram inicialmente à ideia. Aquelas que não quiseram se envolver deram sua autorização para a iniciativa. Atualmente, 18 famílias atuam na oferta turística, cada uma em um setor diferente – alimentação, acomodação, passeios a cavalo ou de bote, oficinas de artesanato, etc. Mas, indiretamente, todas já obtêm recursos do turismo. “A base da nossa economia tradicional é o chasquintu [escambo, em português]. Minha família cultiva quase todos os produtos que servimos aqui no restaurante. O que nos sobra trocamos com os vizinhos pelo que nos falta”, relata Fresia Painefil Calfuqueo, gerente e chef do restaurante Ruka Kimun.
Outro patrimônio resgatado foi o idioma, que estava desaparecendo, apesar de ser uma das duas características essencialmente mapuches, ao lado da cosmovisão. Os recursos do turismo permitem manter uma escola integralmente em mapudungun dentro da comunidade. Em 2015, o estabelecimento está completando o ciclo de habilitação para todas as séries correspondentes ao ensino fundamental no Brasil. O país tem como lei, desde 1993, o ensino de mapudungun na rede pública, mas a falta de professores costuma ser um entrave.
“Recuperar o idioma deve ser a primeira ação que vamos tomar com a comunidade de Carahue, que quer começar no turismo”, diz Calfuqueo. A vivência da Lewfu Budi se tornou uma espécie de modelo. Outras comunidades estão se mostrando interessadas em replicar a estratégia. “Somos protagonistas e estamos abertos a dividir nossa experiência. Não queremos nos capitalizar e enriquecer, buscamos uma qualidade de vida melhor e viver em um equilíbrio harmônico com todos.”
Resistência histórica
De acordo com a última pesquisa socioeconômica nacional realizada pelo Ministério de Planejamento, em 2013, os representantes das nove etnias indígenas oficialmente reconhecidas pelo Chile, somados, constituem 9,1% da população do país, ou 1,56 milhão de habitantes. Desse total, 84,4% se autoidentificaram como mapuches. Historicamente, Araucanía está associada à presença desse povo nativo, e ainda hoje reúne a segunda maior população deles, ficando atrás apenas da região metropolitana de Santiago, para onde muitos migraram.
Personagem ignorado nas aulas de história das escolas brasileiras, o espanhol Diego de Almagro, um dos desbravadores do Novo Mundo, deparou-se com um obstáculo muito maior do que cordilheiras nevadas quando invadiu o que hoje é o Chile. A resistência dos mapuches impediu os conquistadores de ocupar a região de Araucanía, que recebeu este nome pela grande concentração de araucárias (veja quadro à pág. 59). O mar foi a única saída encontrada pelos espanhóis para driblar a área entre os rios Biobío, ao norte, e Toltén, ao sul, onde se concentravam os “araucanos”, como os espanhóis chamavam os mapuches.
Somente no fim do século 19, quando venceu Bolívia e Peru na Guerra do Pacífico, expandindo as fronteiras do país, o Chile avançou sobre o território mapuche. O retorno da democracia no país, no final do século seguinte, reacendeu o conflito entre as comunidades e organizações mapuches e o Estado chileno, envolvendo principalmente recuperação de terras ancestrais, benefícios econômicos e reconhecimento da identidade cultural. Embora a maior parte deles deseje autonomia e direitos como parte do Chile, uma minoria reclama a independência total de uma nação mapuche.
Os ativistas mais radicais realizam ataques armados e incendiários contra proprietários e trabalhadores das terras antes ocupadas pelos mapuches. Recentemente, um casal de idosos morreu por causa de um incêndio provocado na casa onde moravam. A Copa América, ocorrida em julho no Chile, também marcou um momento tenso em Temuco, a capital regional, que sediou diversos jogos. O trajeto entre o aeroporto, instalado na cidade vizinha, Freire, e os locais de hospedagem estava sob ameaça de atentados contra os ônibus das delegações.
