12/11/2025 - 11:50
Escritor e líder indígena denuncia “fuga alucinada” do Acordo de Paris pelas grandes potências e “omissão” da Europa. Para enfrentar a crise climática, diz, mundo precisa repensar noção de progresso.A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP) acontece pela primeira vez na Amazônia, cercada de expectativas. O Brasil busca consolidar seu papel de liderança climática e contornar a ausência dos Estados Unidos, maior economia global. Mas a “COP da verdade”, assim chamada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não desperta otimismo em Ailton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de Ideias para adiar o fim do mundo.
“Eu gostaria muito de esperançar alguma coisa surpreendente”, afirma, em entrevista à DW. “A vocação da COP30 é ser um balcão de negócios para negociar petróleo, madeira e terras raras. Parece que esta é a ilusão do momento.”
Nos últimos anos, o escritor ganhou notoriedade internacional a partir da tradução de seus livros para mais de dez idiomas em 15 países. Antes de ser alçado a “filósofo” pela originalidade de sua obra, Krenak se projetou por uma trajetória de décadas no movimento indígena brasileiro.
Após as duas últimas edições da COP em países autoritários, espera-se uma grande participação da sociedade civil em Belém – um contraponto animador, na avaliação de Krenak. “Os movimentos sociais no mundo estão muito mais ativos. Quem sabe, eles consigam apropriar-se do espaço e transformar isso em alguma coisa mais esperançosa”, vislumbra.
“Não adianta gritar no deserto”
A Cúpula dos Povos, principal espaço de representação dos movimentos sociais na COP, começa nesta quarta-feira (12). Organizada por aproximadamente 1,1 mil entidades e redes internacionais de 62 países, a expectativa é reunir 30 mil pessoas.
A menos de um mês da conferência, o Ibama autorizou a Petrobras a iniciar pesquisas para exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Em linha com os interesses do governo, a decisão é alvo de intensa contestação por indígenas e ambientalistas.
“Isso significa que nós estamos engajados num amplo sistema de comer o planeta. É claro que vai ter mais lugar para os indígenas gritarem, espernearem e falarem, mas isso não significa que eles vão ser ouvidos. Quem tinha que ouvir são os chefes do dinheiro no planeta, não adianta você gritar no deserto”, diz.
Krenak vê “fuga alucinada” do Acordo de Paris e Europa omissa
Para Krenak, a ausência dos Estados Unidos na COP30 é sintoma de uma retração global na discussão climática. “Toda a discussão até a COP20 recuou à década de 1990. A gente está beirando a Rio 92. Só que a Rio 92 era cheia de esperança, e a COP 30 é um buraco escuro”, compara.
Ante a proximidade do ponto de não retorno climático, o pensador indígena enxerga uma “fuga alucinada” do Acordo de Paris pelas grandes potências.
“Os pobres vão ter que lidar agora com a transição energética à custa da fuga de países como os EUA e outros associados a eles, que acham que o compromisso exigido para a transição energética é obrigá-los a antecipar a saída da economia do carbono, de todas essas práticas que declaradamente promovem o aquecimento global”, projeta.
Apesar da retirada dos Estados Unidos dos fóruns climáticos e da liderança da China nas emissões globais, Krenak faz um chamado à responsabilidade histórica do bloco europeu pelo atual momento de crise.
“A Europa projetou para o mundo todo esse modelo de desenvolvimento que deu errado. Eles deveriam assumir a responsabilidade disso junto aos países em desenvolvimento, mas estão largando a conta nas costas deles. A Europa está sendo muito omissa nesse momento”, dispara.
Para Krenak, crescimento sustentável é falácia
O escritor enxerga a humanidade em uma encruzilhada da qual não pode se esquivar. Para contornar a crise climática, seria necessário repensar o conceito de progresso. A tentativa de correção de rota pela via do crescimento sustentável não seduz Ailton Krenak.
“É muita mentira dizer que você pode conciliar a fúria do desenvolvimento com a idéia de conservar a natureza ou de restabelecer o clima no planeta, que só está piorando. As geleiras e glaciares estão derretendo. Aquele urso branquinho que a gente via na fotografia virou um cachorro enferrujado. Eu não acho graça nenhuma disso”, comenta.
