31/03/2025 - 13:35
Proposta controversa de nova coalizão de governo prevê que “apoiadores do terrorismo, antissemitas e extremistas” poderiam perder a cidadania alemã, mas sanção só valeria para quem tiver dupla cidadania.As negociações entre conservadores e social-democratas para a formação de uma nova coalizão de governo na Alemanha têm sido tensas, com direito até mesmo a batida de porta, segundo relatos de participantes publicados pela imprensa. As diferenças pareciam especialmente inconciliáveis no grupo de trabalho que discute quais políticas o próximo governo deverá adotar em relação à migração e integração de migrantes.
A DW teve acesso ao esboço do contrato de coalizão, que ainda não foi fechado. O documento traz, na rubrica “direito à nacionalidade”, a seguinte frase: “Nós queremos reformar o direito à nacionalidade”. E em seguida: “Vamos analisar se é possível retirar a cidadania alemã de apoiadores do terrorismo, antissemitas e extremistas que conclamem à dissolução da ordem liberal-democrática, desde que eles tenham uma segunda cidadania.”
O político social-democrata Dirk Wiese, que é parte do grupo de trabalho “Interior, Direito, Migração e Integração”, tentou vender a resolução como um sucesso do Partido Social Democrata (SPD). À DW, ele destacou que a sigla conseguiu manter a possibilidade de dupla cidadania, algo que os conservadores da aliança União Democrata Cristã (CDU)/União Social Cristã (CSU) queriam eliminar.
“Manteremos a possibilidade de a pessoa se naturalizar após cinco anos [vivendo no país]”, disse o deputado. Por essa proposta, segundo ele, ficaria mantida também a possibilidade de uma naturalização ultrarrápida, já em três anos, nos casos excepcionais de integração.
Mas a proposta dos conservadores de ampliar as possibilidades de cancelamento do passaporte de pessoas com dupla cidadania não havia sido bem recebida pelo SPD até bem pouco tempo atrás. Os social-democratas, que elegeram uma bancada bem menor ao Parlamento, parecem ter sido forçados a dar o braço a torcer.
A resistência à proposta dentro do SPD se deve ao receio de alguns políticos que a consideram discriminatória por distinguir entre cidadãos “nativos” e “agregados”: seria a naturalização, afinal, apenas uma espécie de estágio probatório, que pode ser suspenso a qualquer momento? Seria um alemão com dupla cidadania menos alemão?
Cidadania alemã revogável?
Políticos do SPD, como o prefeito de Bremen, Andreas Bovenschulte, já haviam alertado sobre isso quando a ideia foi posta à mesa ainda no início das negociações nos grupos de trabalho. A mensagem para os mais de 6 milhões de alemães com mais de uma cidadania que vivem no país seria “bem problemática”, disse Bovenschulte à revista alemã Der Spiegel: “Eles vão acabar achando que a cidadania deles vale menos e que eles não são tão parte da sociedade assim.”
É assim que Abdel (nome fictício) diz se sentir. Ele é alemão, nasceu em Berlim. Além do passaporte alemão, possui também um documento da Jordânia, onde os antepassados palestinos dele se refugiaram – a avó dele nasceu em Jerusalém Oriental. “A situação está muito tensa. Para pessoas como eu poderia ficar muito desconfortável”, afirma.
A deputada Clara Bünger, do partido A Esquerda, fala em “duas categorias de direito à nacionalidade”: “Quem pertence à sociedade, quem não pertence? É exatamente disso que não precisamos em uma sociedade da qual migrantes fazem parte. Precisamos de regras claras e segurança jurídica para todos, assim como de direitos iguais para todas as pessoas na Alemanha.”
O que vale para “terrorista” hoje poderia valer para “apoiador do terrorismo”
A Constituição alemã diz que o Estado não pode tirar a cidadania de alguém, salvo algumas exceções: quem se junta a um grupo de combatentes como o “Estado Islâmico”, por exemplo, que é considerado uma organização terrorista pela Alemanha, pode perder o passaporte – a menos que a pessoa não tenha nenhuma outra cidadania além da alemã.
Durante a campanha eleitoral, os conservadores defenderam diversas vezes o endurecimento dessa regra. Friedrich Merz, que deve assumir o cargo de chanceler federal e liderar o novo governo, prometeu em janeiro revogar a cidadania alemã de pessoas com dupla cidadania que cometerem crimes. O aliado dele e chefe da CSU, Markus Söder, escreveu pouco depois no X: “Quem pede um califado tem que perder a dupla cidadania!” A frase era uma alusão aos manifestantes pró-palestina que exibiram cartazes com essa demanda (de instituição de um regime de governo baseado na lei islâmica) em algumas manifestações na Alemanha.
O atual rascunho da proposta tem as digitais dos conservadores. Para perder a cidadania alemã, bastaria então ser identificado como “apoiador do terrorismo” ou “antissemita”. Mas como esses termos são definidos?
Não existe o crime específico de antissemitismo na Alemanha. Para que haja crime, é preciso que haja o que se chama de “incitação ao ódio étnico” – presente em muitas declarações antissemitas, como a negação do Holocausto.
Portanto, quem incorresse no crime estaria sujeito não só a um processo criminal como também à eventual perda da cidadania – mas só alemães com dupla nacionalidade correriam esse risco.
