Alvos de discriminação, perseguição e até esterilização forçada, os afro-alemães não tiveram sua experiência ainda estudada em detalhe, ao contrário de outras vítimas do regime nazista.”Acho que a gente não se deu conta de que a época nazista da Alemanha durou só 12 anos, e o que esse tempo pode fazer com uma sociedade e o que pode acontecer nele. Não é preciso 50 ou 100 anos”, comenta a historiadora Katharina Oguntoye, de Berlim.

Os crimes, subjugação, racismo, escravização e genocídio contra judeus, etnias sinti e roma, LGBTQ+ e outras comunidades estão bem documentados. Mas para os negros da Alemanha não tem sido fácil obter o reconhecimento dos crimes e abusos sofridos.

O historiador Robbie Aitken, da Universidade Sheffield Hallam, na Inglaterra, estuda as comunidades negras há 20 anos, e registra uma relutância da sociedade alemã em reconhecer e aceitar que os negros são parte do país desde o fim do século 19.

“Estamos falando de gente que atravessou fronteiras, que se deslocou muito, e de um período em que os próprios nazistas destruíram documentos, então é difícil encontrar informações. Acho que muitos historiadores estão relaxando nesse ponto, e há uma falta de saber público e acadêmico sobre o período.”

Na década de 1880, a presença do Império Alemão na África colocou o país em contato com a população local, sua mão de obra e os recursos naturais de seus territórios. Após ser derrotada na Primeira Guerra Mundial, porém, a Alemanha teve que renunciar às colônias que incluíam os Camarões, Togo, a África Oriental Alemã (atuais Tanzânia, Burundi e Ruanda) e a Namíbia.

Ascensão nazista intensifica a perseguição racista

Vários milhares de afrodescendentes (não se dispõe de cifras exatas) afluíram para a Alemanha, vindos da África, Caribe, América do Sul e Estados Unidos.

Outro grupo de afro-alemães tem sua origem na presença de tropas coloniais francesas que ocuparam a região alemã da Renânia após a 1° Guerra Mundial, entrer 1918 e 1930, quando alguns desses militares acabaram se envolvendo com mulheres alemãs, deixando uma descendência local.

A minoria negra no país já era marginalizada devido à Grande Depressão de 1929, porém a natureza racista do regime nacional-socialista, que assumiu o governo em 1933, exacerbou sua situação.

“Quando os nazistas subiram ao poder, todo mundo que quisesse ser racista, que concordasse com os pontos de vista deles, podia dizer essas coisas pelas ruas com todo o entusiasmo, podia maltratar os outros física, verbalmente. Eles tinham rédea livre”, relata Aitken.

Assim, ficou mais raro ver os residentes negros em público, em especial quem tinha cônjuges brancos e filhos. Toda essa camada da população era considerada racialmente inferior, e entre 1933 e 1945 o regime impôs leis e medidas raciais para restringir suas oportunidades econômicas e sociais.

“No nível local, famílias foram efetivamente despejadas dos seus apartamentos para dar lugar aos adeptos do nazismo ou membros do partido”, prossegue o historiador de Sheffield. “Alguns alemães negros que tinham estabelecimentos comerciais foram explicitamente perseguidos.”

Esterilização forçada, estereótipos e propaganda

Um exemplo foi o bem-sucedido comerciante camaronense Mandenga Diek, um dos raros africanos com cidadania alemã: com a ascensão dos nazistas, ele perdeu sua firma em Danzig (hoje Gdańsk, Polônia) e foi declarado apátrida, juntamente com a família.

Após sua morte, em 1943, sua esposa Emilie e as filhas Erika e Dorothea escaparam por pouco da esterilização forçada. Enquanto isso, também na região da Renânia a Gestapo, polícia secreta do ditador Adolf Hitler, recebeu ordens secretas para localizar e esterilizar as crianças birraciais.

Segundo Aitken, tais ações provam que havia uma “intenção genocida”: “Não quer dizer que todas as pessoas negras fossem esterilizadas, mas considerando-se as medidas de alto nível e como as forças policiais locais agiam, fica claro que elas compreendiam essa intenção.”