“Se a gente não aprender a pisar suavemente na Terra, nós vamos abrir a lista das espécies em extinção na próxima temporada. A próxima temporada, como diz os meninos da periferia, ‘é nós'”, adverta.
A entrevista com a DW foi gravada no Rio de Janeiro, berço da conferência do clima, onde a exposição Adiar o fim do mundo está em cartaz. Inspirada no pensamento de Krenak, a mostra inaugurada dias antes da COP30 convida o público a repensar o presente diante das urgências ambientais e sociais.
Durante a conversa no pátio da FGV Arte, museu que abriga a exposição, pessoas subiam e desciam por uma escada rolante. Ao falar sobre a busca incessante por avanços tecnológicos, o indígena aponta para a cena como uma síntese do esvaziamento de sentido dessa ideia. “Agora mesmo, essa esteira subindo ‘inocentemente’ está esquentando o clima do planeta”, diz.
“Por que tem que se usar uma escada rolante se aquele sujeito podia estar fazendo o exercício físico de subir aquela escada? Diminuiria as internações hospitalares e uma série de outros efeitos colaterais. Mas o desenvolvimento põe a porcaria da escada rolante aqui, pra pessoa andar nela feito um idiota e não ser capaz de fazer o mínimo de exercício físico”, reflete.
Em meio à falta de soluções claras para a crise atual, Krenak enxerga uma desorientação generalizada, que ameaça o legado da vida na Terra para as próximas gerações. “Nós estamos vivendo num planeta em chamas, com uma humanidade vagando de um lado pro outro, debaixo de drones e mísseis”, constata.
“Querer produzir um efeito simpático sobre esse tempo que nós estamos passando chega a ser quase que alienar-se do grave problema, do grave risco que nós estamos passando, de legar às próximas gerações um planeta defeituoso. A gente recebeu o planeta íntegro e está correndo o risco de passar ele com defeito para quem vier depois de nós”, lamenta.
Ceticismo quanto à agenda do governo brasileiro
A defesa do crescimento sustentável está no centro da agenda climática brasileira. Ao defender a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, o presidente Lula argumenta que os recursos provenientes da atividade são necessários para financiar a transição energética.
Ao comentar os planos do governo do Brasil, Krenak faz referência às “zonas de transtorno”, conceito do filósofo e linguista estadunidense Noam Chomsky.
“O complexo do sistema capitalista global faz desaparecer aqueles lugares onde essas comunidades tradicionais, humanas, tinham sua subsistência e transforma isso em lugares de disputa, em não lugares. É onde vai ter petróleo, hidrelétrica e desmatamento. Essas zonas de transtorno são novos ativos para o capitalismo continuar vivo”, diz.
Nesse cenário, Krenak se mostra cético sobre a capacidade de o Brasil apresentar caminhos que representem uma alternativa ao atual modelo de desenvolvimento. “O governo está fazendo o papel protocolar”, afirma.
A presença de Sonia Guajajara no governo, à frente do Ministério dos Povos Indígenas, é um trunfo do Brasil na construção da narrativa sustentável e inclusiva. A criação da pasta no terceiro mandato de Lula é interpretada por Krenak como uma sinalização discursiva, alinhada a uma tendência internacional.
“Houve mudanças no mundo em relação ao que chamam de justiça reparatória, como na Nova Zelândia. O Canadá nomeou uma uma ministra dos povos originários. Na Colômbia, uma mulher do povo quilombola assumiu a vice-presidência da República. No México, uma senhora assumiu a presidência de um país machista”, analisa.
“O Brasil estava vendo isso, e o Lula decidiu se comprometer com o Ministério dos Povos Indígenas, tendo uma mulher indígena à frente. É um gesto que eu percebo como político, que pode não ter consequência nenhuma na realidade. O mundo dos atos políticos está fora da realidade. Eu posso nomear você, por exemplo, meu ministro de ‘Assuntos Interestelares’. E mando você ficar olhando estrelas”, conclui.