Críticos veem na proposta uma desvantagem em relação àqueles que, por exemplo, fazem declarações antissemitas, mas possuem apenas o passaporte alemão. “Trata-se de marginalizar determinados grupos, pessoas de países árabes ou muçulmanos”, afirma Elad Lapidot, professor para estudos judaicos na Universidade Lille, na França.
Quem é um “antissemita”?
Lapidot acha que os planos do novo governo são preocupantes. Isso se deve também ao fato de que o Bundestag recentemente aprovou uma resolução que adota a definição de antissemitismo da Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA).
A definição da IHRA lista 11 exemplos de antissemitismo, a maioria relacionados a Israel. A entidade considera que é antissemitismo negar o direito do povo judeu à autonomia, por exemplo ao se referir a Israel como um “empreendimento racista”. Esse é um dos exemplos que podem ser interpretados de forma muito ampla.
Apoiadores da definição da IHRA argumentam que também é antissemitismo acusar o Estado de Israel de praticar apartheid – também porque, nesse caso, o país seria apresentado como “empreendimento racista”.
Já o slogan “do rio ao mar” – alusão à faixa de terra que fica entre o rio Jordão e o Mediterrâneo, onde hoje estão a Faixa de Gaza, Israel e a Cisjordânia, esta última sob ocupação israelense – nega a Israel o direito de existir; ou, nas palavras da IHRA, o “direito do povo judeu à autonomia”.
O ministério alemão do Interior baniu o slogan “do rio ao mar” por considerá-lo uma “marca do Hamas”. Tribunais já contrariam essa avaliação diversas vezes por considerar que é possível interpretar o slogan de outras formas, principalmente quando acompanhado da frase “nós exigimos igualdade”, o que seria uma demanda por direitos iguais para todas as pessoas que vivem naquela região.
Pessoas que, como o professor Lapidot, criticam a definição de antissemitismo da IHRA, chegaram a ser chamados de “antissemitas”. “Não é preciso concordar com essa crítica [à definição da IHRA], mas poder formulá-la e expressá-la é essencial para uma democracia”, avalia o estudioso, que é um dos fundadores da Associação de Acadêmicos Judeus e Palestinos.
A Alemanha nazista despojou pessoas da cidadania alemã
Mas a proposta alemã de mudar a lei de nacionalidade também preocupa Lapidot pessoalmente. Ele tem passaporte alemão e israelense. Uma parte de sua família veio de Hamburgo e conseguiu fugir em 1934 para o que à época era o Mandato Britânico da Palestina. Como aconteceu com muitos judeus que se exilaram para fugir dos nazistas, seus antepassados foram despojados da cidadania alemã por leis nazistas assim que puseram os pés em território estrangeiro.
“A Alemanha já criou cidadãos de segunda categoria uma vez”, observa Lapidot. “E aí tirou deles a cidadania [alemã].”
Em um aceno de reparação dessa injustiça, a República Federal da Alemanha inscreveu em sua Constituição a renaturalização de “perseguidos do regime nazista que tenham perdido a cidadania alemã por motivos políticos, racistas ou religiosos”. O dispositivo vale também para os descendentes dessas pessoas. E é por isso que Lapidot, que cresceu em Israel, tem cidadania alemã.
Surfando na onda do populismo de direita?
A grande popularidade do partido alemão de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) preocupa Lapidot. “Em uma época em que estão ressuscitando medidas e visões políticas que eram defendidas nos anos 1930 por fascistas e nazistas”, o professor diz que falar de antissemitismo como se isso fosse um problema importado por “árabes, palestinos, muçulmanos” é “cínico e extremamente inquietante”. O acadêmico frisa que o antissemitismo virou uma “ideologia genocida” na Alemanha, e que nunca desapareceu da sociedade alemã – até hoje.
Para a deputada esquerdista Clara Bünger, não há dúvida: a proposta sobre cidadania que consta do rascunho do contrato da coalizão “traz claramente as digitais da AfD”. “A pressão da direita foi o que possibilitou essa redação.”
O berlinense-palestino Abdel, que participa regularmente de manifestações pró-palestinos, está cogitando abrir mão do passaporte jordaniano. O jovem não quer perder seu passaporte alemão de jeito nenhum. “Sei que não sou um antissemita”, afirma. “Tirar a minha cidadania não seria nada além de um meio para reprimir minha liberdade de expressão.”
Proposta ainda teria que passar no teste da constitucionalidade
Ainda não está claro quem poderá decidir no final das contas qual “antissemita” com dupla cidadania estaria sujeito a perder o passaporte alemão. O rascunho de contrato da coalizão menciona apenas “apoiadores do terrorismo, antissemitas e extremistas que conclamem à dissolução da ordem liberal-democrática”.
Procurado pela DW, o encarregado do governo federal para combate ao antissemitismo, Felix Klein, disse que não se pronunciaria “neste momento” sobre o documento da coalizão porque ele ainda é um rascunho e as negociações ainda não foram concluídas.
Antes que os tribunais possam verificar se determinadas pessoas são de fato “apoiadores do terrorismo, antissemitas e extremistas”, seria preciso verificar primeiro se a proposta é compatível com a Constituição.
O SPD parece apostar na inconstitucionalidade do texto. O social-democrata Dirk Wiese soa despreocupado: “Pessoalmente, tenho uma concepção clara do que sairia de um parecer jurídico sobre isso.”
Mas as pessoas que potencialmente seriam atingidas por tal mudança nas leis não têm tanta certeza disso.