10/10/2025 - 17:39
Preço do metal reflete perda de confiança no dólar, tensões geopolíticas e insegurança diante de crises sucessivas, e coloca emergentes como o Brasil diante de dilemas econômicos e ambientais.A alta recorde do ouro, que ultrapassou pela primeira vez os 4 mil dólares por onça nesta semana (R$ 21,8 mil), expõe a fragilidade da atual ordem financeira global e reacende dilemas antigos. Em meio à desconfiança crescente no dólar e à busca por refúgios de valor, o metal volta a ser aposta de investidores, mas também pressiona florestas e comunidades afetadas pela corrida por extração em países emergentes, como o Brasil.
De acordo com especialistas ouvidos pela DW, a disparada do preço do ouro não é apenas reflexo de especulação: ela revela um mundo mais instável, em que os instrumentos clássicos de confiança internacional, como dólar, títulos americanos e instituições multilaterais, perdem força. Por isso, bancos centrais e grandes investidores institucionais passam a comprar mais ouro para se proteger de possíveis choques externos.
“Quando o mercado volta a buscar o ouro como segurança em detrimento de dólar ou mesmo de cripto, que também são ativos considerados como abrigo de segurança, mostra que a percepção de risco geral acabou aumentando”, afirma a economista Bruna Centeno.
Ativos dos EUA eram segurança
Desde a Segunda Guerra Mundial, o dólar e os títulos do Tesouro dos Estados Unidos se consolidaram como reservas de valor globais porque refletem confiança e estabilidade em um país que ocupa o centro do sistema financeiro internacional.
A economia americana é a maior do mundo, o governo dos Estados Unidos nunca deu calote em sua dívida e seu mercado de títulos é o mais líquido e seguro do planeta, ou seja, é fácil comprar e vender esses papéis sem risco de perdas bruscas. Além disso, como o comércio internacional e as commodities são majoritariamente cotados em dólar, manter reservas nessa moeda garante proteção em períodos de crise e poder de compra em escala global.
Agora, contudo, há um profundo menosprezo por instituições multilaterais, que ajudaram a moldar o comércio e as relações internacionais, como a OMC (Organização Mundial do Comércio) e a ONU (Organização das Nações Unidas), por exemplo, deixando dúvidas nos agentes do mercado sobre como será o futuro.
“A palavra central para entender a influência do governo Donald Trump é a incerteza. Uma vez que movimentos da economia norte-americana tomam curso – alguns contrários à fundamentação econômica esperada –, os agentes de mercado não sabem exatamente o que esperar”, afirma Marcio Sette, professor de relações internacionais do Ibmec-RJ e ex-diretor do Brasil no Banco Interamericano de Desenvolvimento.
A economia norte-americana também dá sinais confusos e perdeu parte da confiança global por causa do endividamento público recorde, da instabilidade política e da perda de controle fiscal.
“Se o dólar está diretamente ligado à economia norte-americana e essa economia está em risco, naturalmente esse fluxo do capital vai buscar outros lugares e aí a moeda tem essa perda de valor em detrimento de outras buscas que o mercado vem fazendo para se sentir seguro, para buscar esse abrigo que nesse momento a gente não consegue no dólar, via percepção geral do mercado”, explica Centeno.
“Diante, portanto, de repercussões incertas na economia emissora da moeda de referência que é o dólar, além do shutdown [paralisação do governo dos Estados Unidos] e das expectativas de política monetária com redução dos juros pelo FED [o Banco Central americano], despontam o ouro e outro metais, como a prata, como preferência, como ativos invioláveis. A aversão ao risco domina o mercado”, completa.
Para além dos Estados Unidos, o mundo também passa por transformações. Para Sette, essa crescente desconfiança em relação ao dólar ampliou o debate sobre alternativas ao sistema financeiro dominado pelos Estados Unidos. Moedas locais, sistemas de pagamento regionais e stablecoins ganharam destaque, enquanto alguns países reduziram a participação de títulos do Tesouro americano em suas reservas e aumentaram a compra de ouro como forma de diversificar e proteger seus ativos.
“Não se trata exclusivamente da incerteza oriunda de dentro dos EUA, mas também da instabilidade de um mundo fragmentado, sem apoio multilateral, que se desglobaliza e, pior, vive sob a ameaça de uma guerra europeia generalizada diante do conflito entre Rússia e Ucrânia”, diz.
Pressão ao meio ambiente
Com a valorização do ouro, há mais atrativos para a exploração. O Brasil produz cerca de 70 toneladas do metal por ano, segundo a consultoria Mining Technology, sendo o décimo maior produtor mundial. Mas, em um mercado que carrega as marcas históricas da exploração socioambiental a qualquer custo, a nova corrida também desperta preocupações.
Segundo Larissa Rodrigues, doutora em energia pela USP e responsável pelos projetos de mineração, energia e uso de terras do Instituto Escolhas, sempre que o preço do ouro sobe, há um estímulo maior à extração, seja legal ou ilegal, e essa “corrida” pelo metal tende a acelerar o desmatamento, agravar conflitos fundiários e aumentar violações aos direitos de comunidades locais.
“Os riscos ambientais e sociais estão presentes, porque junto da proliferação de áreas ilegais temos o desmatamento, a contaminação dos rios e das pessoas por mercúrio – que é altamente tóxico, mas ainda amplamente usado na extração de ouro –, além de conflitos com comunidades locais e a atuação do crime organizado”, diz.
Rodrigues defende que o Brasil precisa assumir um compromisso real com uma mineração responsável e legal, evitando o uso de mercúrio, e que comprova a origem do ouro por meio de mecanismos de rastreabilidade, gerando riqueza ao país. O Brasil, porém, ainda está longe de cumprir plenamente esses padrões.
“Apesar de termos conquistado avanços recentes nos controles – como a adoção de notas fiscais eletrônicas para o ouro e o fim da presunção de boa-fé no comércio – e termos feito um grande esforço de repressão ao crime, precisamos ainda de rastreabilidade de origem obrigatória, proibir o uso de mercúrio e fiscalização ambiental. Precisamos seguir nessa direção para continuar estrangulando o crime e manter as atividades minerais dentro de contornos ambientais e sociais responsáveis”, completa.