A implementação das Leis Raciais de Nurembergue foi uma das pedras fundamentais da política nazista sobre o assunto. Baseada em protótipos desenvolvidos para separar brancos e negros durante a época colonialista alemã, a legislação incluía restrições a casamentos e relações sexuais entre judeus alemães e os assim chamados “arianos”.

O termo “ariano” descrevia uma raça supostamente “branca” e superior a outros grupos, como os judeus. O então ministro do Interior, Wilhelm Frick, também empregou o conceito para discriminar mulheres e homens considerados negros.

Calcadas nos zoológicos humanos de décadas anteriores, as exposições itinerantes intituladas “Deutsche Afrika Schau” (Show Alemão da África) evocavam clichês dos tempos coloniais. Criadas pelo togolês residente na Alemanha Kassi Bruce, de 1937 a 1940 elas eram uma oportunidade de sobrevivência financeira para os cidadãos negros – embora o regime controlasse estritamente quem podia participar.

Igualmente estereotipada era a participação negra nos filmes de propaganda, sempre no papel de criados – refletindo também as esperanças dos nazistas de reconquistar os territórios perdidos na África.

Inspirada na pioneira May Ayim

A antologia de 1986 Farbe bekennen (“Assumir a cor”, mais tarde publicada em inglês como Showing our colors. Afro-German women speak out – Mostrando nossas cores. Mulheres afroalemãs se manifestam), da poeta, educadora e ativista afroalemã May Ayim (1960-1996), representa um momento-chave para a experiência negra na Alemanha e o feminismo interseccional, combinando análise histórica, entrevistas, testemunhos pessoais e poesia.

Katharina Oguntoye, que participou da edição de Farbe bekennen, prossegue nessa linha de pesquisa histórica, recolhendo narrativas de resistência e coragem de existir de alemães negros durante o período nazista. Desse modo, ela chegou à compositora de canções políticas Fasia Jansen, o ator Theodor Wonja Michael, e o jornalista Hans Massaquoi.

Apesar de ter nascido 14 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, de mãe alemã branca e pai nigeriano, Oguntoye acredita que sua identidade forma uma plataforma para contar tais histórias: “Pouca gente faz essa pesquisa, tem dois ou três outros acadêmicos que estudam as pessoas negras durante os tempos nazistas.”

Para ela, continuam subvalorizadas a presença e contribuição negra à Alemanha. Por exemplo: muitos só ficaram sabendo da existência do pioneiro Anton Wilhelm Amo (1703-1759) – primeiro afrodescendente a se doutorar numa universidade europeia – quando uma rua berlinense recebeu seu nome, em 2021.

Superando a vitimização

Neste ínterim, outros afroalemães vêm ganhando mais visibilidade em Berlim, graças a placas comemorativas nos espaços públicos. E na cidade de Colônia inaugurou-se em 2022 a Biblioteca Theodor Wonja Michael (1925-2019), como lar para as histórias negras e para estudos sobre identidade, raça e cultura. A criação da instituição foi inspirada, em parte, pelo lançamento de My father was a German (Meu pai era alemão), um relato franco de Michael sobre sua vida na Alemanha do século 20.

Outra medida positiva, propõe Oguntoye, seria abordar mais intensamente nos currículos escolares a contribuição negra: “É bom transmiti-la através de biografias; histórias de vida, pois essa é a forma mais fácil de lembrar das pessoas.”

Contudo a luta por reconhecimento e aceitação está longe de terminar, e as novas gerações se confrontam com uma sociedade alemã tendendo politicamente cada vez mais para a direita.

Sophie Osen Akhibi, da associação alemã Rede Acadêmica Afrodiaspórica (Adan), fundada em 2014, enfatiza a importância de identificar onde é possível exercer influência para promover mudanças culturais.

“Não vai ajudar permanecer no modo de vítima e reclamar, em vez de almejar a profissões e poder para sermos incluídas na mesa de tomada de decisões ou, se não, construirmos a nossa própria.”

Através da Adan, Akhibi e seus colegas se esforçam para que os tomadores de decisão compreendam as realidades que confrontam os imigrantes e minorias, e as abordem.