Enquanto o impasse divide opiniões no país, a iniciativa da comunidade Lewfu Budi sugere um caminho mais pacífico e eficaz para os mapuches se fazerem fortes, conhecidos e independentes. “Geramos recursos para manter nossas famílias e empregos para os nossos jovens, freando a emigração deles para as cidades. Ao mesmo tempo, estamos fortalecendo nossas tradições”, garante Calfuqueo.
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Bem parecidas, mas diferentes
A Araucaria araucana, árvore típica na região de Araucanía, no centro do Chile, é considerada fóssil vivo e protegida por lei desde 1976, como Monumento Natural do país. Isso porque ela não mudou quase nada desde o Mesozoico, era entre 251 milhões e 65,5 milhões de anos atrás conhecida especialmente pelo aparecimento, domínio e extinção dos dinossauros.
Um exemplar chega a viver mil anos, pode alcançar até 50 metros de altura e 3 metros de diâmetro. E só dá fruto, o pinhão, a partir dos 35 anos. Mas a ação do homem para obter a madeira encurtou a vida de milhares delas e não deixou muitos bosques em pé. Hoje, a árvore, também conhecida como “araucária chilena”, ainda precisa lutar contra espécies exóticas, plantadas pela própria administração pública – ou por estímulo dela – nos anos 1960, como ação de reflorestamento.
“Uma vez que Araucanía não possui cordilheira na costa, como o restante do país, o território recebe mais umidade. Assim, o solo se tornou adequado às araucárias, que demandam muita água”, diz Elías Ivan Bolíviar, administrador do Parque Nacional de Malalcahuello. Embora as araucárias brasileira e chilena se pareçam muito e deem o mesmo fruto, o tipo encontrado aqui é outro: a Araucaria angustifolia, também chamada pela palavra de origem indígena, curi, que rendeu o nome à cidade de Curitiba.
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Sonho, espiritualidade e cura
Se na cultura ocidental os médicos já costumam ser vistos como seres especiais, no mundo mapuche o machi (médico) é de fato uma pessoa escolhida por espíritos divinos. Quem nasce para desempenhar esse papel, seja homem ou mulher, recebe a missão por meio de sonhos.
Além de passar por uma formação especial de quatro a nove anos com um machi experiente, quanto mais sonhos tiver sobre formas de cura e preparos medicinais, mais especializado será o futuro doutor. “Na cosmovisão mapuche, o sonho tem importância muito grande, são sinais. Eles surgem naturalmente, não usamos nenhum estimulante alucinógeno ou à base de ervas”, explica Pablo Calfuqueo.
Quando o aluno estiver pronto para atender pacientes, uma celebração de três a quatro dias oficializará o machi perante sua comunidade e limpará as energias negativas do lugar e das pessoas presentes. A partir daí, uma sequência de troncos será fincada do lado de fora da ruka (casa) do machi e servirá como seu ponto de conexão com os seres espirituais. Os diagnósticos são dados após a observação visual do paciente, ou de alguma peça vestida pela pessoa, ou de amostra de urina do enfermo; o doente apenas irá confirmar, ou não, a interpretação do machi. Somente casos mais graves demandam rituais em que o machi entra em transe, podendo até envolver o sacrifício de um animal para revelar informações sobre o estado do paciente.
Os tratamentos geralmente utilizam cataplasmas, banhos medicinais, massagens com óleos essenciais, pomadas naturais e infusões de plantas e ervas, que qualquer um pode preparar. Os doentes graves, entretanto, chegam a ser internados na casa do machi. Complementarmente ou no lugar desse método tradicional, muitos mapuches têm usado o sistema público de saúde. Mas também é possível para uma pessoa de fora da comunidade se consultar com um machi. Além de receberem pacientes na comunidade, nos últimos dez anos os machis estão sendo contratados pelo governo para atender em alguns hospitais da região.